quarta-feira, 17 de agosto de 2016


123. Quem sabe se não foi assim?**

 Jober Rocha*


           A quarta das leis promulgadas no Brasil referentes à escravidão – precedida das leis Eusébio de Queirós, do Ventre Livre e dos Sexagenários – foi assinada no ano de 1888. O processo gradual de abolição da escravatura finalizou, assim, com a chamada Lei Áurea, cujo nome simbólico traduz algo de muito valor, notadamente para aqueles que por ela foram beneficiados.
                  Conta a História que tendo assinado a lei, após assumir pela segunda vez a regência do país, teria a Princesa Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga comentado com o senhor João Maurício Vanderley, Barão de Cotegipe: - Então, senhor, eu ganhei ou não a partida! (referia-se, a princesa, a uma conversa mantida com ele, dias antes, em que informara ao barão acerca da sua resolução em sancionar a referida lei, já aprovada pela Câmara Geral e pelo Senado Imperial, quando este, sem atinar com os motivos da princesa para tal, teria dito: - Neste caso, a mim só me resta a porta e a Vossa Alteza o mar!). 
                  Sancionada a lei, Cotegipe, a este segundo comentário da princesa, teria respondido: - Vossa Alteza redimiu uma raça, mas perderá o trono!
                Estes diálogos, mais ou menos desta forma, foram preservados pela História do Brasil. Entretanto, reza uma lenda que o verdadeiro motivo pelo qual a princesa teria assinado a referida lei, foi um sonho recorrente que já vinha tendo há algumas semanas.
                  Sonhava a princesa, logo após adormecer, que era uma menina negra vivendo em uma das fazendas do Barão de Cotegipe. Nesta fazenda, era encarregada de ordenhar as vacas, de arrumar a casa, de fazer a comida, de alimentar a criação, etc. etc. etc. Seu dia a dia era, totalmente, ocupado com afazeres domésticos e agropecuários; tendo ela, diga-se de passagem, apenas cerca de dez ou doze anos de idade.
                O barão, nas vezes em que visitava a sua fazenda – e isto ocorria toda vez que a princesa sonhava - cobrava-lhe resultados e estabelecia novas metas, punindo-a com rigor, relativamente àquilo tudo que julgava falho e mal feito.
               A jovem escrava nutria um ódio terrível pelo barão e desejava vê-lo padecer nas profundezas do inferno, tanto quanto ela padecia naquela fazenda afastada da corte, localizada próxima da Boca do Mato, no Rio de Janeiro.
                Uma noite a jovem menina negra também teve um sonho: sonhou que era uma princesa jovem, toda poderosa, que tinha poderes para decidir sobre a vida e a morte dos seus muitos súditos. A primeira medida que tomou, em sonho, foi revogar o titulo de nobreza do barão e confiscar-lhe as propriedades, banindo-o para a África no porão de um navio negreiro que retornava vazio. A segunda medida foi libertar todos os escravos que viviam de trabalhos forçados pelo país inteiro, notadamente as crianças e os velhos.
                  Um fato curioso é que, em todos os sonhos da princesa Isabel, ela assumia a identidade da menina negra, que, também em todos os seus sonhos, por sua vez, assumia a identidade da princesa.
                Consultando um sábio esotérico da corte, relativamente àqueles sonhos estranhos, a princesa Isabel ouviu dele, pela primeira vez, a possibilidade de ela poder estar tendo contato, nos sonhos que tinha, com uma de suas vidas passadas; já que, havia nascido em 1846 e o barão em 1815. A diferença de 31 anos que os separavam, poderia justificar ter sido a princesa uma menina escrava a serviço do barão em sua fazenda, que, tendo falecido prematuramente, reencarnou como princesa na corte de Pedro II.
                  A princesa, católica fervorosa, em principio não acreditou naquela possibilidade aventada pelo sábio; porém, como os sonhos teimavam em se repetir com freqüência, buscou a jovem princesa (com 43 anos na ocasião) conselhos de padres, médicos e, até mesmo, de xamãs e de curandeiros. A maior parte das respostas que ouviu não chegou a satisfazê-la. Apenas um xamã disse-lhe algo parecido com aquilo que ouvira do sábio esotérico (note-se, a título de esclarecimento, que o espiritismo, como doutrina, surgiu, em 1857, com a publicação do Livro dos Espíritos, por Alan Kardec). 
               Na biblioteca do palácio a princesa encontrou um exemplar do livro de Alan Kardec, adquirido por seu pai, Pedro II, quando de uma viagem à Paris. Tendo lido integralmente o livro, a princesa passou a interessar-se por aquelas afirmações e experiências relatadas na obra de Kardec.
                   Corria o ano de 1888 e, naquela época, James Braid (1795- 1860) já havia dado início à hipnose científica, tendo cunhado, em 1842, o termo hipnotismo. Por outro lado, James Erdaile (1808-1868), como médico-cirurgião, já havia utilizado a hipnose anestésica em cerca de três mil cirurgias, sem a necessidade de anestesias. Jean Charcot, médico, por sua vez, já havia estudado o efeito da hipnose em pacientes histéricos.
               O sábio esotérico procurado inicialmente pela princesa era, também, um exímio hipnotizador e, ademais disto, espírita adepto de Alan Kardec.
                Em conversas posteriores, o sábio alertou à princesa que havia uma possibilidade de ela confirmar, realmente, se aqueles sonhos recorrentes possuíam algo a ver com suas encarnações anteriores. Isto poderia ser feito através de uma regressão hipnótica, método conhecido, apenas, por pouquíssimas pessoas em todo o mundo, naquela ocasião.
                Esta regressão - explicou o sábio - baseia-se na doutrina espírita, que afirma ser necessário o esquecimento do passado para que o espírito, em sua atual existência, não seja sobrecarregado com lembranças e emoções de outra vida. Afirmou, ainda, que existia uma passagem no Livro dos Espíritos que autorizava o resgate das memórias de encarnações passadas. Tal passagem era a seguinte,  conforme ele relatou à princesa:
         Ao entrar na vida corporal, o Espírito perde, momentaneamente, a lembrança de suas existências anteriores, como se um véu as ocultasse; entretanto, às vezes, tem uma vaga consciência disso e elas podem até mesmo lhe ser reveladas em algumas circunstâncias. Mas é apenas pela vontade dos Espíritos Superiores que o fazem espontaneamente, com um objetivo útil e nunca para satisfazer uma curiosidade vã.
               Assim – continuou o sábio - nessa passagem do Livro dos Espíritos, é possível que venhamos a nos lembrar de existências anteriores, sempre que haja um motivo útil, e, mesmo assim, apenas, quando os espíritos superiores aprovam.
                   Essa abordagem – segundo ele comentou na ocasião – busca extrair da hipnose regressiva o seu fundamento; ou seja, em estado alterado de consciência, a pessoa regressaria a um passado, além do limiar da vida atual, onde se encontraria uma memória extra-cerebral que permitiria o acesso à encarnação anterior.
                    A princesa, convencida das explicações do sábio, decidiu submeter-se à hipnose sugerida, como única forma de esclarecer aquele mistério que tanto a atormentava.
                     Em uma das salas do palácio, deitada em um divã, a princesa, sob as ordens do sábio, penetrou em um transe regressivo. Em pouco tempo, regredindo de idade sob o efeito da hipnose, viu-se em outra existência, como aquela menina negra com quem sonhava freqüentemente, em uma fazenda no interior. Sentiu, muito mais vivamente do que nos sonhos, toda a dor e sofrimento daquela pequena criança, obrigada a trabalhar pesado desde pequena. Viveu, por algumas horas que pareceram uma verdadeira eternidade, as vicissitudes padecidas pelos escravos naquela servidão compulsória. Percebeu, agradecida, que o fato de haver encarnado, em sua vida seguinte como uma princesa, tinha por objetivo, principal e único, o de colocar um fim àquele estado de coisas no império, que aviltava a condição humana.
                A oportunidade, para tanto, estava em suas mãos como princesa regente. A lei, que permitiria banir para sempre do Brasil a triste e trágica escravidão, já aprovada pela Câmara e pelo Senado, aguardava apenas a sua sanção. 
                      Acordando do sono hipnótico, a princesa agradeceu ao sábio e dirigiu-se ao seu gabinete mandando chamar, imediatamente, o Barão de Cotegipe.
                  Tendo este vindo a sua presença, a rainha, próxima de uma das janelas do palácio, perguntou ao barão, naquela ocasião, a sua opinião sobre a lei que pretendia sancionar em breve. A resposta do barão, já mencionada no início destas páginas, indicava ser ele contrário à referida lei que, segundo pensava, prejudicaria todos os fazendeiros e as exportações agrícolas brasileiras.
                      A princesa, com um sorriso intrigante nos lábios – não mencionado pelos historiadores - despediu-se do barão para assinar, poucos dias depois, a famosa lei.
                    Cotegipe, logo a seguir, demitido do Conselho de Ministros pela princesa regente, foi uma das últimas vozes a declarar-se, abertamente, contra a abolição geral da escravatura.
                   A Princesa Isabel, após a assinatura da Lei Áurea, nunca mais sonhou com a pequena menina negra.
                      Embora a imaginação dos escritores tudo permita, meus caros leitores, quantos episódios da nossa história; bem como, da de outros povos, foram regidos por acontecimentos totalmente desconhecidos dos historiadores e que passaram despercebidos até dos próprios contemporâneos daqueles acontecimentos? Isto, evidentemente, nós jamais saberemos...

_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Conto premiado no Concurso Literário de contos “A Lei Áurea”. Ed. Eber Josué. 2014. Três Corações, MG.


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