124. Bem longe, lá atrás daqueles montes!**
Jober Rocha*
Mohamed al Mansour desembarcou sozinho no Caís Pharoux, na cidade do Rio de Janeiro. Chegara à cidade naquela manhã como um dos passageiros do navio ‘Alliance’, de bandeira francesa, que deixara Beirute, no Líbano, em novembro de 1878.
Dois anos antes ele havia conhecido o imperador brasileiro, Pedro II, que, com sua esposa e uma comitiva de quase novecentas pessoas, havia visitado aquele país, em novembro de 1786, navegando a bordo do navio ‘Aquila Imperial’. Pedro II e a sua comitiva haviam visitado já inúmeros países, em um tour ao redor do mundo que incluiu, dentre outros: Estados Unidos, Canadá, França, Portugal, Itália, Grã Bretanha, Alemanha, Suécia, Rússia, Dinamarca, Grécia, Egito, Líbano, Finlândia, e Suíça.
Alguns dias depois da sua chegada à Beirute, Pedro II, dando azas ao espírito aventureiro e pesquisador que o caracterizava, montado em uma égua branca e com apenas uma mochila, estava cavalgando, sozinho, no rumo de Baalbeck, terra natal de Mohamed al Mansour. Coincidentemente, este, também em um cavalo, caminhava, naquela mesma ocasião, pela estrada de terra em que seguia o imperador, ambos seguindo na mesma direção.
Mohamed era um comerciante de tecidos libanês e havia ido a Beirute receber e pagar uma carga de seda que desembarcara de um navio oriundo da China. Despachara a carga para Baalbeck e seguia para casa, calmamente, em seu cavalo.
Tendo os dois animais emparelhados na estrada, Pedro II, que falava vários idiomas, cumprimentou al Mansour em árabe e seguiram os dois juntos, conversando em francês, língua que Mohamed também dominava.
Pouco depois, atravessando o Vale de Chtaura, rumo a Baalbeck, passaram por várias cidades, dentre elas Zahle, chegando ambos aos seus destinos com o dia já escurecendo. Naquela ocasião, Pedro II parou para escrever algo em um caderno e mostrou para al Mansour o que havia escrito em seu diário, tão admirado ficara ao contemplar a cidade: “...a entrada nas ruínas de Baalbeck, à luz de fogaréus e lanternas, atravessando por longa abóbada de grandes pedras, foi triunfal e as colunas tomavam dimensões colossais”.
A convite de al Mansour, o imperador hospedou-se na casa deste. Após se instalarem em seus aposentos, al Mansour convidou Pedro II para jantar, o que foi prontamente aceito por que ele nada havia comido desde a manhã daquele dia.
No dia seguinte, em companhia de al Mansour, o Imperador visitou os templos de Júpiter e de Vênus, observando tudo, medindo, tomando notas e, por fim, escreveu em seu diário: “Saindo de Baalbeck, onde deixei meu nome com a data na parede do fundo do pequeno templo (Templo de Baco), que está cheio de semelhantes inscrições; lendo-se, logo depois da entrada, estas palavras: “Comme le monde est bête!”.
O imperador ficou encantado com a vida no Líbano e com o povo libanês, tendo dito a al Mansour, ao se despedir: - “Gostaria de poder contar com os libaneses em meu país. Prometo recebê-los bem e tenham certeza de que retornarão prósperos”.
Deixando Baalbeck, Pedro II dirigiu-se para Damasco, na Síria, observando, ainda, em seu diário: “Reparei melhor para a planície que, apesar de coberta de seixos, é aproveitada para trigo e, sobretudo, para vinhas. Perto de Baalbeck nasce o antigo Orontes, que vai banhar a Antioquia. À noite passada, encheram-se de neve os cabeços dos montes e que belo efeito produziram, vistos do fundo do grande templo ou por entre as seis colunas.”
Dois anos depois daquele dia em que conhecera o imperador brasileiro, atendendo ao convite que este lhe fizera na ocasião, Mohamed desembarcava no porto do Rio de Janeiro, sede da corte do seu amigo imperador. Tão logo al Mansour se instalou e aclimatou na cidade, foi ao Palácio da Quinta da Boa Vista procurar o imperador para uma entrevista.
Recebido com cordialidade por este e após conhecer toda a família imperial, participou do almoço no palácio, ao qual compareceram inúmeros membros da nobreza local. Estranhou bastante a comida que foi servida na ocasião, composta, basicamente, de carnes de caça (capivara, jacaré e anta) e de aves locais. Havia estranhado, também, a cidade, que era bastante diferente daquela na qual nascera e vivera toda a sua vida. As ruas centrais do Rio de Janeiro estavam apinhadas de escravos, vendendo seus produtos. As praças e ruas constituíam pontos de encontro, onde interagiam os habitantes locais. A chegada de peixe fresco, vendido pelos próprios pescadores no mercado de peixe do cais; a venda de frutas tropicais pelas negras; as carroças puxadas por bois e por cavalos, conduzindo objetos, mercadorias ou, mesmo, pessoas em pequenas cadeirinhas; os vendedores ambulantes com os seus pregões de forma gritada ou cantada, às vezes acompanhados de toques de tambor ou de violão; tudo isto era bastante diferente daquilo que Mohamed estava acostumado no Líbano.
Todavia, como o seu objetivo principal fosse o de estabelecer um entreposto comercial na cidade, através do qual exportaria mercadorias aqui produzidas e importaria produtos que aqui não existissem ou cujos preços fossem elevados, ele logo se acostumou com os costumes e com as deficiências da cidade, deficiências estas que consistiam, fundamentalmente, na presença de inúmeros e imundos cortiços e no saneamento precário.
O imperador oferecera ajuda para dar partida ao seu incipiente negócio, o que Mohamed aceitou de bom grado. Em pouco tempo, com a experiência que tinha e com a ajuda de alguns nobres da corte, apresentados pelo imperador, os primeiros navios começaram a chegar com produtos vários, notadamente óleo vegetal, azeite, cedro, vinho e tecidos vários e a sair com açúcar, café, sal e madeiras.
Mohamed, solteiro até então, em suas freqüentes aparições na corte, seja no Teatro Constitucional, frequentado pelo imperador, seja nos saraus realizados nas mansões de nobres e de burgueses, do Flamengo, de Botafogo, de São Cristovão e da Tijuca, passou a ser disputado por algumas viúvas jovens e por inúmeras moças em idade de casar.
O progresso e a prosperidade, experimentados pela administração estável de Pedro II, influíram no sucesso dos negócios de Mohamed. Passados alguns anos, ele já morava em um pequeno palacete no Flamengo, possuía uma sege de duas rodas, com duas cortinas de couro na frente e que corriam para os lados, quando era preciso entrar e sair. Nesta sege, conduzida por apenas um cavalo, andava pelas ruas da cidade, sempre que necessitava se deslocar para algum local.
Em poucos anos todas as mulheres da corte usavam vestidos confeccionados com os tecidos importados por al Mansour, que também havia entrado no ramo das jóias. Importava colares, anéis e pulseiras dos melhores ourives e artífices libaneses, que eram vistos nos dedos, pulsos e pescoços das mulheres mais bonitas da corte.
No Líbano, por sua vez, tanto a nobreza quanto a plebe adoçavam as suas bebidas, notadamente o chá e o café (este do Brasil e exportado por Mohamed), com açúcar brasileiro que chegava mensalmente ao porto de Beirute, transportados pelos navios enviados do Rio de Janeiro por al Mansour.
Desde a chegada dele ao Brasil, já se haviam passado oito anos. Neste pequeno período de tempo ele havia enriquecido; uma coisa que em seu país seria praticamente impossível, dada a estratificação social vigente naquela ocasião.
Alguns meses antes ele havia conhecido, no Teatro Constitucional, uma viúva jovem que lhe fora apresentada pelo Conde de Luca, quando do espetáculo promovido pela atriz Sarah Bernhard. A viúva, embora rica e bonita, era como a maioria das mulheres brasileiras da época; isto é, totalmente inculta. As mulheres, não só no Brasil daquele tempo, mas em inúmeros países do mundo desde a mais remota antiguidade, eram consideradas inferiores e dependentes dos homens (país, maridos ou irmãos). Como tal, não eram incentivadas a se envolver nos negócios e a adquirir cultura.
Mohamed passou a cortejar a viúva; posto que, estava bastante atraído pelos lindos olhos negros dela, que muito se assemelhavam ao das mulheres da sua terra natal. Ademais, a viúva, sem filhos, possuía lindos cabelos negros e um porte gracioso.
Certa ocasião, encontrando-a em uma de suas joalherias no centro da cidade, foi, por ela, convidado a jantar em sua casa.
Mohamed esperou que ela saísse para escolher uma linda pulseira com que a presentearia naquela noite.
Pouco antes da hora aprazada, forneceu o endereço ao seu cocheiro (nesta altura, ao invés da sege ele já dispunha de uma carruagem com cocheiro, puxada por dois cavalos) e, rumando para o endereço da viúva, começou a pensar em como o seu destino havia mudado desde que conhecera o Imperador do Brasil. Imerso em seus pensamentos, quando deu por si, estava dentro do terreno do palacete da viúva, em Botafogo.
Esta, tendo vindo recebê-lo ao descer da carruagem, conduziu-o à grande varanda, que circundava o palacete. Sentados em um enorme sofá, com macias almofadas, contemplavam as montanhas que cercam o bairro e falavam amenidades. Em certo momento, ela perguntou onde ele nascera. Mohamed, que nunca mais havia voltado ao Líbano, contemplando a lua cheia cujos raios luminosos banhavam a cidade do Rio de Janeiro naquela inesquecível noite, respondeu, com lágrimas nos olhos a escorrerem pela face: - Bem longe, em Baalbeck, lá atrás daqueles montes!
_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Conto premiado com Menção Honrosa no Concurso Literário de Contos “Muito Além das Montanhas”. Edt. Eber Josué, Três Corações, MG. 2016.
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