166. Das duas, uma!**
Jober Rocha*
Desde o surgimento da raça humana sobre a face do planeta, a existência ou não de um Criador continua sendo a preocupação maior de todos os seres humanos.
As teorias prós e contras se sucedem, umas as outras, ao longo do tempo. As religiões afirmam que sim; porém, a Ciência e a Filosofia ainda permanecem em cima do muro, pois, enquanto algumas teorias dizem que sim, outras dizem que não.
Entretanto, duas considerações a respeito de tema tão importante e instigante podem ser feitas, com base naquilo que observamos em nosso cotidiano. É o que tentarei fazer neste ensaio se a tanto me ajudar o engenho e a arte, como gostava de mencionar em seus sonetos Luís de Camões. São duas hipóteses conflitantes e discorrerei sobre ambas, a seguir.
Em primeiro lugar, existe um axioma do Direito que diz: “Quem pode o mais, pode o menos!” Isto significa que quem detém o poder para fazer grandes obras, também possui o poder para fazer as pequenas.
O eventual Criador do universo com tudo o que nele existe e que tão bem soube impor a ordem sobre a matéria (com suas leis universais e imutáveis), também poderia impor a ordem sobre a vida humana (sua criação mais importante, segundo dizem as religiões) com leis que, não tendo a necessidade de serem imutáveis em razão de um possível livre-arbítrio humano, pelo menos fossem universais.
Explico-me melhor: Todos os seres nascem iguais; isto é, pelo mesmo processo e por vontade do seu suposto Criador, que jamais explicou, de forma clara e de modo a não deixar dúvidas às suas criaturas, a razão pela qual as criara. Não existe, pois, razão plausível para que algumas criaturas sejam destinadas a servir e outras a serem servidas, sob os olhares complacentes do Criador de ambas. Da mesma forma, não existem razões plausíveis para que tudo aquilo produzido no planeta, por Ele criado, não seja dividido por todas as suas criaturas de forma equânime.
O Criador, segundo parece, observa a concentração nas mãos de poucos, de tudo aquilo que é produzido, com certa bonomia e parece até que favorecendo esta concentração de forma dolosa e planejada. As religiões, de uma maneira geral, procuram fazer crer ao povo que os governantes foram indicados pelo Criador, tanto que antigamente eram os papas que coroavam os reis e os imperadores. Em sendo verdadeira a afirmativa, o Criador seria cúmplice de reis déspotas e de imperadores sanguinários que reinaram ao longo da História dos povos e das nações.
Estou convencido de que, se fosse do seu desejo, ele, que pode o mais e o menos, poderia dar um basta às injustiças terrenas, enviando, por exemplo, uma peste que só atacasse autoridades venais, ambiciosas, poderosas e malignas. Cataclismos poderiam ocorrer em todo o mundo, pela interferência divina, atingindo áreas onde estivessem concentradas as moradias dos poderosos donos deste planeta, em que nós, o povo, tivemos em alguma ocasião no tempo a infelicidade de nascer, para viver atrelado a uma servidão consentida.
Estou convencido de que, se fosse do seu desejo, ele, que pode o mais e o menos, poderia dar um basta às injustiças terrenas, enviando, por exemplo, uma peste que só atacasse autoridades venais, ambiciosas, poderosas e malignas. Cataclismos poderiam ocorrer em todo o mundo, pela interferência divina, atingindo áreas onde estivessem concentradas as moradias dos poderosos donos deste planeta, em que nós, o povo, tivemos em alguma ocasião no tempo a infelicidade de nascer, para viver atrelado a uma servidão consentida.
Porque ele não o faz? Não creio que desconheça a situação de penúria e de dificuldades em que vive 99% da população mundial, embora existam recursos para acabar com a penúria e com as dificuldades econômicas e financeiras de todos os habitantes do planeta.
Segundo estudo do Banco Mundial divulgado em 2016, com informações colhidas em 2013 (denominado “Poverty and Shared Prosperity 2016: Taking on Inequality”) e dadas às premissas adotadas no estudo, pode-se inferir que um por cento da população mundial vive na riqueza e os noventa e nove por cento restantes são os que sustentam tudo isso.
Caímos, assim, na velha questão exposta por Voltaire, ao citar o capitulo 13 da obra de Lactâncio “Da Cólera de Deus”, em que Epicuro questiona: - “Ou Deus quer extirpar o mal desse mundo e não pode, ou pode e não quer; ou não pode nem quer; ou, finalmente, quer e pode. Se ele quer e não pode, é sinal de impotência. Se pode e não quer, é malvadez. Se não quer nem pode é, simultaneamente, malvadez e impotência. Se ele quer e pode, então porque nada faz em prol da grande maioria dos seres humanos?”
Qual seria, portanto, a razão de todo o mal e de toda injustiça que reinam sobre a maioria esmagadora dos indivíduos no planeta Terra?
A única explicação plausível é de que essa nossa condição é necessária e aceita ou, até mesmo, imposta pelo Criador. Caso não o fosse, ele teria poderes para revertê-la; pois, como já mencionado anteriormente, quem pode o mais pode o menos, e se o Criador não faz nada para mudar o quadro existente é por que ele é necessário, por alguma razão que desconhecemos.
Qual a razão para que alguns poucos tenham uma vida de riqueza, de poder e de domínio e a grande maioria viva carente e submissa em uma eterna servidão consentida? Esta é uma questão que as mentes humanas, notadamente aquelas pautadas pelos sentimentos de justiça, de fraternidade e de igualdade, não conseguem alcançar.
As explicações religiosas, que não justificam a questão, afirmam que isto se deve ou a um “pecado original de seus antepassados terráqueos” ou a “erros cometidos pelos próprios indivíduos em suas vidas anteriores”.
Noventa e nove por cento das almas viventes seriam, assim, pecadoras e sofreriam nesta existência por que teriam, supostamente, cometido erros em vidas anteriores ou padeceriam de um suposto pecado original, cometido por seus ascendentes Adão e Eva (que nenhuma delas chegou, sequer, a conhecer)?
Pergunto aos leitores se isto não indicaria uma falha grave no projeto divino da criação da vida humana? Seres humanos criados por Deus e pecadores em sua maioria? Deus, considerado perfeito, teria errado em sua criação ao fazer os seres humanos quase todos pecadores?
Pergunto aos leitores se isto não indicaria uma falha grave no projeto divino da criação da vida humana? Seres humanos criados por Deus e pecadores em sua maioria? Deus, considerado perfeito, teria errado em sua criação ao fazer os seres humanos quase todos pecadores?
Portanto, apenas um por cento da população mundial seria, por esta razão, constituído por almas ilibadas que, nada devendo de existências anteriores, poderiam usufruir nesta vida dos benefícios dadivosos da riqueza e do poder? Apenas um por cento da criação seria perfeita? Noventa e nove por cento teria vindo com defeito? Digo isso por que a meta da nossa civilização é o progresso e o Desenvolvimento Econômico e Social, dos quais todos querem participar, auferindo integralmente seus resultados e suas benesses. Todavia, apenas um por cento, pelo visto, possui esse direito.
Ocorre que, paradoxalmente, é justamente este um por cento (todos nós percebemos isto, com facilidade) que se constitui nos vilões da história, aqueles que possuem os piores caracteres e os que exploram os outros noventa e nove por cento restantes da humanidade, ficando com quase toda a renda produzida pelo trabalho que estes realizam. São eles, sabemos nós, que provocam as guerras, os cismas, as cisões, as revoluções, os grandes desfalques nos governos dos Estados e que maquinam operações financeiras de grande vulto lesivas ao povo e ao erário público, sempre com o intuito de manterem o poder e a riqueza de que historicamente desfrutaram. A explicação religiosa, portanto, embora tente, não consegue justificar o questionamento que qualquer pessoa mais esclarecida faça, com respeito a essa injustiça da desigualdade terrestre.
Estaria o Criador, deliberadamente, do lado dos vilões? Estaria o Criador agindo contra a sua própria criação? Seria a criação humana, na realidade, fruto do seu suposto Criador ou possuiria ela outra origem, até então desconhecida? O Criador não interferiria em nada que se relacionasse com a sua criação ou com a criação de outrem? Estes um por cento beneficiados poderiam ter sido criados por um Criador diferente daquele que criou os demais noventa e nove por cento?
Vejam meus caros leitores, que inúmeras outras questões se colocam, quando a questão principal não é respondida de forma satisfatória.
A segunda hipótese a ser discutida (difícil de nela acreditarmos, por não ser racional) é a de que, não existindo nenhum criador e que sendo a vida humana fruto tão somente do acaso, os mais espertos, desde o início, dominaram os mais fracos e mais bobos e que esta dominação perpetuou-se até os dias atuais.
Neste caso, restaria aos dominados, insatisfeitos, a alternativa de se revoltarem e ocuparem o lugar dos dominantes para, por sua vez, exercerem a sua dominação sobre eles, em um ciclo de alternância de poder que se prolongaria eternamente: ora este um por cento de espertos dominaria os noventa e nove por cento de otários, ora este um por cento dos mais vivos seria dominado pelos noventa e nove por cento de bobos, até que, por algum fator superveniente, resolvessem todos se juntar ao conjunto da população global e dele fazerem parte “na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença”. Essa é uma hipótese difícil de se realizar, em razão da natureza humana ser egoísta, como bem sabem aqueles que se dedicam ao estudo do psiquismo humano.
O título deste ensaio “Das duas, uma!”, ainda continua, para mim, insuficiente. Digo isto por que não acredito em nenhuma das duas hipóteses aventadas até aqui. Creio que deve existir, ainda, uma terceira ou quarta hipótese.
Alguns afirmam que o nosso planeta é um planeta de expiação, onde espíritos maldosos ou pouco evoluídos encarnariam para aprender através do sofrimento. Mal comparando, seria como um presídio onde noventa e nove por cento dos prisioneiros seriam comandados por um por cento de carcereiros. Acho esta hipótese medíocre, que representaria a falência do projeto divino da criação e que não estaria a altura de um Criador que pode o mais e que também pode o menos.
A quarta hipótese é a de que seriamos fruto de um experimento de criação de vida, partido de seres mais evoluídos de outros sistemas solares ou de outras dimensões, que teriam escolhido este planeta para as suas experiências e que nos controlariam a distância e, também, através de alguns prepostos encarregados de organizar a nossa vida política, social e econômica. Nossa função seria, dentre outras, a de produzirmos determinados bens e serviços dos quais nossos criadores se apropriariam de forma velada, para que não tivéssemos ciência da nossa eterna servidão.
Assim, a Filosofia, a Ciência e a Religião, a que temos tido acesso, até o presente, teriam por objetivo impedir que nós descobríssemos a verdadeira razão da existência humana; sempre encoberta por um “Véu de Maya” ou por uma distração sensorial que nos teria impedido, até hoje, de conhecer a verdade.
Creio que existam, ainda, uma quinta e uma sexta hipóteses, mas não me arrisco a tentar aprofundá-las, sob pena de perder os poucos leitores que ainda me restam...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Ensaio de humor.
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