185. Entre a Teoria e a Práxis**
Jober Rocha*
Na década de 1960, tendo passado no exame vestibular, matriculei-me em uma Faculdade de Economia de uma Universidade Federal Brasileira. Naquela época estava em plena vigência o Governo Militar, que havia deposto João Goulart da Presidência da República em virtude deste tentar implantar um governo comunista no país.
Alguns dos meus professores eram figuras antigas na faculdade; porém, outros, haviam entrado para a mesma naquele ano. Embora estivéssemos vivendo sob um governo militar de direita, aqueles novos professores eram todos de esquerda.
Nós, jovens universitários que pouco ou quase nada conhecíamos de Economia, em particular, e da vida, de uma maneira geral, nos deixávamos conduzir pela sofistica e pelo carisma daqueles novos professores que aparentavam extensa cultura.
A minha própria turma de faculdade e algumas das que a sucederam, terminaram o curso com uma formação marxista acima da média das outras faculdades nacionais. Em seguida, tendo eu ido cursar o mestrado e, a seguir, o doutorado no exterior, perdi contato com os meus colegas de turma e com os vários amigos que possuía nas outras turmas.
Felizmente, ao contrário de muitos dos meus colegas brasileiros, neste período que passei no exterior tive a oportunidade de conviver com estudantes marxistas espanhóis e franceses e de visitar países socialistas e comunistas.
Só então pude constatar a diferença enorme que existe entre a teoria e a práxis (vários pensadores mencionam o conceito de práxis nas suas obras, como Karl Marx e Jean Paul Sartre, este último na obra intitulada Critique de la Raison Dialectique. A práxis pode ser entendida como a conduta ou a ação, que corresponde a atividade prática, em oposição à teoria).
A primeira contradição que percebi, entre a teoria e a práxis, foi quando notei que todos os seres humanos (marxistas ou não) gostavam de dinheiro e buscavam-no, avidamente, em qualquer lugar do planeta onde dele houvesse. Embora todos falassem, teoricamente, em idealismo, em justiça social, em igualdade de oportunidades e de direitos, em solidariedade, etc., quando se tratava de dinheiro estas virtudes eram esquecidas e o que prevalecia, na prática, era o egoísmo e a ambição pessoal.
Meus professores haviam me assegurado que o marxismo surgira em oposição à opressão do capitalismo sobre os trabalhadores e que este capitalismo consistia em um sistema econômico que, dentre outras coisas, endeusava o capital. Pude constatar, em minhas andanças por países socialistas e comunistas, que todos os sistemas econômicos, políticos e ideológicos endeusavam o capital, sem o qual nenhum deles sobreviveria.
Outra afirmação de meus antigos mestres, a de que os trabalhadores eram homens livres no comunismo e escravos no capitalismo, caiu por terra quando constatei que a produtividade dos trabalhadores, em média, era mais elevada nos países capitalistas que nos comunistas (lembro aos leitores que Lênin já dizia: - Em comparação com o pessoal das nações avançadas, o russo é um mau trabalhador). Imaginar o contrário, isto é, que os escravos modernos no capitalismo teriam produtividade menor do que a dos homens livres no comunismo é não atentar para componentes psicossociais que fazem com que o ser humano tenha ambições e desejos de consumo, só satisfeitos através do dinheiro (obtido em maior volume no capitalismo, com mais trabalho e com maior produtividade; ao contrário do comunismo, onde, mais trabalho e maior produtividade não significam maiores ganhos para o trabalhador).
Ademais, pude constatar que a avidez por produtos ocidentais, manufaturados em países capitalistas, era enorme naqueles países comunistas que visitei. O planejamento centralizado destes países não priorizava os bens de consumo, mas, sim, os bens de capital e a Indústria Bélica. O povo, tendo pouco para consumir, sabia que de nada adiantaria trabalhar mais ou ter maior produtividade, já que não ganharia mais e não teria como adquirir os produtos desejados, que não existiam.
Essa suposta liberdade do ser humano, que, teoricamente, existiria nos países que adotassem o marxismo, nada mais é que uma falácia; posto que, o Estado comunista tendo o monopólio dos bens de produção, também tem o monopólio da oferta de empregos. Nestes casos, vigora o chamado trabalho alienado; posto que, falta ambição ao trabalhador.
Por outro lado, as elites e os dirigentes de qualquer um dos sistemas econômicos vêm os trabalhadores da mesma forma; ou seja, apenas como peças da engrenagem produtiva, cujas missões são as de produzir bens e serviços com o suor de seus corpos e com a atividade incansável de suas mentes. Nada mais do que isso. Ao igual que em uma sociedade de abelhas, cada qual teria a sua missão e, na eventualidade de dela discordar ou contestá-la, haviam sido criados, em ambos os regimes, mecanismos de punição que possibilitariam segregar o descontente ou o refratário, dos demais trabalhadores (para não contaminá-los também com o gérmen da discórdia).
O filósofo e sociólogo Karl Marx (1818-1883) e seu amigo Friedrich Engels (1820-1895), fundadores do chamado socialismo científico, criaram a expressão ‘luta de classes’ para indicar o conflito entre os chamados opressores e os denominados oprimidos (isto é, a burguesia e o proletariado), conflito este que, segundo eles, vigoraria no sistema de produção capitalista. Para eles, a referida luta teria surgido com a instituição da propriedade privada dos meios de produção e só acabaria com o fim do capitalismo e das classes sociais.
Em conformidade com Vladimir Lênin (1870-1924), revolucionário e chefe de estado da República Socialista Soviética Russa, “as classes são grupos de homens em que uns podem apropriar-se do trabalho dos outros, graças à diferença do lugar que ocupam no sistema da economia social”.
Marx afirmava que nas sociedades primitivas não havia a divisão entre classes e que esta surgiu em razão das mudanças ocorridas nas forças de produção; bem como, através dos conflitos existentes entre os indivíduos em razão disto, que conduziram à posse privada, por determinados grupos sociais, dos excedentes produzidos e da própria terra geradora de riqueza.
Segundo ele, a luta de classes era inevitável, em razão da irreconciliável relação entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, e seria regida por leis sociais historicamente determinadas. A luta de classes era, assim, para o filósofo, o motor do desenvolvimento histórico das sociedades e a mais importante força motriz da história humana, mesmo que pudesse se desenvolver em outros terrenos que não o econômico; isto é, os terrenos político, religioso, filosófico ou em qualquer outro solo fértil ideologicamente.
Aqueles que ainda seguem os pressupostos de Marx e de Engels, julgam que a existência de uma sociedade sem classes como as que, eventualmente, existiram no passado em pequenas comunidades indígenas, é uma possibilidade histórica concreta no mundo atual.
Outros, embora reconhecendo a existência da luta de classes, acham, no entanto, que nos países pobres a tentativa de eliminá-la, com vistas à implantação de regimes socialistas, sem classes sociais, não passam de simples quimeras.
É, por exemplo, o caso de José ‘Pepe’ Mujica, antigo guerrilheiro Tupamaro e atual agricultor e político, ex-presidente do Uruguai, que afirmou em entrevista recente “a luta de classes é como o sol e as estrelas. Negá-la é negar a realidade. No entanto, posso ser mais claro: as tentativas de se construir países socialistas a partir de países pobres, em minha humilde opinião, demonstraram que são utópicas e impossíveis – mais que utópicas, são quiméricas”.
Em minha, também, humilde opinião, aquilo que foi caracterizado por Marx e Engels como luta de classes, nada mais é do que o anseio dos indivíduos por melhores condições de vida. Na época em que Marx e Engels formularam suas teorias, a psicologia ainda estava em seus primórdios e Sigismund Freud (1856-1939), médico neurologista, ainda não havia revolucionado a Psicologia, com a criação da Psicanálise e aquela era confundida com a Filosofia.
A Psicologia surgiu, com as suas várias escolas, apenas, no início do século XX, como uma ciência que tentava se desenvolver objetivando compreender o homem e seu comportamento de modo a facilitar a convivência dele consigo e com os demais, através de três escolas principais: Funcionalismo (William James, 1842-1910), Estruturalismo (Edward Titchener, 1867-1927) e Associacionismo (Edward Thorndike, 1874-1949).
Por outro lado, as Bolsas de Valores, embora já existissem desde o século XV, eram voltadas para a compra e venda de moedas, letras de cambio, metais preciosos e financiar bancos centrais. O comércio de ações só apareceu no século XIX, quando algumas bolsas começaram a negociar mercadorias e valores mobiliários. Só algum tempo depois da divulgação das teses de Marx as bolsas de valores começaram a negociar, ainda de modo incipiente, com ações de empresas industriais.
Os desejos humanos (objetos da análise psicológica comportamental) ao longo da história, normalmente, evoluem dos físicos (focados nas necessidades do corpo: alimentação, abrigo, família, sexo, etc.) para os de riqueza, de poder, de conhecimento e de espiritualidade. A ordem em que evoluem nos indivíduos, todavia, pode ser distinta desta apresentada ou, mesmo, alguns destes desejos serem suprimidos em determinados indivíduos ou em conjuntos de seres humanos, por razões diversas.
Assim, a denominada luta de classes, em meu modesto ponto de vista, corresponde a uma falácia, criada por aqueles dois eminentes filósofos, para justificar seus pontos de vista revolucionários. Os meios de produção (em razão de seus custos elevados) estarão, sempre, em mãos daqueles que detém o capital, sejam eles indivíduos ou Estados como os comunistas, mas, jamais, em mãos dos proletários em razão de lutas de classes. Imaginar que as coisas se passariam desta forma, a não ser para justificar teses ideológicas teóricas, é demonstração de muita ingenuidade ou de total desconhecimento da psicologia humana e do funcionamento dos sistemas econômicos, o que estava longe de ocorrer com aqueles eminentes filósofos.
A Revolução Industrial, que consolidou o Sistema Capitalista no século XVIII, trouxe em seu bojo a Divisão Internacional do Trabalho (seja com respeito a países, regiões ou indivíduos), divisão esta que consiste em uma especialização das funções econômicas e que foi um reflexo da solidificação da globalização incipiente.
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), após seu termino, acelerou de maneira nunca vista a economia mundial e, com isto, as globalizações da produção e do consumo se acentuaram significativamente. Esta divisão ou especialização, independente de vantagens comparativas que as justifiquem, quando se tratam de países ou regiões, demonstra, ademais, que nem todos os indivíduos possuem as mesmas capacidades e as mesmas aptidões; isto é, muitos são aqueles que acham mais fácil obedecer do que comandar, muitos os que preferem vender sua força de trabalho a comprar a força de trabalho de outros.
O que deve pautar as discussões a respeito, em meu modo de ver, é o papel do Estado em promover uma razoável distribuição de renda entre seus cidadãos, de modo a eliminar os eventuais conflitos, entre patrões e empregados (não entre os detentores ou não dos meios de produção), por um maior nível de renda para aqueles que vendem sua força de trabalho, fato este que, conseqüentemente, acarretaria uma melhoria sempre crescente em suas condições sócio-econômicas.
Poucos trabalhadores desejariam ocupar os lugares dos seus patrões (com as suas responsabilidades e riscos inerentes); isto é, dos donos dos meios de produção, desde que os seus salários fossem razoáveis e suficientes para a boa manutenção deles próprios e de suas famílias.
Nem todos os soldados sonham com serem generais, em que pese o poder e as regalias destes últimos. Quem imagina o contrário está redondamente enganado com relação a psicologia humana, individual e coletiva.
Assim, nem todos os proletários desejam ser possuidores dos meios de produção, promovendo, até mesmo, uma luta de classes para tanto. Guerras civis, motins e revoluções, sempre ocorreram na história da humanidade, mas, nestes casos, em razão do rompimento do Contrato Social, tão bem pensado e formulado pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Se o referido contrato for mantido pelos pactuantes (povo e governo/elites) e sua execução for considerada satisfatória por ambas as partes, inexistirão movimentos sediciosos internos que objetivem rompê-lo, tais como uma suposta luta de classes, em que ainda creem os adeptos de Marx.
Existem países comunistas, sem classes sociais, onde os indivíduos não são possuidores dos meios de produção, mas, apenas, vendedores de suas forças de trabalho ao Estado, este, sim, o verdadeiro detentor dos meios de produção.
Em tais países, uma elite dominante, tendo se apropriado do poder, usufrui das benesses de um consumo nababesco e, por vezes, hereditário.
Por outro lado, existem países capitalistas com classes sociais distintas (ou, mesmo, castas), onde os indivíduos aceitam com tranqüilidade suas classes ou castas, sem nenhuma tensão social e sem demonstração de desejarem pertencer à classe ou casta dos outros: alguns países orientais, em razão de suas convicções religiosas sobre a Metafísica da vida e da morte, e alguns países ocidentais onde o nível cultural, de renda e de escolaridade é bastante elevado.
Existem também países capitalistas, com classes sociais, em que parte dos meios de produção pertence a particulares (pessoas jurídicas e pessoas físicas) e parte pertence ao Estado.
Naqueles países onde o Mercado de Capitais é bem estruturado, qualquer pessoa física (pertencente à classe dos patrões ou à classe dos trabalhadores) pode adquirir, democraticamente, ações (preferenciais ou ordinárias) de empresas, ações estas que são negociadas em Bolsas de Valores.
Constata-se, portanto, no mundo moderno, que a existência ou não de classes sociais não é o fator que assegura, ou deixa de assegurar, a posse dos meios de produção.
Da mesma forma, nem a ideologia dominante nem o próprio sistema econômico vigente, também, são os fatores determinantes da posse ou não dos meios de produção por parte dos trabalhadores, que pudessem justificar, assim, uma eventual ‘luta de classes’.
Embora classificada pelos dois eminentes filósofos, mencionados no início, como uma lei social histórica, a propalada ‘luta de classes’ consiste, apenas, segundo a minha modesta maneira de ver este assunto, em uma falácia teórica que mascara o simples desejo das classes trabalhadoras por maiores salários e por melhores condições de vida, frente a proprietários dos meios de produção, muitas vezes, insensíveis às péssimas condições laborais e sociais e as reivindicações destes trabalhadores.
O papel do Estado, como árbitro e moderador, isento, destes eventuais conflitos é que vem a ser, em minha ótica, de fundamental importância para a solução satisfatória destas reivindicações trabalhistas.
Imaginar que todos os proletários são infelizes e que iriam ao extremo da ‘luta de classes’, apenas, por não serem os donos dos meios de produção, é de uma ingenuidade portentosa ou de uma ignorância nababesca; posto que, aqueles que assim pensam, olvidam importantes aspectos psicológicos da natureza humana, ademais da razoável distribuição de renda e das características dos modernos Mercados de Capitais, existentes em muitos países democráticos, desenvolvidos e capitalistas.
Essa suposta “Lei Histórica” da luta de classes, tem sido vendida como verdadeira pelas esquerdas, objetivando unicamente apoio popular para a tomada do poder. Após haverem chegado lá, esquecem-se de que anteriormente a mencionaram e reprimem as manifestações e os descontentamentos populares (com a situação econômica e social, motivada por políticas muitas vezes erradas de seus governos), da mesma forma como os países capitalistas costumam fazer; isto é, com o auxílio da força policial.
Vejam, a titulo de exemplo sobre o comportamento psicológico dos indivíduos, meus caros leitores, esta letra do ‘Rap da Felicidade’, conhecida melodia Funk que fez sucesso recente nas rádios brasileiras e nas periferias pobres das cidades brasileiras, de autoria de Cidinho e Doca:
“Eu só quero é ser feliz,
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci
E poder me orgulhar e ter a consciência
Que o pobre tem seu lugar...”
Finalizando, sem a intenção de buscar fazer qualquer apologia da pobreza, eu reconheço que uma política de redistribuição de renda bem conduzida (como a que tem sido feita em muitos países), além de uma justiça severa e igual para todos (como aquela que é exercida também em muitos países), são as melhores ações para se eliminar tensões sociais motivadas, quase sempre, pelo descontentamento das massas trabalhadoras com as suas condições laborais, econômicas e sociais (existentes, quase sempre, em decorrência de políticas econômicas equivocadas e de governos reconhecidos como cleptocracias; nos quais verdadeiras quadrilhas se especializaram em desviar recursos públicos e a quase nada oferecerem de retorno ao povo, em troca dos escorchantes impostos arrecadados) e que podem desembocar em conflitos sociais graves, com o risco de rompimento do chamado contrato social, como parece estar ocorrendo hoje em nosso país.
A diferença entre a teoria e a práxis, notadamente no que respeita às ideologias que sustentam os sistemas econômicos, é enorme; mas, infelizmente, a grande maioria do povo não se apercebe disto em razão do desconhecimento, da ingenuidade, da despolitização, do efeito da propaganda política enganosa e da contra informação, promovidas estas duas últimas por partidos políticos e por ideólogos, sejam eles de direita ou de esquerda.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Ensaio
Nenhum comentário:
Postar um comentário