terça-feira, 6 de março de 2018



178. Uma rápida conversa no céu dos escritores**


Jober Rocha*



                                   Não costumo recordar, na manhã seguinte, qualquer sonho que tenha tido na noite anterior. Acreditava, inclusive, que jamais sonhava. Em recente artigo científico que li, no entanto, fiquei sabendo que todos nós sempre sonhamos, mas, normalmente, não nos lembramos da maior parte dos sonhos que tivemos.
                                                       O que se passou comigo naquela noite, no entanto, foi muito mais do que um simples sonho. A coisa foi tão real que imagino ter tido mesmo uma dessas experiências extracorpóreas, de que muitos falam mas que somente poucos vivenciam.
                                                       Logo após haver deitado para dormir, vi-me situado em um local muito florido, como um enorme e belo jardim. Caminhando por suas alamedas cheguei a uma espécie de coreto, onde estavam comodamente sentadas diversas pessoas, todas com ares intelectualizados. Dentre elas pude reconhecer diversas, por já haver lido seus livros. Percebi, logo, tratar-se de em encontro de escritores famosos, embora nem todos fossem caracterizados como tal.
                                                       Aproximei-me silenciosamente e fiquei, durante um intervalo de tempo que não posso precisar a duração, ouvindo o que diziam. Antes, permitam-me mencionar quem eram alguns dos escritores presentes a este encontro: Victor Hugo (1802-1885), Alexandre Dumas (1802-1870), Marques de Sade (1740-1814), Honoré de Balzac (1799-1850), Manuel Maria Barbosa Du Bocage (1765-1805), Jean Genet (1910-1986) e Lucky Luciano (1897-1962).
                                                    Em primeiro lugar, notei que os escritores estavam todos desanimados; em segundo, que falavam em tom de crítica.
                                                Pelo que pude absorver de toda a conversa, cujo resumo eu transcrevo nestas páginas aos meus leitores, eles comparavam os seus dias de escritores com os dias atuais em que vivemos. 
                                                  Creio que daquele local em que nos achávamos (que acredito ser o céu, em virtude de ali se encontrarem reunidos homens de gênio, que deixaram um legado de obras magníficas que jamais deixarão de fazer sonhar leitores de todas as idades e de todos os locais do mundo, mesmo que a vida pessoal de alguns deles não seja considerada muito virtuosa, segundo nossos critérios humanos), eles podiam observar a vida na Terra; pois, da forma como falavam, eu pude perceber que todos estavam bem a par do que ocorria na atualidade, notadamente no Brasil que parecia ser o foco central de toda a conversação daqueles mestres escritores.
                                                         Victor Hugo lamentava-se com os demais: 
                                                      - Vejo meus romances empoeirados nas prateleiras das livrarias brasileiras. Infelizmente, minhas aventuras não estão à altura daquelas que vivem, diariamente, os leitores brasileiros ao saírem de suas casas para o trabalho. Ocorre que as aventuras que eles vivenciam, cotidianamente, são reais; enquanto aquelas que eu descrevi em minhas obras foram apenas fruto da imaginação. Não consigo competir com a realidade brasileira, sem dúvida, muito mais emocionante do que as aventuras descritas em Os Miseráveis ou em os Trabalhadores do Mar ou em Notre Dame de Paris - lamentou-se o escritor.
                                                         O Marques de Sade, tomando a palavra, disse: - Passei a vida toda em devassidões e libertinagens. Descrevi tudo aquilo, o que vivenciei de fato e o que imaginei em sonhos, em minhas obras que escandalizaram o mundo na época em que foram publicadas; mas, que, hoje em dia, conforme afirmou também o colega Victor Hugo, infelizmente, dormem nas prateleiras das livrarias brasileiras, sem ninguém que por elas se interesse. Uma simples novela de TV, no Brasil, possui mais pornografia e erotismo do que todas as minhas obras juntas.  Por sua vez, os 120 dias de Sodoma, O Marido Complacente e Os Crimes do Amor, são estórias infantis, face ao que é ensinado atualmente nas escolas brasileiras, acerca de sexo e de ideologia de gênero - finalizou o escritor libertino.
                                                     A seguir, falou rapidamente Bocage, mencionando que se sentia injustiçado em razão de algumas de suas poesias eróticas ou de baixo calão, acabarem por conduzi-lo à Prisão do Limoeiro, em Lisboa, e, posteriormente, ao Calabouço do Rossio: 
                                                   - Hoje, no Brasil, todos compõem musicas eróticas e de baixo calão, que são cantadas nas rádios, na TV e nos blocos carnavalescos e nada acontece com os seus autores; muito pelo contrário, são exaltados por aquilo que produzem enquanto eu passei anos encarcerado – exclamou o poeta.
                                                             A continuação, Lucky Luciano, o mafioso que se tornou escritor, tomou a palavra. Ele fora o autor da autobiografia “O Último Testamento’, na qual descrevia sua vida de mafioso nos Estados Unidos. Ele fora também o criador do Sindicato do Crime (Murder Inc.) naquele país, tendo criado, ainda, as Cinco Famílias do Crime.
                                                          Ele afirmou que se sentia como um simples menino travesso, ao contemplar os autos do processo conhecido como ‘Operação Lava a Jato’, que julgou e condenou diversos políticos e empresários brasileiros. Disse que jamais poderia imaginar tanta criatividade criminosa, como às que teve a oportunidade de ler nos autos do processo em questão: 
                                                  _ Nos últimos trinta anos, as livrarias brasileiras não venderam um único exemplar, que fosse, da minha autobiografia. Acompanhar o desenrolar do inquérito criminal conduzido por um juiz do Paraná, ao vivo, com episódios de lavagem internacional de dinheiro, extorsão, corrupção, tráfico de divisas, crimes de toda ordem, etc., foi, com toda certeza, muito mais emocionante para o público brasileiro do que ler malfeitos de simples imigrantes italianos, incultos como eu, tentando se estabelecer nos Estados Unidos - rosnou, com sua voz rouca, o escritor mafioso.
                                                       Jean Genet iniciou, logo a seguir, dizendo: 
                                                    - Tive inúmeras dificuldades, tanto de caráter econômico quanto policial, para montar e encenar minhas peças teatrais eróticas na França: O Balcão, Os Negros e os Biombos. As autoridades as proibiram, por serem consideradas imorais.
                                                 - No Brasil, vejo que muitas peças teatrais, sem nenhum conteúdo dramatúrgico importante, são montadas, apenas, para obter recursos gratuitos do governo. As autoridades brasileiras nem querem saber acerca do que se trata a peça; isto é, se são imorais, pornográficas, etc. Tudo pode ser levado ao palco no Brasil e ser visto por quem quer que seja, mesmo que sejam crianças. O que as autoridades desejam é ter os escritores e os artistas dependentes do Estado. Assim, eventuais criticas ao governante e ao partido no poder são abortadas ou minimizadas, com estes recursos gratuitos aos produtores e artistas – disse o escritor com lágrimas nos olhos, que enxugou com um lencinho rosa bordado.
                                                     Alguém, cujo nome não sei, pois jamais havia visto aquele rosto antes, disse bem alto: _ O Brasil real está quebrando todos os escritores de aventuras, de sobrenatural, de terror e de pornografia. Já ninguém mais compra livros destes autores, pois tais episódios acontecem ao vivo, nas ruas, becos, barracos, avenidas e palácios das principais cidades do país.
                                                           A conversa estava interessantíssima e ainda faltavam inúmeros participantes a expressarem seus pontos de vista, quando fui puxado para trás com força, como se tivesse uma corda amarrada na cintura. Vi-me caindo de costas e, subitamente, abri os olhos, percebendo que me encontrava deitado na cama.
                                                       Levantei ainda meio tonto, lavei o rosto e sentei-me ao computador para tentar descrever, da forma mais fiel possível, o sonho que havia tido ou, como disseram alguns amigos mais chegados que leram o texto antecipadamente, a experiência extra-corpórea que eu vivenciara naquela noite.
                                                     O Brasil, segundo parecia, era um verdadeiro Best Seller...

Nota do autor
Recente pesquisa realizada pelo IBOPE no corrente ano, denominada Retratos da Leitura no Brasil, em sua quarta edição, apresentou os seguintes dados e conclusões:

* O brasileiro lê, em média, 4,96 livros por ano;
* 74% da população não comprou nenhum livro nos últimos três meses;
* 30% dos entrevistados jamais comprou algum livro;
* As razões alegadas para não ler, foram: falta de tempo, não gostar de ler, não ter paciência para ler, não existir bibliotecas por perto, alto preço dos livros, falta de local apropriado para a leitura e não saber ler;
* A leitura ficou em décimo lugar no ranking da ocupação do tempo livre. Em primeiros lugares vieram a TV, a música, a internet, o encontro com os amigos, os filmes, etc;
* 50% dos professores não leram nenhum livro recentemente e 22% apenas leram a Bíblia.


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Conto de Humor.




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