171. Uma Experiência Inusitada**
Jober Rocha*
Certa ocasião, como sempre fazia nas segundas-feiras, eu acordei bem cedo me preparando para escrever alguma coisa: um ensaio, uma crônica ou, até mesmo, um conto. Pouco tempo depois de sentado ao computador, notei que minha mente vagava por locais distantes, de épocas remotas. Repentinamente, como se houvesse regressado a uma vida passada, encontrei-me no século XVI, frente a frente com Niccòlo Maquiavelli, no palácio de Lorenzo de Medici, em Florença, Itália.
Maquiavelli (ou Maquiavel, como aqui no Brasil é conhecido) acabava de entregar o seu livro ‘De Principatibus’ (O Príncipe), a Lorenzo II, que o recebeu com frieza e constrangimento, segundo eu pude perceber.
Saindo do palácio, pouco tempo depois, e caminhando junto com Maquiavel por amplos corredores de mármore, notei que este me fitava como se percebesse a minha presença ao seu lado. Parando de repente e olhando-me bem nos olhos disse: Brazilian Es? (em latim: - Você é brasileiro?). Ante minha resposta afirmativa, ele continuou, agora deixando de lado o latim e falando em português: - Tenho um recado muito importante para o seu presidente! Como você pode ver, eu também tenho visões do futuro e conheço o seu país, que foi descoberto por Cabral há apenas treze anos, pois estamos em 1513. Você poderia tomar nota para entregar esta mensagem ao presidente atual?
Não sei como, já que a minha mente estava vagando por Florença e o meu corpo continuava, ainda, sentado frente ao computador em meu escritório, eu disse, gaguejando: - Claro, Messer Maquiavelli, pode falar!
Na medida em que ele começou a se comunicar comigo, na escadaria do palácio em Florença, as minhas mãos sobre o teclado do computador, no Brasil, passaram a digitar furiosamente, como que movidas por uma força desconhecida que não me pertencia. Transcorrido um determinado intervalo de tempo, sobre o qual não posso precisar ao certo a sua duração, minhas mãos cessaram de datilografar a mensagem ditada por Niccòlo e a minha mente, ainda em Florença, viu ir esmaecendo, aos poucos, a figura imponente daquele pensador político italiano, até que ela desapareceu por completo. Logo em seguida, me vi sentado em frente à tela do meu computador, onde, fixando melhor os olhos, pude ler o seguinte texto:
O Presidente (Praeses)
“Espero senhor presidente do Brasil, que aceite este pequeno presente com o mesmo espírito com que lhe é, por mim, oferecido.
Caso se digne a folhear as poucas páginas que preparei, perceberá que desejo, apenas, que conduza o seu país e o seu povo pelos caminhos da prosperidade, da grandeza e da felicidade. Espero que receba o texto com entusiasmo e alegria e não com a mesma frieza e descaso, com que dádiva semelhante (livro a que nomeei ‘O Príncipe’ e que foi, nesta data, por mim ofertado com enorme boa-fé ao meu soberano Lorenzo II), provocou neste meu contemporâneo, ignorante das coisas de Estado e ingrato potentado.
Espero, ainda, que não me considere presunçoso por querer dar conselhos a um presidente; porém, como eu já disse a Lorenzo, da mesma forma que um pintor necessita estar na planície para pintar uma montanha; para aconselhar a um presidente é preciso ser gente do povo, criada no sofrimento das desigualdades e na necessidade das coisas materiais.
Da mesma forma que alertei Lorenzo II, alerto o presidente deste grande e rico país que é o Brasil, sem esperar nenhuma recompensa pelos conselhos que me custaram horas, dias e, seguramente, meses de longas meditações e intensos raciocínios; no entanto, se baixar os olhos da sua posição altaneira para a situação modesta em que me encontro, neste passado remoto, poderá reconhecer os grandes e imerecidos sofrimentos que me foram impostos por um fardo cruel e, com certeza, saberá recompensá-los (como sempre tem feito com aqueles empreiteiros que o ajudaram em suas obras faraônicas aí neste belo país do futebol), da forma que lhe parecer mais adequada; mesmo que seja, tão somente, através de missas mandadas rezar por vossa magnificência, em alguma igreja local, pela intenção da minha humilde alma...”
I. Sobre O Modo De Um Presidente Governar O Estado
“Existem várias maneiras de se governar um país como o Brasil, por alguém que jamais passou por esta experiência anteriormente, como você, e acho que a melhor delas é procurar a assessoria e o conselho de gente honesta e competente. A sua falta de conhecimento e de leitura, todavia, poderá ser sanada, desde que tenha bom senso e se aconselhe com pessoas íntegras e experientes. A pior coisa que pode acontecer com um presidente inculto e inexperiente é tomar conselhos com gente mais inculta do que ele e tão inexperiente quanto. Pior ainda quando, além das duas características mencionadas anteriormente, estes conselheiros unem uma nova, qual seja: a vontade incontrolável de se apropriar daquilo que não lhes pertence, como parece ser a tônica daqueles que o assessoram neste momento”.
II. Sobre Aqueles Presidentes Que Através De Atos criminosos Chegaram Ao Governo De Um Estado.
“Pode-se chegar ao governo de uma nação democrática, como o Brasil, de duas formas: mediante o sufrágio popular universal honesto ou através do mesmo sufrágio universal fraudado. Ambos são eficientes, já que possibilitam alcançar os objetivos a que eles se propõem; entretanto, o primeiro deles é melhor do que o segundo, pois, este último, quando descoberto, além de permitir tornar nulas as eleições populares, em razão de fraude eleitoral, ainda tem a desvantagem de poder conduzir o presidente, eventualmente eleito, para uma prisão no interior do país e de difícil fuga, junto com todo o seu séquito de companheiros de partido. Reconheço que a moderna tecnologia de apuração de votos, neste país que admiro, é um convite à fraude, principalmente partindo de candidatos à reeleição; já que, o controle que estes possuem sobre o pleito e os seus resultados, é quase total, em razão do aparelhamento que, seguramente, ao longo do primeiro mandato, conseguiram implantar na máquina do Estado e nos três poderes da república. Entretanto, sempre existe algum risco de a fraude ser descoberta, mediante denuncia de algum cabo eleitoral mal remunerado ou de alguma (algum) esposa (o) ou amante insatisfeita (o) ou traída (o) e, portanto, vale a pena acautelar-se a respeito”.
III. Os Deveres Dos Presidentes Para Com Os Seus Soldados.
“Os militares deste seu magnífico país devem, em primeiro lugar, ser tratados com respeito; quando menos seja, por serem aqueles mais bem treinados no uso das armas e das táticas de guerra e os que podem, eventualmente e como já ocorreu no passado, destituí-lo do seu cargo e colocá-lo atrás das grades, se assim o desejarem. Medidas de caráter revanchistas, contra eles, não costumam surtir nenhum efeito e só despertam a má vontade e a discordância por parte daqueles que não desejam ser molestados. Os soldados devem ser bem alimentados, pagos em dia e com aumentos anuais que compensem a inflação. Seus equipamentos bélicos devem ser modernos, estar em bom estado de funcionamento e ser eficientes. Deve ser providenciado treinamento adequado, visando à proficiência no uso dos mesmos e também nas modernas táticas e estratégias de guerra. Soldados descontentes e sem ocupações de ordem militar, desde os tempos de Sun Tsu e do Império Romano, costumam pensar, amiúde, em conspirações para destituir aquele que é identificado como o responsável pelos seus descontentamentos e pela obsolescência dos seus armamentos. Bons soldados e razoável poderio militar, além de dissuadirem ataques externos de eventuais inimigos, permitem, ademais, que o presidente fale grosso nos fóruns internacionais, satisfazendo, assim, o seu ego e alegrando aqueles que, à sua volta, lhe admiram e enaltecem”.
IV. A Crueldade E A Clemência: Se É Preferível Ser Amado Ou Temido Pelo Povo
“Embora aqueles que cheguem a comandar um país desta dimensão, e com a enorme população que dispõe, desejem integral obediência de seus comandados, alguns conseguem tal intento através da crueldade e outros através da clemência. Em se tratando de chefiar uma população constituída, tão somente, de masoquistas, aqueles que comandam com crueldade teriam, desta forma, assegurados os seus mandatos (ou empregos) ‘ad eternum’. Tratando-se, por outro lado, de uma população onde só existissem sádicos, os governantes dóceis e clementes possuiriam grandes chances de serem constantemente reeleitos, para serem massacrados por seus sádicos eleitores. Como na prática estas duas hipóteses jamais ocorrem, os governantes de um país como o Brasil devem procurar sempre alternar, perante seus comandados, a crueldade e a clemência; isto é, ser clemente para com as elites e os ricos, e cruel para com o povo e os pobres. O mandatário de um país com a extensão territorial do Brasil e com uma população tão dócil e ordeira como aquela que preenche os seus municípios, todavia, não precisaria fazer uso nem de uma nem de outra destas características; posto que, a simples mentira já é suficiente para fazer com que a população trabalhadora acredite em tudo aquilo que o governante lhe diz e siga seu destino no rebanho, em direção ao matadouro, sem questionar e sem se importar com o que fazem aqueles que a governam. Mentir sempre e, caso apanhado na mentira, arguir que não sabia de nada, esta é a chave para o sucesso e a permanência no poder de um presidente brasileiro.
O governante, no entanto, deve ter o cuidado de variar nas mentiras que conta, de tal forma que aqueles poucos eleitores que sabem ler, e formular questionamentos (além de possuírem uma boa memória), não venham em algum momento reclamar publicamente, alegando que já ouviram aquelas estórias e que nelas não acreditam mais. Lembro, no entanto, que o simulacro de democracia que esconde os verdadeiros donos do poder, por vezes, pode ser rompido de forma traumática por alguém (ou por alguma classe) que desconheça como as coisas funcionam neste país, com respeito aos feudos estabelecidos desde a data em que vocês se tornaram independentes do colonizador português. Portanto, o presidente, caso não seja um democrata convicto, deve acautelar-se contra aqueles que acreditam, verdadeiramente, na liberdade e na democracia e mantê-los quietos e isolados, de preferência em uma ilha distante, se não conseguir eliminá-los em definitivo”.
V. A Conduta Dos Presidentes E A Boa-Fé Dos Súditos Eleitores
“Os eleitores, em geral, são pessoas inocentes e de boa- fé, qualidades estas que não são, normalmente, atributos daqueles candidatos ao cargo máximo de um país, como o de presidente. Se estes fossem inocentes e de boa-fé, os partidos políticos aos quais pertencem não os colocariam como candidatos para vaga tão disputada e importante. A conduta de qualquer presidente eleito deve, no entanto e segundo penso, seguir em realidade os ditames da boa-fé (ditames estes tão apreciados pelos eleitores), e não apenas parecer que os está seguindo, como ocorre com freqüência. Digo isto porque, além de ser a maneira correta de agir, é, praticamente, impossível enganar a todos os eleitores durante todo o tempo e, assim, a má-fé do governante logo acabará sendo percebida por aqueles que o elegeram. Como alguns juízes neste país não se deixam corromper facilmente, pode ser que a má-fé do governante acabe por engendrar ações criminais, por improbidade administrativa, que o conduzam a perder o cargo e a ser levado às barras dos tribunais, com grandes riscos de vir a amargar alguns anos de cadeia ao lado dos assessores mais chegados. Como pode ser constatado, em que pese um governante honesto deixar o governo com o mesmo patrimônio com que entrou nele, aqueles governantes que deixam o cargo com o patrimônio multiplicado por dezenas, centenas ou, até mesmo, milhares de vezes, podem não ter o prazer e a felicidade de chegar a desfrutar, ao lado da família e dos amigos mais chegados de partido, de tudo aquilo que amealharam no cargo, em razão de sentenças transitadas em julgado, confiscando-lhes o patrimônio e mandando-os, definitivamente, para um cárcere longínquo. Você poderá argumentar que isto nunca aconteceu na história republicana do seu país, mas, lembre-se, todavia, de que os tempos e os costumes estão sempre mudando, como dizia Cícero ao afirmar: O Tempora! O Mores!”
VI. Como Se Pode Evitar O Desprezo E O Ódio Dos Eleitores
“Todo aquele que ocupa o cargo máximo de um país, será, com absoluta certeza, desprezado e odiado por aqueles cujos interesses em alguma situação foram contrariados. A única esperança para um mandatário é a de ser desprezado e odiado pelo menor número possível de cidadãos. Para tanto, deverá adoçar a maioria do povo com medidas paternalistas de grande efeito social, mas que custem muito pouco ao Tesouro do Estado. Para os demais governados, deve prometer dias melhores, que, evidentemente, jamais chegarão. Portar sempre um sorriso amigo na face e apertar as mãos de quantos encontre pelo seu caminho; levantar crianças nos braços e beijar as suas tenras faces; acenar para as multidões; mandar beijos com as mãos; usar da mentira a torto e a direito (tendo sempre o cuidado de não se esquecer daquelas que contou com anterioridade, para não se contradizer publicamente), são técnicas infalíveis para angariar a admiração das massas. Uma alternativa que também pode ser utilizada por um presidente com pouca popularidade, como parece ser o seu caso, é a de desprezar e odiar o povo, pois, segundo conceitos retirados da Física, duas forças iguais e contrárias acabam por se anular. Desprezando e odiando o povo, você poderá vir a se contrapor ao desprezo e ao ódio que este mantém por você. Evidentemente que jamais conseguirá evitar ou diminuir o desprezo e o ódio daqueles que com você convivem mais de perto; já que, estes o conhecerão com maior intimidade e não se deixarão levar por suas mentiras e falsidades. Lembre-se, no entanto, que o mandato é curto e que, no caso de ser reeleito, você sempre poderá livrar-se de todos aqueles mais chegados, que com você conviveram durante o seu primeiro mandato”.
VII. Como Deve Agir Um Presidente Para Ser Estimado Pelos Eleitores
“Para poder contar com a estima de seus eleitores, bastaria, a qualquer presidente, colocar os interesses do povo acima dos seus interesses pessoais. Quando o presidente age desta forma, trabalhando para o benefício daqueles que o elegeram, evidentemente, poderá sempre contar com a estima de todos. No entanto, dado os mecanismos de poder existentes, que o levaram a ocupar a mais alta função do país, isto, quase sempre, é, absolutamente, impossível. Alguns que, ao longo da história, tentaram proceder desta forma foram, simplesmente, eliminados em operações que pareceram acidentes, suicídio ou, até mesmo, fruto da ação de malucos ideológicos. Como, todavia, os presidentes se alternam (ao contrario dos reis e dos imperadores que, teoricamente, são considerados vitalícios), não há necessidade de buscar ser estimado pelo povo, que, normalmente, tem memória curta e não corre atrás do prejuízo; salvo alguns delegados, promotores e juízes, patriotas, competentes, sérios e honestos, contra quem é preciso sempre se acautelar”.
VIII. Os Ministros Do Presidente
“Todo presidente deve procurar, como já dito anteriormente, ser assessorado por pessoas honestas e experientes, nomeadas para os diversos ministérios (que devem ser poucos e o mínimo necessário para regular o funcionamento de alguns setores especiais do país). Tais pessoas podem ser, eventualmente, encontradas no meio universitário, na caserna e no setor empresarial. Quando o presidente busca ser orientado em seus ministérios, por auxiliares sem nenhuma formação acadêmica ou profissional, mas, apenas, porque a eles deve favores pessoais ou partidários ou porque eles foram indicados por outros partidos políticos (distintos daquele pelo qual o presidente se elegeu), partidos estes que fazem parte da base aliada, em troca, apenas, de apoio nas votações do senado e da câmara, a possibilidade de vir a ser mal orientado é muito grande e cresce ainda mais, segundo formulação matemática que desenvolvi, na razão direta dos recursos orçamentários disponíveis no caixa do referido ministério e na razão inversa do grau de instrução possuído pelo eventual ministro.
Os ministros, se não forem pessoas honestas e competentes nos setores em que atuam (como parece ser o caso dos seus, no presente momento), dispersarão os escassos recursos do Tesouro em obras desnecessárias e super faturadas, de modo a que, quando deixarem os respectivos ministérios, embora saiam dali com os bolsos cheios, as carências e as necessidades dos setores que comandaram por vários anos continuarão sendo as mesmas que eles encontraram quando foram nomeados e os cofres públicos, que estavam cheios quando eles entraram nos cargos, desta vez, ao saírem, estarão vazios”.
Isto, senhor presidente do Brasil, é tudo o que eu tinha a lhe dizer.
Do seu fiel admirador,
Niccòlo Maquiavelli
Considerações Finais Aos Meus Leitores
Ao terminar de ler o texto na pequena tela do computador, eu não acreditava que pudesse haver escrito aquilo, da forma como havia sido feito. Concordava com a matéria ali contida, mas não me dava conta de tê-la, jamais, escrito. Teria eu, por acaso, psicografado uma mensagem de Maquiavel endereçada ao presidente do nosso país? Se fosse este o caso, eu deveria encaminhá-la à nossa autoridade máxima? Teria ela a mesma reação de frieza e de desprezo que teve Lorenzo de Médici, ao receber ‘O Príncipe’ das mãos de Maquiavel?
Deixo a cargo dos queridos leitores qualquer conclusão a respeito.
_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Conto de humor
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