158. A Triste Vida de um Aprendiz de Escritor na Era Digital**
Jober Rocha*
Ele era um escritor iniciante que, desejando testar seus dotes na Literatura, resolveu inscrever-se em alguns concursos literários, através de um site na Internet específico para tal finalidade. Esperava submeter seus textos à apreciação de escritores com mais experiência, de modo a confirmar se tinha ou não vocação para a carreira literária.
Os diversos concursos em que se inscreveu (alguns oferecendo prêmios em dinheiro) exigiam, além do conto ou da crônica, o envio de seus dados pessoais e de comprovantes xerografados do documento de identidade; CPF e prova de residência; ademais do nome do banco, agência e número da conta bancária; bem como, de um currículo onde deveriam constar a sua profissão, o seu telefone fixo e móvel, seu e-mail e principais trabalhos realizados nos últimos anos.
Tendo enviado tudo aquilo requisitado nos editais consultados, de uns quatro ou cinco concursos diferentes, aguardou, aflito, a divulgação dos resultados, que só seriam publicados transcorridos vários meses.
Pouco tempo depois começou a receber cartas informando débitos não pagos com fornecedores de determinados produtos; mensagens bancárias de que seu nome seria enviado ao Serviço de Proteção ao Crédito (caso seu saldo continuasse devedor e alguns empréstimos não fossem quitados); bem como, notificações de contas de luz, gás e telefone em atraso.
Como ele sempre fora pontual com suas contas e não operava com os bancos referidos, nem possuía outro imóvel que pudesse ter alguma conta de luz, gás ou telefone atrasada, achou que devia ter sido engano e deixou aquilo para lá, esquecendo do assunto.
Tempos depois foi surpreendido com um oficial de justiça à porta, entregando-lhe uma intimação e querendo entrar em sua casa para avaliação e listagem de bens passíveis de penhora.
Vendo que aquilo era coisa séria, contratou um advogado para assessorá-lo sobre a melhor forma de agir, de modo a safar-se de uma situação a que fora levado sem saber como nem por que.
O advogado percorrendo fornecedores, bancos, cartórios de protesto e distritos policiais, descobriu que algumas pessoas, passando-se pelo seu cliente e com documentos falsificados ou simples cópia de documentos, efetuaram compras no comércio, abriram contas em bancos e solicitaram empréstimos em nome dele. Por leviandade de comerciantes (interessados em vender) e de gerentes bancários (interessados em cumprir metas), cópias de seus documentos foram aceitas em diversas operações de venda a crédito e de empréstimo bancário. Ademais, foram também usadas para solicitar ligações de luz, gás e telefone.
Nestas operações todas, ele constava como comprador, mutuário, inquilino e devedor. Os verdadeiros usurpadores de sua identidade, ninguém sabia quem eram. Ao buscarem nos endereços fornecidos, todos já haviam se mudado e nenhum vizinho ou porteiro sabia descrevê-los.
Em que pesem todas as providências tomadas, as contas e cobranças continuavam chegando à sua residência.
Um belo dia recebeu uma multa do Departamento de Trânsito - DETRAN, com a foto de seu carro, em subúrbio distante do local de sua residência. Como ele usava muito pouco o veículo, pois morava próximo do local de trabalho e ia sempre a pé, além de morar sozinho e o seu carro passar o mês inteiro na garagem do prédio, prestou atenção na fotografia do veículo. Por diversos itens ele confirmou que aquele não era o seu veículo, embora a marca, a cor e a placa coincidissem. O carro da foto possuía antena, luz de freio interna, lanternas, calotas e frisos externos diferentes.
Haviam clonado a placa do seu veículo e, nos dias seguintes, uma enxurrada de multas, nos mais variados locais da cidade e do Estado, começou a chegar a sua residência. Em breve ele recebeu um comunicado do DETRAN de que haviam cassado a sua Carteira Nacional de Habilitação, por excesso de multas, e que ele não poderia mais dirigir nenhum veículo automotor. Caso fosse apanhado ao volante, seria preso.
Como além de escritor ele também era assíduo leitor, resolveu reler a obra ‘O Processo’, de Kafka, para ver se encontrava, ali, algum vislumbre de solução para o seu caso. Desejava relembrar como Joseph K, o personagem principal da obra, tinha se livrado do processo que o Estado lhe havia imputado, também, sem que houvesse feito nada de errado ou violado qualquer lei. Constatou, apavorado, que o infeliz Joseph fora, finalmente, morto pelo algoz do Estado (que o perseguia de longa data), com uma faca cravada no coração.
Depois de trocar por três vezes de advogado, sem conseguir livrar-se dos débitos, das ações de cobrança, dos protestos de títulos, duplicatas vencidas e das penhoras judiciais, uma ideia luminosa lhe ocorreu: faria como alguns falsos idealizadores de concursos literários fizeram com ele e trocaria, também, de identidade.
Dirigiu-se, em seguida, ao escritório da residência, onde mantinha seu computador, e, sentando-se comodamente na poltrona, digitou um edital de concurso literário em que solicitava diversos documentos, contas bancárias, endereço residencial, currículo, etc. Publicou o edital sob o título de ‘Concurso Literário com Grande Prêmio em Dinheiro’.
Alguns dias depois começou a receber uma quantidade enorme de contos e crônicas, acompanhados de toda a documentação pessoal necessária para a inscrição dos concorrentes.
Imprimiu dezenas de cópias de documentos de identidade, CPF’s, comprovantes de residência, etc. De posse destes documentos saiu caminhando pelas ruas da cidade, fazendo tudo aquilo que haviam feito com ele. Temeroso no principio ele verificou, a seguir, como era fácil comprar a crédito com simples cópias de documentos. Ninguém parecia se importar com a veracidade das cópias que ele apresentava, na ânsia de vender e de atingir as metas a que eram obrigados, tanto empregados quanto gerentes.
Em breve, já havia trocado as placas do seu carro por outras e, agora, ele também fazia questão de avançar sinais de trânsito e dirigir com excesso de velocidade, sabendo que jamais pagaria as multas referentes àquelas infrações.
Tomava o cuidado de mudar frequentemente de endereços, de circular pouco pelas portarias e de não fazer amigos, nos prédios em que ele residia, de modo a evitar ser reconhecido e os demais moradores poderem descrever suas características físicas à polícia.
Alguns dos meus leitores poderão questionar:
- Mas, e a consciência dele? Não lhe atormentava constantemente, por agir da forma como agia?
Confesso que também fiz esta mesma pergunta ao meu personagem e a sua resposta, pasmem leitores, foi a que se segue:
- Caro amigo, em uma sociedade corrompida como a nossa, na qual diversos integrantes dos três poderes dão, diariamente, exemplos de violação impune das leis; onde o povo, de uma maneira geral, apenas possui deveres e quase nenhum direito, vivendo em uma servidão consentida e sendo tocado rezes de um rebanho, para o rumo que as elites venais desejam; onde a burocracia campeia, seja por ignorância de servidores públicos, seja pelo desejo de criarem dificuldades para venderem facilidades; onde a meritocracia na administração da coisa pública é relegada, em razão do nepotismo e do apadrinhamento político; em que se cultuam vícios e se desprezam virtudes, em uma transvaloração de valores, ao estilo do comportamento politicamente correto, tão em voga; onde os políticos que comandam os Estados só pensam em arrecadar mais impostos dos seus já sobrecarregados cidadãos, nada (ou quase nada) oferecendo em retribuição, quanto à qualidade e a quantidade dos serviços públicos; onde as igrejas se transformaram em empresas, que só visam à arrecadação fácil de dízimos de uma população ignorante e crédula; onde grande parte dos Estados da Federação e o Governo Central encontram-se, praticamente, falidos em razão da má administração de seus políticos e do desvio de verbas públicas; onde a Educação nas escolas sofre influências ideológicas nefastas para a formação dos jovens; onde inúmeros setores da Economia estão sendo desnacionalizados e vendidos na ‘bacia das almas’ para empresas e países estrangeiros, por políticos antipatrióticos preocupados, apenas, em equilibrar as contas orçamentárias, deficitárias por inchaço da máquina governamental, excesso de mordomias e desvio de dinheiro; eu não tenho nenhum problema de consciência em fazer aquilo que estou fazendo atualmente. Desisti de nadar contra a maré e, agora, nado no mesmo sentido dela, com muito menos esforço.
Posso assegurar que minha vida se tornou muito mais fácil de viver, depois que adotei o chamado ‘jeitinho brasileiro’, do qual sempre fui um crítico ferrenho. Estou pensando, inclusive, em candidatar-me a um cargo eletivo; apenas ainda estou decidindo com que falsa identidade eu o farei, com que apelido me darei a conhecer (um pseudônimo, como dizemos em concursos literários) e por qual partido concorrerei às eleições; já que, como um bom aluno de malandragem, jamais irei expor o meu verdadeiro nome a execração pública...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Conto
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