174. Idiossincrasias e ideologias**
Jober Rocha*
Idiossincrasia é o vocábulo que indica uma característica comportamental ou estrutural peculiar a um indivíduo isolado ou a um grupo de indivíduos. Origina-se de uma palavra grega que significa ‘temperamento particular’.
Cada ramo do conhecimento vê a idiossincrasia de uma maneira própria; isto é, possui uma peculiar maneira de caracterizá-la. Existe tanto a idiossincrasia na Medicina, quanto na Economia, na Religião, na História, etc. Existe a idiossincrasia pessoal e a coletiva.
De uma maneira geral, as pessoas costumam ter posicionamentos filosóficos frente à vida e comportamentos peculiares (por vezes estranhos) e costumam criticar aqueles que não se comportam da forma como elas acham que seja a correta. Tais comportamentos caracterizariam, pois, às suas idiossincrasias. A razão pela qual elas não acham correta a maneira de ver o mundo e de se comportar de seus interlocutores, pode ser buscada em suas raças, vivências, costumes, tradições, em seus psiquismos, em seus caracteres interiores, em seus níveis sócio-culturais, etc.
Relativamente à História, constata-se que os fatos e as transformações sociais, ocorridas no passado, sempre estiveram relacionados à figura de uma determinada pessoa, que levava para a posteridade a fama ou a infâmia sobre os fatos ocorridos em seu tempo. Mais tarde, com o desenvolvimento humano verificou-se que a História sempre foi uma construção ideológica, sujeita a um grande número de intrincados processos e acontecimentos. Como alguém já disse, a história das guerras sempre foi escrita pelos vencedores.
Ideologia, por sua vez, segundo os dicionários, é um termo que possui diferentes significados e duas concepções: a neutra e a crítica. No senso comum o termo ideologia neutra é sinônimo de ideário, contendo o sentido de um conjunto de idéias, de pensamentos, de doutrinas ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e, até mesmo, políticas. Neste caso, o indivíduo é levado a agir, da forma que age, motivado por bons sentimentos, que representam, segundo a sua maneira particular de ver, a melhor solução para a questão que se apresenta.
Vejam que, neste caso, existe certa superposição com o conceito de idiossincrasia.
Para autores que utilizam o termo sob uma concepção crítica, a ideologia pode ser considerada como um instrumento de dominação, que age por meio do convencimento das pessoas (persuasão ou dissuasão; mas, não por meio da força física), de forma prescritiva, alienando a consciência humana. Neste caso, com toda a certeza, existe um sentimento de ódio implícito, ódio este com relação à ideologia atual ou ao sistema dominante, que se deseja destruir para implantar novos, lastreados naquilo que se está ‘vendendo como verdade’.
Assim, em meu ponto de vista, os indivíduos escolhem ou elegem suas ideologias neutras em razão de suas idiossincrasias e não o contrário. O contrário; isto é, o fato de possuírem suas idiossincrasias em razão de suas ideologias, ocorreria, apenas, com relação à concepção de ideologia critica.
Isso nos leva a considerar que nem todos os indivíduos que defendem determinadas ideologias, o fazem pelas mesmas razões ou motivos. Nem todos são dominados por aquele sentimento de ódio mencionado; porém, apenas os que foram convencidos ideologicamente pela persuasão ou dissuasão.
Os primeiros buscariam ver os seus pontos de vista aceitos e adotados por seus semelhantes, através do diálogo e da argumentação; posto que, aquela maneira de ver as coisas sempre esteve presente de modo claro em suas mentes. Tratar-se-ia, apenas, de tentar convencer aqueles que pensassem de forma diferente, mediante argumentos; sem que houvesse nenhuma imposição, obrigação de crença ou mecanismos psíquicos de convencimento.
Os segundos buscariam vê-los adotados até mesmo através da força, mesmo que eles próprios tenham sido convencidos a adotar aquela ideologia através do convencimento e da persuasão. Isto se dá por que eles, ao serem convencidos de algo que não estava em seu íntimo, até então, passam a se julgar vítimas inocentes de tremendas injustiças implantadas, de má fé, pela ideologia vigente a que tentam destruir.
Um exemplo claro daquilo que digo, pode ser encontrado entre aqueles que vivem sob alguma forma primitiva de socialismo ou comunismo, em comunidades isoladas. Eles não desejam impor a sua maneira de viver aos demais habitantes do mundo, de forma violenta. Quem deseja impor o socialismo ou o comunismo de forma violenta são aqueles que foram doutrinados e convencidos de que o capitalismo (seu eventual opositor) é algo mau e que precisa ser destruído, seja da forma que for, mas, principalmente, pelo uso da força. O mesmo ocorre com respeito às demais ideologias existentes.
As ideologias, para serem implantadas, conforme já dito, muitas vezes, necessitam destruir aquelas anteriormente instaladas a que vieram substituir. Neste particular, o número de vítimas sacrificadas para que a mudança se realize monta, por vezes, a casa dos milhões.
Para conseguirem implantar o Comunismo na Rússia (primeiro país onde esta experiência foi tentada), apenas no período de 1937-38, três milhões de pessoas foram fuziladas. Oito milhões de seres humanos estiveram presos em campos de trabalhos forçados. Cerca de vinte milhões de pessoas tiveram suas existências devastadas em nome do “mais belo ideal da humanidade”.
Na Revolução Cubana, também de ideologia comunista, calcula-se em cerca de 85.675, o número de vítimas entre assassinados, desaparecidos, feridos ou que fugiram para o exterior. Adicionalmente, cerca de dezesseis mil mortes, ocorreram em combates durante esta revolução. Ao final, a ideologia marxista e a forma de governo comunista acabaram ruindo na própria URSS, após a Glasnost e a Perestroika, ficando restrita apenas à Rússia, à Cuba e a alguns países africanos.
No referente à implantação do Nazismo, na Alemanha, informações disponíveis indicam a morte, por assassinato, desnutrição, trabalhos forçados e doenças, de cerca de seis milhões de judeus, dois milhões de poloneses, um milhão de ciganos, quatro milhões de prisioneiros soviéticos, duzentos mil deficientes físicos e mentais, cem mil maçons e cinco mil testemunha de Jeová. Note-se que estes dados são estimativas, pois os valores reais podem chegar ao dobro. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Nazismo deixou de existir, como forma de governo, em todo o mundo.
Com relação ao Capitalismo, Gilles Perrault, em seu “O Livro Negro do Capitalismo”, estima em 58 milhões, o número de mortos na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais; além de mortes nas várias guerras coloniais, repressões, conflitos étnicos e vitimas da fome e da desnutrição, chegando a uma cifra estimada da ordem de cem milhões de mortes atribuídas ao Capitalismo e a sua implantação no mundo, durante o século XX.
O Capitalismo tem sobrevivido em meio de crises cíclicas, tem consumido o meio ambiente de uma forma sem precedentes na história da humanidade, tem proporcionado inúmeras guerras motivadas pela disputa de matérias primas e de mercados consumidores, tem acumulado déficits fiscais na maior parte dos países e gerado uma legião de pobres e miseráveis nos países periféricos do Terceiro Mundo.
Relativamente ao Fascismo, após 1922, diversos países foram influenciados por esta ideologia: Itália, Hungria, Suíça, Bulgária, Áustria, Albânia, Brasil, África do Sul, Espanha, Portugal, Romênia, Finlândia, Bélgica, Grã Bretanha, Japão, China, Iraque e Argentina. Embora não disponhamos do número total de mortes causadas pelo Fascismo, em todo o mundo; apenas na Campanha da Abissínia (atual Eritreia), meio milhão de africanos morreram, além de cinco mil italianos. Formalmente, o Fascismo como forma de governo não mais existe; existindo alguns governos Neo-Fascistas, que se escondem por detrás de uma capa democrática.
No que se relaciona com o Anarquismo, movimento inspirado pelo russo Mikhail Bakunin, em meados do século XIX, constata-se que o mesmo influenciou diversos acontecimentos políticos, como, por exemplo, as Comunas de Lyon e de Paris; a Insurreição Anarquista de 1918, no Rio de Janeiro; e a Revolução Espanhola de 1936. Eu não sabería dizer quantos morreram ou foram sacrificados na tentativa vã de sua implantação, que não chegou a concretizar-se.
Movimentos de cunho Nacionalista têm se verificado, ao longo da história, em diversos países do mundo. Na Europa, destacam-se o Pan-Eslavismo, o Pan-Germanismo e o Revanchismo Francês. Na Irlanda, o Movimento Nacionalista Irlandês, colocou em lados opostos católicos e protestantes (dominados e dominadores). Desde 1846, milhares de vítimas têm sido contabilizadas, nesta disputa pelo poder naquele país.
Os movimentos nacionalistas anti-ocidentais, surgidos no Oriente Médio, na África, na Ásia Meridional (incluindo Índia, Paquistão e Sudeste Asiático), têm suas origens nos grupos fundamentalistas existentes no século XIX. No século XX, os Estados Unidos da América e o Reino Unido, no âmbito da Guerra Fria, apoiaram a ascensão destes grupos no Oriente Médio e na Ásia Meridional, como forma de oposição à expansão soviética na região. Após a ascensão destes movimentos, voltaram-se eles contra os próprios países ocidentais que os apoiaram. Ainda, durante o período da Guerra Fria, na América Latina, surgiram diversos Movimentos de Libertação Nacional que, embora de cunho nacionalista, tinham, contraditoriamente, por base a ideologia comunista, que é internacionalista.
O Socialismo existe em alguns poucos países desenvolvidos da Europa que, no entanto, ainda fazem uso do sistema capitalista de produção. Nestes países, a renda é bem distribuída e os serviços sociais e de infra-estrutura funcionam bem; principalmente, por se tratarem de países ricos, com poucas populações e com elevados níveis educacionais, características estas encontradas em apenas poucos países ao redor do mundo.
Se levarmos em consideração os holocaustos indígenas (durante a colonização do Continente Americano); a Revolta Circasiana, de 1860 (Cáucaso e Chechênia); o Massacre dos Hererós e dos Namaquas (1904/1907), na África; o holocausto Ucraniano (1932/1933), pelos soviéticos; o holocausto dos Curdos (1937/1938), pela Turquia; o massacre dos Armênios (1915/1917), pela Turquia; o massacre dos Sérvios, pelos Alemães, durante a Segunda Guerra Mundial; o genocídio dos Bengalis (1971), pelo Paquistão; o massacre do Timor - Leste (1975/1999), pela Indonésia; o genocídio da Bósnia (1992/1995), pelas forças da Sérvia; o massacre dos Tutsis (1994), em Ruanda; o massacre dos Tibetanos (a partir de 1950), pela China; o genocídio Cambojano (1975/1979), pelo Khmer Vermelho; a Guerra do Vietnam; a Guerra do Afeganistão; a Guerra do Golfo Pérsico e a Guerra da Palestina; além de inúmeras outras não consideradas, veremos que milhões de seres humanos têm perdido as vidas em nome das ideologias de sistemas políticos e econômicos; como também das religiões, e de suas implantações em todo o mundo.
Acredito que todos nós tenhamos as nossas idiossincrasias, que não são movidas pela maldade, e que, com elas, convivamos de forma pacífica com os nossos semelhantes que pensam de maneira distinta; pois, desconheço qualquer povo que possua o mal, disseminado e reconhecido, como uma característica intrínseca do conjunto daquele povo.
Só nos tornamos violentos, tentando fazer com que adotem a nossa maneira de ver as questões ideológicas, quando somos influenciados por alguma delas, que nos persuada de que temos sido enganados, até então, e de que esta nova forma ideológica e política de administrar a Economia e as relações sociais, que nos impingem, é melhor e mais justa do que a anterior.
Esta é, segundo eu penso, a razão pela qual os ideólogos buscam sempre os mais jovens para disseminar suas ideologias. Os mais velhos, em razão de suas idiossincrasias, dificilmente se deixam levar na conversa...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Ensaio.
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