198. Um autor a procura de um personagem**
Jober Rocha*
De
tanto elaborar manuais técnicos para a repartição onde sofri e penei por mais
de trinta anos, acabei desenvolvendo certo gosto por escrever. Tanto é assim que antes de me
aposentar, nas horas passadas em casa, longe da Seção na qual dava expediente,
minha única distração era rascunhar pequenos contos ou estórias em que a
imaginação, vagando por lugares distantes e inter-relacionando épocas, locais e
personagens, permitia manter meu pensamento alheio aos assuntos maçantes daquele
local em que trabalhava.
Naquela bela manhã de sol, meses depois de
haver me aposentado, resolvi dar um passeio de ônibus pela cidade do Rio de Janeiro. Buscava
inspiração para um romance envolvendo amor, sexo e violência, que havia
começado a escrever na véspera.
Na noite anterior tinha trabalhado até altas
horas, esquematizando o roteiro do romance; porém, faltava-me inspiração para
vários personagens, dentre eles o principal. Por mais que tentasse não
conseguia visualizar alguém adequado em quem me inspirar, nem desenvolver seu
papel ao longo de toda a trama da estória. Ao contrario do escritor Luigi
Pirandello, que escreveu a obra “Seis Personagens a Procura de um Autor”, eu
era um autor a procura de personagens, dentre eles o principal que era o que me
fazia mais falta naquela ocasião.
Segundo minha concepção este personagem principal deveria ser um
tipo violento e belicoso, capaz de amar e odiar com a mesma intensidade. Sua
principal fonte de interesse seria o sexo, podendo até, eventualmente, vir a
demonstrar amor por alguém ou chegar a se apaixonar.
Assim, sai naquele dia com o único objetivo
de descansar a mente da estafante noite anterior. Após o café da manhã me dirigi, caminhando
despreocupadamente, ao ponto de ônibus situado na rua em frente à minha residência.
Embarcando no coletivo, sentei-me em um banco próximo à janela e pus-me a apreciar
a vista do bairro. Após percorrer várias ruas secundárias o ônibus entrou na
via principal, toda ela dedicada ao comércio varejista.
Varias lojas de artigos diversos
alternavam-se em ambos os lados da via. Em multidão, as pessoas esbarravam-se
pelas calçadas. Pensei, na ocasião, como a sociedade humana assemelhava-se a um
verdadeiro formigueiro; cada qual desempenhando seu correspondente papel de
formiga. A única diferença que via, entre as duas sociedades, era que as
formigas trabalhavam para o bem estar do formigueiro e o ser humano trabalhava,
apenas, para o seu próprio bem estar.
Seguia divagando quando a minha atenção foi
despertada por um tipo alto e forte, com uma grande cicatriz no rosto, andando
pela calçada como se procurasse algo ou alguém.
Na mesma hora soube que havia encontrado o
meu personagem principal. Precisando estudá-lo com detalhes, desci do ônibus e
passei a segui-lo, disfarçadamente.
O tipo pareceu se aperceber de alguma coisa
estranha, pois, continuamente, voltava o rosto para ver se estava sendo
seguido.
Sutilmente, permaneci andando em seu encalço;
porém, por vezes, atravessando a rua e continuando a persegui-lo na calçada
oposta.
Enquanto eu o seguia, imaginava a sua idade e
profissão, onde morava e qual o motivo que o levava a estar naquele local
àquela hora.
Repentinamente, parando em frente a uma casa
que vendia armas e munições, olhou por alguns minutos à vitrine onde eram expostas
dezenas de pistolas e revolveres. A continuação ele entrou na loja, abrindo
vagarosamente a porta de vidro.
Cheio de curiosidade atravessei a rua e
mirei, por algum tempo, disfarçadamente, a vitrine e o interior da loja. Pelo
canto dos olhos pude vê-lo experimentando, junto ao balcão, vários tipos de
pistolas.
Pouco depois, fixando-se em uma delas,
comprou-a. Pagou no caixa, apanhou-a na seção de embrulhos e preparou-se para
sair da loja.
Minha mente
fervilhava: Ele iria cometer um assassinato por vingança? Seria um assaltante
de bancos preparando-se para mais um assalto? Aquela arma estaria destinada a
por um fim na vida da amante e, logo em seguida, na dele próprio?
Mentalmente eu desenvolvia assuntos,
suposições e episódios do romance, para escrever mais tarde em casa.
Saindo da loja com o embrulho, ele continuou
pela mesma calçada em que viera.
-
Aonde iria agora? - eu perguntava a mim mesmo.
-
Não posso perdê-lo de vista, pois meu romance depende dele! – pensava eu naquele
instante.
Continuando
em seu encalço, tive a atenção voltada para uma jovem que caminhava em sentido
contrario ao meu. Imaginei, logo, que aquela jovem poderia ser o meu segundo personagem.
Era morena e possuía lindos olhos verdes. Seu vestido, colante, deixava antever
um lindo par de coxas. A blusa, ligeiramente aberta, deixava à mostra dois
volumosos seios que meus olhos negavam-se a abandonar.
Ao passar por mim deu um ligeiro sorriso, que
me pareceu um velado convite.
Olhando para trás, após sua passagem, vislumbrei
as nádegas mais lindas que já havia contemplado, até então. Aqueles glúteos
eram redondinhos e balançavam em gracioso movimento de sobe e desce, conforme
ela caminhava. Fiquei alguns momentos pensando se o vocábulo, glúteos, não
teria sido uma homenagem da Ciência da Anatomia a nós, os glutões.
Voltando em seguida ao meu personagem, parei
estarrecido. Ele havia simplesmente desaparecido. Apressei o passo, chegando
mesmo a correr por alguns minutos. Nada, não o via em parte alguma. Parecia
haver se evaporado em questão de segundos.
Percorri de volta o caminho que fizera,
olhando dentro das lojas, atrás das árvores e no interior dos carros. Nada.
Caminhei, durante aproximadamente meia hora,
pelas ruas adjacentes, paralelas e perpendiculares, vasculhando tudo; porém,
meu personagem já havia mesmo desaparecido e, com o sumiço dele, a minha
estória perdera a sua razão de ser.
Retornei para casa, desanimado e cabisbaixo. Sentado
junto ao corredor do ônibus, pensava em como a fortuna é volúvel, pois ora nos
sorri, querendo uma aproximação maior, e ora nos repele, desejando jamais
voltar a ver-nos.
Repentinamente,
ouvi uma voz alta e vibrante que gritou: - Todo mundo quieto que isso é um
assalto!
Olhando
para trás, de onde a voz partira, vejo ele, o meu personagem, em pé no fundo do
ônibus e com uma pistola na mão.
Imediatamente,
pensei comigo: - Que sorte a minha, finalmente ganhei o dia! Agora é só
descer junto com ele e passar a segui-lo outra vez, disfarçadamente. Enquanto
entregava a ele a minha carteira, o celular e o relógio, eu sorria por dentro
de satisfação, já imaginando quais seriam os nossos próximos capítulos neste meu romance de costumes, ambientado na cidade do Rio de Janeiro...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/
Conto.