quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

131. A perfeição não existe, logo...


Jober Rocha*


                       A perfeição, conforme esclarecem os dicionários, designa uma circunstância que não pode ser melhorada ou um ser que reúne todas as qualidades e não tenha nenhum defeito.
                        Filosoficamente Aristóteles já considerava, em sua época, três critérios para que algo ou alguém pudesse ser considerado perfeito:
1. Aquilo a que não falta nenhuma de suas partes ou além do qual não se pode achar nenhuma das partes que lhe pertença;
2. O que possui, em sua própria espécie, uma excelência que não possa ser sobrepujada; e
3. O que atingiu seu objetivo; desde que se trate de um bom objetivo. 
                     No primeiro sentido, o perfeito seria o completo; no segundo, o excelente; e no terceiro o real ou atual, por que cumpriu seu objetivo. O primeiro e o terceiro são conceitos absolutos e, portanto, pertencem à Metafísica. O segundo é um conceito que exprime apenas a excelência relativa de algo, não fazendo parte da Metafísica. Assim, os filósofos quando estudam a perfeição tratam somente do primeiro e do terceiro significados distinguidos por Aristóteles.
                    O desenvolvimento da Ética, por sua vez, trouxe a noção da perfeição como uma idéia; isto é, uma condição que não é alcançada, mas deve, necessariamente, ser almejada.
                     A Escolástica (pensamento cristão da Idade Média que tentava conciliar a racionalidade com a verdade revelada, concebida pela fé cristã), afirmava que uma coisa era tanto mais perfeita quanto maior a sua posse do ser; e como Deus possuía todo o ser, era totalmente perfeito. Esse era o pensamento de Tomás de Aquino ao descrever a perfeição de Deus, e da sua criatura, como consistindo na posse, por ambos, do ser. 
                      Ocorre, todavia, devido à perfeição de Deus formulada pelo Cristianismo, que um ser perfeito não poderia criar coisas e seres imperfeitos; daí serem as criaturas, sob a ótica da Escolástica, forçosamente, perfeitas.
                    A contradição entre a formulação escolástica e a práxis é evidente. Todos passaram a percebê-la, de forma mais clara, após a divulgação, em 1858, da obra de Charles Darwin sobre a evolução das espécies animais. A Teoria da Evolução explica e apresenta abundantes evidências de que a diversidade biológica é o resultado de um processo de descendência com modificações, onde os organismos vivos se adaptam, gradualmente, através da seleção natural, e as espécies se ramificam, sucessivamente, a partir de formas ancestrais, como galhos em uma árvore. 
                        As igrejas cristãs logo se posicionaram contra esta teoria, pois contradizia e solapava as bases do criacionismo divino (formulado pela Bíblia, em Gênesis); no qual, a perfeição do Criador e das criaturas era a tônica.
                     Inúmeras outras contradições, surgidas com a noção de perfeição do Criador e das criaturas, se apresentaram ao longo da história do Cristianismo (e também do Judaísmo e do Islamismo). A própria vinda de messias e de profetas, enviados posteriormente, pelo Criador, deixaria evidente uma falha no Projeto Divino da Criação; já que, teria sido necessária a vinda destes messias e destes profetas para corrigir os rumos errados tomados pela humanidade.
                    O próprio dogma do Pecado Original, formulado por Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), em uma controvérsia com o monge Pelágio, da Bretanha, que se apoiou em passagens da Epístola de Paulo aos Romanos e aos Coríntios, além de uma passagem do Salmo 51, contradiz a ideia da perfeição das criaturas. Este dogma, segundo Jaques Le Goff, em sua obra “Uma História do Corpo na Idade Média”, teria contribuído muito para aumentar o poder de controle da Igreja de Roma sobre a vida sexual dos povos da Idade Média. 
                         Por outro lado, a morte de Jesus Cristo, na cruz, se justificaria como tendo ocorrido para salvar os seres humanos deste pecado ou vício de origem, que seria congênito e hereditário, contradizendo a perfeição da criação proporcionada por um ser divino perfeito.
                    Vejam, ademais, que, embora um mecanismo maravilhoso e quase perfeito, o corpo humano apresenta moléstias e enfermidades, de origem interna e externa, que o debilitam e destroem. Da mesma forma a alma (o espírito quando encarnado), que comanda o corpo e a mente humana, embora maravilhosa por suas virtudes, também apresenta vícios que a corrompem.
                        No que respeita ao Reino Vegetal, a linhagem que deu origem às plantas terrestres evoluiu do ambiente aquático. A conquista das terras secas, pelos vegetais, modificou profundamente aspectos geomorfológicos e geoquímicos do planeta, afetando, também, a evolução de todas as demais formas de vida, em uma contínua interação entre os três reinos da Natureza. A competição entre as próprias plantas, ao se intensificar, favoreceu àquelas de maior crescimento, possibilitando o surgimento de formas cada vez mais arborescentes e que originaram as primeiras florestas há cerca de trezentos e setenta milhões de anos. Assim, as espécies vegetais estão sempre em constante mutação e adaptação as condições ambientais, não sendo, evidentemente, perfeitas.
                     Relativamente ao Reino Mineral, percebe-se que este está sempre em constante movimentação e transformação, seja através dos ventos, da ação geotérmica, das marés, da luz e do calor solar, dos movimentos sísmicos, da ação da gravidade, da variação de temperatura, da precipitação pluvial, etc. Mesmo quanto às substancias químicas e ao nível atômico e subatômico, a transformação e a evolução tornam-se evidentes: substâncias sofrem transformações em que processos químicos fazem com que elas desapareçam ou ocorram reações em que aparecem novas substâncias; átomos se transformam em outros átomos diferentes, ao perderem elétrons, como, por exemplo, o caso do hidrogênio que se transforma em hélio; a corrosão do ferro que transforma seus átomos em íons, etc.
                              Através da Radioatividade (decaimento radioativo de núcleos instáveis), uma parte do núcleo de um átomo se desprende na forma de partícula alfa e novo elemento é formado, com massa atômica menor. É o caso, por exemplo, do urânio que se transforma em chumbo. 
                          Com respeito ao próprio Universo, constata-se que, embora os incontáveis corpos celestes girem todos em suas órbitas, muitas vezes, estrelas explodem e desaparecem; meteoros caem na superfície de planetas; explosões ocorrem na superfície do nosso sol; corpos celestes entram em rota de colisão e se destroem mutuamente, etc. Tudo isto comprova que a tão desejada perfeição não existe em nenhum lugar do Cosmos. 
                            Verifica-se, portanto, que nada no Universo é perfeito, no sentido do terceiro critério de Aristóteles, e que tudo se encontra em constante transformação, mutação e evolução (não tendo, ainda, atingido seu objetivo) independente dos dogmas religiosos em contrário. Como disse o físico e astrônomo italiano Galileu Galilei, no século XVII, após haver sido condenado à prisão em um tribunal eclesiástico da Inquisição e obrigado a se retratar, por divulgar e ensinar a Teoria Heliocêntrica e o movimento da Terra em torno do sol: - Eppur si muove (contudo, ela se move).
                           Assim, vê-se que nada na Natureza atende ao requisito três, mencionado no início e formulado por Aristóteles. A perfeição, mais em conformidade com a definição oferecida pela Ética, seria uma característica buscada pela própria Natureza, mas nunca encontrada. Talvez esta própria perfeição que pretendemos para o Criador não ocorra na realidade; principalmente, tendo em vista as imperfeições e o caráter evolutivo imprimido a todas as suas criações e criaturas. Um ser perfeito, evidentemente, não produziria coisas imperfeitas, tese que sempre defendeu o próprio cristianismo. Podemos imaginar e aceitar a imperfeição no Reino Animal; já que, os espíritos necessitariam evoluir, dialeticamente, para patamares mais elevados. Entretanto a imperfeição não tem sentido de existir no Reino Vegetal e no Mineral, que, conforme rezam as próprias religiões, são ausentes de espíritos.
                              O espírito em sua imaterialidade, afirmam as religiões monoteístas, sempre existiu e estaria em continua evolução. Mesmo tendo alcançado os graus mais elevados de iluminação, eu creio que os espíritos de luz (como eles são chamados), por serem imperfeitos, sempre terão algo a aprender e estágios novos de evolução para alcançar; já que, sendo o Criador único, na concepção destas religiões, nenhum espírito, por mais evoluído que fosse, poderia se igualar a eventual perfeição do seu Criador. 
                            Até para as religiões politeístas, onde existem vários Deuses, existe um status de maior ou menor grau de importância, isto é, uma ordem de precedência; tendo os Deuses habilidades individuais, necessidades, vontades e histórias distintas. Se existem esta precedência e estas distinções, que caracterizam cada um dos Deuses, os fatos indicam que nem mesmo estes seriam integralmente perfeitos, pois um deles seria mais importante que os demais ou teria criado os outros Deuses de menores status, como ocorria na Mitologia Grega e Romana. O próprio cristianismo, ao falar em pai e filho estabeleceu esta distinção hierárquica e, para não contradizer-se, Tertuliano (160-250 d.C) criou o denominado Espírito Santo, defendido por Atanásio (296-373 d.C), bispo de Alexandria e decretado por Constantino (272-337 d.C), Imperador Romano. O Espírito Santo uniria estes dois Deuses em um só; posto que, se tratava de uma religião monoteísta.
                             As religiões panteístas (aquelas para as quais Deus está presente em toda a Natureza) evidenciam, ainda mais, essa imperfeição divina. Como um Criador perfeito poderia estar presente em reinos imperfeitos que se transformam e evoluem a todos os momentos?
                                   Após tudo o que foi dito o leitor, mais comprometido com a racionalidade do que com o dogmatismo poderá exclamar, de si para consigo: 
- Se a perfeição não existe, logo, o Criador também não existe ou, caso exista, evidentemente, não parece ser uma Entidade perfeita ou tão poderosa como imaginamos!
- Por que uma Entidade que, filosoficamente, pode tudo, não poderia ter feito tudo de modo perfeito? Será que a Filosofia e a Metafísica, até agora, têm percorrido caminhos equivocados ao idealizarem um Criador perfeito?
- Será que o filósofo Voltaire deveria ter formulado apenas três das suas quatro hipóteses sobre a Natureza de Deus (O Criador quer e não pode, ou seja, é bom e não tem poder; ou pode e não quer, ou seja, tem poder e não é bom; ou não quer e não pode, ou seja, não é bom e não tem poder), descartado a quarta e última hipótese (Deus quer e pode, ou seja, é bom e tem poder) por não ser verdadeira e compatível com o Universo imperfeito da criação em que vivemos?
                                  Algumas outras possibilidades poderiam ainda ser exploradas, mas estou certo de que para alguns leitores elas poderão passar por delírios ou teorias conspiratórias. Todavia, sinto-me na obrigação de mencionar duas delas.
                                   A primeira é a de que poderíamos estar vivendo uma vida virtual ou estarmos em uma Matrix. Esta seria, assim, uma falsa realidade, na qual aquilo que vemos pode não ser, exatamente, da forma como vemos; já que, por vivermos em três dimensões, apenas, captamos aquilo que nossos sentidos percebem, deixando de perceber o que se encontra em outras dimensões e que poderia, eventualmente, apresentar-nos diferentes realidades para os fenômenos que observamos.
                                   Como não podemos sair desta Matrix, alguns autores afirmam que não devemos tentar nos afastar desta realidade em que estamos; mas aprender a viver nela, esquivando-nos das suas ilusões e olhando além da falsa realidade, para não sermos controlados e manipulados por seus idealizadores, quaisquer que sejam eles.
                            A segunda possibilidade é a de que sejamos frutos da criação (ou oriundos de modificação genética no DNA de seres inferiores, já existentes no planeta) processada por raças alienígenas, que aqui aportaram há milhares ou milhões de anos e que seriam considerados como aqueles Deuses vindos do céu, mencionados nas antigas religiões ainda hoje professadas.
                                   Esta possibilidade, hoje em dia, já é factível pela Ciência praticada na Terra. A técnica denominada Ectogênesis busca desenvolver seres humanos fora do ventre feminino. Trata-se de um útero artificial que reproduz o ambiente natural, onde o bebe é gestado em uma incubadeira em que está rodeado de líquido aminiótico sintético e controlado por uma placenta artificial que proporciona os nutrientes para que o novo ser cresça, além de eliminar os seus resíduos.
                                  Com o método da Ectogênesis o DNA poderia ser modificado antecipadamente, de forma a escolher-se as características desejadas para aquele novo ser, como a cor dos olhos, o tipo de cabelo, etc. No ano de 2074, segundo o cientista J.B.S. Haldane, cerca de setenta por cento dos nascimentos mundiais já seria feito desta forma. Assim, o milagre da criação deixará de ser divino e passará a ser humano. Se hoje a nossa Ciência já dispõe desta técnica, o que dizer de civilizações alienígenas bem mais adiantadas do que a nossa, que conseguem (e já conseguiam no passado) chegar até nós com as suas naves?

                                   Estas duas hipóteses não poderiam ser descartadas, na medida em que as nossas origens ainda não foram satisfatoriamente explicadas pela Ciência oficial, que deveria ser religiosa, política e ideologicamente isenta, mas que, na realidade, não o tem sido até os dias atuais.


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016


130. A Arte e a Ciência de passar despercebido


Jober Rocha*


                 É uma característica natural, da maior parte dos seres humanos, gostar de se destacar em alguma coisa, de ser notado e admirado pelos demais. Desde os tempos mais remotos, inúmeros personagens famosos, ao longo da História Humana (reis, imperadores, filósofos, inventores, escritores, médicos, guerreiros, sacerdotes, etc.), têm buscado sobressair-se sobre seus contemporâneos, deixando seus nomes indelevelmente escritos no Livro da Vida. 
                 Muitos tiveram os seus nomes imortalizados em razão de suas virtudes, outros em razão de seus vícios; mas o fato é que, tanto uns quanto os outros, destacaram-se em suas épocas, chamando a atenção daqueles que viviam neste mundo e despertando sobre eles a atenção dos que habitavam no mundo dos Deuses e das Divindades, fazendo com que alguns destes (com poder decisório sobre o trânsito das almas humanas), focassem seus espíritos e olhares divinos naquelas simples criaturas feitas de matéria.
             Conta-se que um centurião romano que, por covardia, fugia de uma batalha, ao ser repreendido pelo próprio imperador, César, sacou da espada e tentou matá-lo, para poder continuar fugindo; sendo morto pela guarda pessoal do imperador. Ao despertar a atenção para a sua pessoa, o centurião encontrou a morte. Talvez, se houvesse se entregado ao inimigo como prisioneiro ou se escondido em uma gruta, atrás de alguma pedra, teria sobrevivido alguns anos a mais.
                     Por outro lado, inúmeros são os episódios em que a longa vida desfrutada por milhares, se não por milhões, de indivíduos deveu-se, unicamente, ao fato de terem passado totalmente despercebidos no período de suas existências, sem nunca e em nada se destacarem (a não ser na Ciência e na Arte de camuflarem os seus corpos e as suas qualidades). Para isto, contribuiu muito a sabedoria que tais indivíduos foram capazes de desenvolver e acumular ao longo de suas vidas; mas, como nada deixaram por escrito sobre tema tão importante, tomo eu a iniciativa de fazê-lo para satisfação daqueles que se interessam em poder desfrutar de uma vida longa. 
                     Inicialmente, todo aquele que se destaca, chama a atenção dos semelhantes e provoca, de início, ciúmes e inveja daqueles que não possuem aquelas qualidades que fizeram com que ele se destacasse. 
                     Em segundo lugar, aqueles que se distinguem dos demais, por saberem que são melhores do que eles, em alguma coisa, se transformam em pessoas orgulhosas e passam a atrair, mais ainda, os ciúmes e a inveja dos seus contemporâneos; porém, agora, dois possíveis novos sentimentos entrariam em cena, quais sejam: os da raiva e da vingança. Sejamos sinceros e objetivos: reconheçamos que os seres humanos sentem raiva dos indivíduos orgulhosos e buscam deles se vingar, quer os leitores acreditem ou não nesta afirmação. Observem os seus ambientes de trabalho e contemplem os vizinhos que possuem no entorno da suas residências, para verem se tenho ou não razão?
                  Aqueles que, em sentido oposto, se distinguem por suas maldades e péssimas qualidades são, também, objeto de raiva e de vingança por parte de seus contemporâneos, evidentemente.
                    Isto tudo que foi dito já fora percebido, desde a mais remota antiguidade, pelos eremitas. Tanto é assim, que sempre procuraram o ermo das florestas e os cumes das altas montanhas geladas para edificarem suas covas, onde passariam o resto de suas vidas (que seria, certamente, bem longa), meditando, alternadamente, sobre assuntos supérfluos e importantes. Digo supérfluos e importantes, porque quem já tentou meditar sabe do que estou falando. Noventa e nove por cento dos pensamentos que nos assediam, durante uma seção de meditação, são sobre coisas supérfluas. Só a muito custo conseguimos expulsá-los e deixar fluir o um por cento das coisas importantes.
                  Mas, voltando ao assunto principal: ao despertarmos a atenção dos nossos contemporâneos sobre as qualidades ou defeitos que temos, nós atraímos, como mencionado, todos aqueles sentimentos já referidos; porém, ao chamarmos a atenção dos Deuses sobre as nossas pessoas, seja pelo excesso de virtudes ou de vícios, corremos o grande risco de sermos por eles chamados, logo em seguida, para elogios, no primeiro caso, ou para reprimendas, no segundo.
                        Assim, depois de muito meditar, cheguei a algumas conclusões sobre a Arte e a Ciência de desfrutar de uma vida longa; as quais, eu passo a relatar aos leitores que tiveram a cortesia e a amabilidade de chegarem até esta parte:

            1. Viaje com freqüência, pois quando o Criador se lembrar de você, terá dificuldades ou mesmo não conseguirá encontrá-lo em trânsito; tantas são as escadarias dos aeroportos e dos metrôs, os conveses dos navios, os pubs londrinos, os museus franceses, etc. etc. etc.
              2. Faça longas caminhadas pelas matas fechadas (usando roupas camufladas para dificultar sua localização); fique fora do seu domicilio a maior parte do tempo (já que este é um ponto de referência para pessoas mal intencionadas que queiram abreviar sua passagem pelo planeta, e para espíritos etéreos, estes a lhe buscarem por ordem do Criador pelas razões já expostas); use roupas que não despertem a atenção dos olhares humanos ou do Olho de Horus (aquele olho do Deus egípcio que tudo vê). Seja comedido em tudo o que fizer. Fale baixo. Não emita a sua opinião para estranhos; não busque discussões pelo simples prazer de vencê-las. Não se vanglorie de nada. Não queira amealhar riqueza, pois esta é uma das coisas que mais desperta a atenção, neste plano físico e no plano etéreo, sobre você.
           3. Não busque a glória efêmera de um destaque humilhante sobre os seus contemporâneos; glória esta que poderá abreviar-lhe os dias. Ao contrário, seja conhecido como aquele indivíduo irresponsável e que nada leva a sério. Os humanos escarnecerão de você, chamando-o de um ‘pobre coitado’, e os Deuses o deixarão em paz; pensando: - Este pobre de espírito ainda tem muito que aprender para evoluir. Deixemo-lo ficar mais um pouco, neste planeta de expiação e de aprendizado... 
           4. Passe a maior parte do tempo em alguma biblioteca pública, lendo ou escrevendo. Aproveite o longo tempo que irá desfrutar com este seu anonimato, para instruir-se e, quem sabe, não necessitar mais voltar a um planeta como este onde nada parece dar certo, onde todos são inimigos de todos, onde os viciosos parecem mais felizes e mais bem aquinhoados do que os virtuosos, onde as injustiças parecem ser a tônica e o mérito causa inveja e é malvisto.

                    Evidentemente, estas regras não valem para aqueles que acham ‘valer mais um gosto do que seis vinténs’ e que estão em busca de qualidade de vida e não de quantidade de dias vividos. A estes, recomendo-lhes que rasguem este texto ao terminar a sua leitura ou que o guardem no armário do banheiro; pois, nunca se sabe do dia de amanhã... 


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


129. Uma Noite Inesquecível**

Jober Rocha*


         Ninguém saberia dizer como aquela notícia, da vinda e do pouso de uma nave com extraterrestres, chegou à pequena cidade de São João Marcos em uma tarde ensolarada do mês de maio de 1935; mas, o fato é que ela se propagou como um rastilho de pólvora, entre os seus pacatos moradores urbanos e a gente humilde e trabalhadora do campo.
            A notícia surgiu, inicialmente, em uma conversa informal no Bar do Landi (imigrante de origem italiana, residente no local desde há muitos anos). Dali caminhou para a igreja, onde, naquele exato momento, se realizava uma missa pela alma do fazendeiro Juvêncio, falecido em queda do cavalo enquanto cavalgava bêbado, de volta para a sua fazenda. Da missa a notícia seguiu para o bordel local, conhecido como Casa da Dolores, onde o assunto foi motivo de especulações entre os frequentadores; bem como, de dúvidas por parte das moças que ali trabalhavam. Dentre estas dúvidas, a primeira e principal era saber se os extraterrestres frequentariam ou não aquele local mal afamado. A segunda, caso a primeira se confirmasse, era saber quais as suas preferências femininas. A terceira era imaginar em qual moeda pagariam as despesas e a cotação dela com relação a nossa própria moeda.
        Da Dolores a notícia seguiu célere para a Loja Maçônica da cidade, onde foi objeto de comentários, por parte do Mestre de Cerimônias, durante o Tempo de Estudos e, em razão de haver se tornado motivo de inúmeras discussões acirradas entre os aprendizes, companheiros e mestres, o Venerável viu-se obrigado a encerrar a sessão daquela noite de segunda-feira com um único e rápido golpe do malhete (os leitores maçons, evidentemente, entenderão melhor todo este processo).
          Como a maioria das pessoas mais influentes da cidade fazia parte da Maçonaria, a notícia logo estava em todas as casas; dali, se espalhando rapidamente para os cortiços e para os casebres da periferia.
           No dia seguinte apareceu uma nota no pequeno jornal local ‘ São João Marcos News’, que dizia: “Cabograma recebido dos Estados Unidos da América do Norte confirmou a iminente descida em São João Marcos, de uma nave tripulada por extraterrestres, originária de distante constelação. Segundo a agência de notícias americana, os interesses dos alienígenas são totalmente pacíficos e visam, unicamente, ao estreitamento dos laços de amizade com os habitantes de São João Marcos, povo ordeiro e trabalhador, cuja fama de boa gente já ultrapassou o nosso Sistema Solar e atingiu os mais distantes rincões do Universo”.
           O Conselho Municipal, imediatamente, se reuniu para traçar uma estratégia de como fazer para recepcionar tão distintas personalidades, viajantes estelares cheios de saber, conhecimento e experiência.
          A primeira medida foi selecionar a Comissão de Recepção, que seria constituída pelas famílias do prefeito, do juiz, do promotor, do delegado e pelo padre da igreja matriz. Alguns abastados fazendeiros se ofereceram para adquirir, por alto valor, alguma vaga ou desistência de última hora.
            A segunda medida foi elaborar um programa de atividades e de visitas ao município e seus arredores. A inauguração da nova creche, a visita à lagoa dos jacarés e uma ida ao mirante, faziam parte da programação.
                    A terceira foi de definir um local para o pouso e de mandar construir uma pequena pista e uma sede (onde as altas autoridades e os viajantes pudessem se confraternizar, beber da aguardente local, trocar presentes e saborear alguns quitutes preparados por Dona Cotinha, baiana e viúva do antigo médico da cidade). Os habitantes locais, no entanto, não contavam com o fato de aquela nota do jornal haver extrapolado as fronteiras do município e ter atingido outras cidades vizinhas.
              Pouco tempo depois, inúmeros veículos a motor, carroças puxadas por bois e burros, viajantes a pé e a cavalo, começaram a chegar à sede do município, lotando os dois pequenos hotéis e o galpão nos fundos da igreja matriz.
                 O prefeito já havia mandado fazer uma placa de bronze a ser colocada em local de destaque, com os seguintes dizeres: “Os extraterrestres, em reconhecimento a excelente administração do prefeito Zequinha na Prefeitura de São João Marcos, decidiram visitar o município no ano de 1935, durante o seu mandato, para colher subsídios sobre como bem administrar uma cidade, de modo a poderem levar novos conhecimentos de Administração Pública para a Galáxia e para o Sistema Solar de onde vieram”.
                 O padre, baseando-se na iniciativa do prefeito, também havia mandado fazer placa para colocar nas proximidades do altar-mor, nos seguintes termos: “No ano da graça de 1935, viajantes extraterrestres oriundos do espaço sideral, tendo tomado ciência das palavras proferidas pelo padre Josias no púlpito da Igreja Matriz de São João Marcos (quando este falava sobre a existência de um messias, na antiga cidade de Jerusalém, que pregava a existência de um Reino dos Céus), vieram diretamente daquele referido Reino dos Céus para confirmar ao ilustre povo deste nosso município, como a mais absoluta das verdades, tudo aquilo que, até então, havia sido dito pelo venerado padre Josias”.
                  A Associação dos Estudantes de São João Marcos, capitaneada por Dona Dorinha, diretora do grupo escolar local, iniciou a confecção de diversas faixas e cartazes de boas vindas a tão distintos visitantes. As faixas, dentre outras coisas, diziam: “Estudantes de São João Marcos saúdam ilustres visitantes extraterrestres e pedem o fim da discriminação planetária!”. “Queremos fazer intercâmbio cultural e estagiar no planeta de vocês!” “Pela gratuidade no transporte intergaláctico!” “Pelo fim do lixo espacial!”
                      Alguns dos bares da cidade lançaram novos pratos e diferentes drinques, apelando para a inusitada notícia, que atraía turistas até aquele distante município. Assim, anunciavam: “Filé à Extraterrestre (filé com arroz, fritas e um tempero secreto de origem extraterrestre)”; “Sopa de Poeira Espacial (grãos de poeira espacial, ervilhas e torradas produzidas pelo atrito na atmosfera terrestre); “Batida Estelar (cachaça, suco de meteoro e gotas de orvalho, batidos no vácuo).
                 Pelas ruas da cidade foram sendo instaladas diversas barraquinhas, cujos proprietários pareciam orientais e os produtos que vendiam assemelhavam-se àqueles originários da China. Havia naves espaciais que apitavam e acendiam luzes coloridas, foguetes que soltavam fumaça e disparavam raios luminosos, máscaras de seres extraterrestres, etc.
                    O Governador do Estado, cuja sede do governo ficava na Cidade de Niterói, adiantando-se ao prefeito do Município de São João Marcos, enviou uma equipe, daquela capital, para montar o sistema de som, o palanque e as arquibancadas, pois pretendia fazer um discurso de saudação aos visitantes e tentar obter recursos financeiros à fundo perdido, para algumas obras que marcariam com ‘chave de ouro’ o final do seu governo.
                 Na Cidade do Rio de Janeiro, Capital Federal, a pequena notícia do jornal ‘São João Marcos News’ também havia chegado, por intermédio de um assessor parlamentar que retornava das férias em casa de parentes naquele longínquo município. Logo, formou-se uma comitiva de deputados e senadores que, desejosos de comparecer ao evento, solicitaram passagens e diárias para uma semana, além de prepararem uma ‘Moção de Boas Vindas’ e de concederem, a todos os extraterrestres, a ‘Comenda do Mérito Parlamentar Interestelar Brasileiro’, criada especificamente para agraciar tão nobres visitantes. 
                  O Presidente da República, também alertado, só não iria ao histórico acontecimento em razão de compromissos internacionais inadiáveis, ademais de pane no Rolls Royce presidencial.
               Em poucos dias o município regurgitava de gente. Os alojamentos e acomodações eram insuficientes para tantas pessoas. Muitos dormiam nas calçadas, sob marquises. Alguns trouxeram barracas e as montavam próximo ao local onde seria efetuado o pouso da nave.
                  O discurso que o prefeito faria acabou vazando para a imprensa e, pelo que foi divulgado no jornal local, começava assim: “Caríssimos, idolatrados e magnânimos seres de outras galáxias. Nesta benfazeja ocasião em que pautado pelos mais nobres sentimentos de fidalguia, de fraternidade, de cordialidade e de admiração me dirijo a vossas excelências espaciais...”
                    Em um mutirão incessante, as ruas eram varridas, as paredes caiadas, as árvores podadas, o lixo recolhido. O delegado e alguns agentes faziam incursões na periferia, para deter os poucos e conhecidos ‘ladrões de galinha’ que viviam pelas aforas da cidade.
             Finalmente, chegou o grande dia, previsto não se sabe por quem, para a descida dos alienígenas. O pouso se daria por volta das vinte horas, no local demarcado. Enorme multidão aguardava, na hora aprazada, a chegada da nave. As principais agências espaciais, do mundo inteiro, embora desconfiadas de charlatanice, haviam enviado seus observadores e as moças da Casa da Dolores jamais tinham tido tantos clientes pagando em moedas fortes (dólares, euros, rublos, ienes e yuans).
                    Minutos antes das vinte horas, uma agitação percorreu a multidão. Alguém afirmara haver visto uma luz se movendo no negro céu. Alguns apontavam para o norte, outros para o sul. Fotógrafos e cinegrafistas preparavam suas câmeras e flashes. Infelizmente, tinha sido apenas um boato falso.
                Chegaram as vinte e uma, vinte e duas, vinte e três, vinte e quatro horas, e nada dos extraterrestres aparecerem. Começou a ventar e a esfriar e, por volta das duas da madrugada, caiu um forte aguaceiro, obrigando a maioria dos presentes a se dispersar. Muitos voltaram para suas casas ou para seus quartos nos hotéis. Os que estavam nas barracas, após consumirem diversas garrafas de cachaça, dormiam a sono solto. Alguns, mais religiosos, ajoelhados e molhados pela chuva, oravam, tremendo de frio.
                   Em pouco tempo, já não restava mais ninguém naquele local. Garrafas e latas vazias, sacos plásticos, jornais e revistas, caixotes e restos de comida atirados ao solo, atestavam que a raça humana ainda não estava preparada, culturalmente, para o contato com deuses oriundos do espaço e pertencentes à outra raça, talvez milhares de anos, mais evoluída que a nossa.
Ao longe eram ouvidas risadas e musica sendo tocada na Casa da Dolores, onde as moças eram insuficientes para atender a tantos clientes.
                    Os únicos que viram a grande nave iluminada, sobrevoando baixo o lugar do pouso, foram um cavalo que pastava e um gato, caminhando por sobre as telhas de um telhado em busca de uma gata. Tendo a nave, com quatro visitantes extraterrestres, feito duas passagens baixas, quase tocando o solo, e não encontrando ninguém no local, velozmente retornou para a imensidão do espaço sideral de onde viera...


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Conto premiado no Concurso Literário de Contos de São João Marcos - 2016

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

128. O Critério de Desempate


Jober Rocha*



                       A votação para a função de presidente da Comissão de Ética naquele Sindicato do Crime havia sido acirrada. Candidatos de várias posições ideológicas haviam concorrido ao pleito; já que, a presidência da comissão dava ao seu detentor um poder imenso, isto é, o de influenciar a decisão dos demais integrantes, seja para absolver seja para condenar aqueles que tivessem a infelicidade de ter os seus nomes submetidos ao julgamento da dita comissão.
                    Não que os integrantes do colegiado fossem pessoas de moral e de comportamento ilibados; pois, naquele ambiente, a maioria possuía um passado negro de malfeitos e de violações das leis, passado este que buscavam a todo custo esconder dos amigos, dos conhecidos, de eventuais admiradores ou de críticos. Finalmente, apurados todos os votos, dois candidatos de posições ideológicas totalmente divergentes haviam obtido uma quantidade igual de sufrágios e estavam empatados. Ambos, instados pelos outros companheiros a que abrissem mão da candidatura própria, em detrimento da do seu adversário, negaram-se, peremptoriamente, àquela demonstração de benevolência, de boa fé e de espírito cívico.
                    Pelo regimento interno, o critério para o desempate deveria ser o da idade; ou seja, o mais idoso tinha prioridade sobre o mais novo. Ocorre que os dois haviam nascido no mesmo dia e na mesma hora, inviabilizando, assim, a aplicação do critério existente. Um segundo artifício para o desempate, também previsto no regimento, era o grau de instrução; porém, da mesma forma como ocorrera anteriormente, ambos possuíam apenas o Primeiro Grau completo, tendo concluído o curso no mesmo ano e no mesmo dia. Este critério de desempate, portanto, também não poderia ser aplicado.
                      A votação, como ocorria sempre naquela casa em dia de sufrágio, transformou-se, assim, em um contencioso onde todos falavam ao mesmo tempo. Alguns deles se ofendiam com injúrias proferidas à distância. Outros faziam ameaças de morte, velada ou explicitamente, aos demais componentes da comissão ou, até mesmo, partiam para agressões físicas que eram contidas por alguns seguranças atentos. 
                       Finalmente, alguém de bom senso propôs que a disputa se fizesse através da análise e da comparação do Currículo de cada um daqueles dois candidatos mais votados. Aprovada por unanimidade a referida proposta, esta entrou logo em vigor e um relator nomeado passou, então, a discorrer em voz alta sobre a vida pregressa de ambos os concorrente, através da leitura de seus currículos. A seção objetivando a escolha do presidente da comissão, obviamente, a partir daquele momento, passou a ser secreta e aqueles que nada tinham a ver, diretamente, com a referida eleição foram obrigados a deixar o recinto, cujas portas foram em seguida trancadas.
                      A formação educacional, como já vista, era a mesma: Primeiro Grau completo, de ambos os competidores. A experiência profissional também era equivalente; pois os dois haviam sido ajudantes de caminhoneiro, vendedores ambulantes e frentistas de postos de gasolina.
                          Em determinado momento, pareceu que um deles havia passado a frente do outro: foi quando o relator mencionou que ele estivera preso, durante seis meses, por consumir drogas ilícitas. Logo em seguida, como o outro também havia estado preso, durante o mesmo período, por vender drogas ilícitas, a diferença entre eles voltou a ser anulada.
                    A disputa seguia acirrada, sob os apupos, as palmas e a torcida dos presentes. Os palavrões, as ofensas às progenitoras, os gritos e as ameaças reverberavam pelo amplo salão, ricocheteando nas paredes e saindo por debaixo da porta, para alegria daqueles que haviam sido colocados para fora da sala e procuravam inteirar-se do desfecho colando o ouvido na parede. Alguns dos presentes abriam saquinhos contendo um pó branco, que aspiravam como se fosse o antigo rapé consumido pelos cavalheiros chiques durante o Segundo Reinado e o início da República. Um visitante de outro país, que ali chegasse naquele momento, pensaria haver errado de endereço e penetrado na cela destinada aos loucos furiosos em algum manicômio judiciário.
                     A competição prosseguia, sob a monótona voz do relator: -“Processos em que o candidato é réu na Justiça de Primeira Instância: 40; processos que responde na Justiça de Segunda Instância: 20; processos em Juizados Especiais: 30; processos na Vara de Execuções Penais...; processos no Tribunal de Alçada Civil...; processos no Tribunal de Alçada Criminal...”
                       Finda esta parte e com os candidatos ainda empatados, foi dado início a leitura da relação de contas correntes em paraísos fiscais, pertencentes a cada um dos contendores (e apresentados os respectivos extratos bancários, com os montantes depositados nestas contas).
                           A partir daquele momento, todos notaram que passou a sobressair-se o currículo de um dos candidatos. A relação de suas contas era tão grande que, aos poucos, o burburinho na sala foi cessando e todos os presentes passaram a prestar grande atenção ao que era lido pelo relator: - “Número de contas em Grand Cayman, 30, e valor total depositado cem milhões de dólares; número de contas nas Ilhas Seychelles, 45, e valor total depositado duzentos milhões de euros; número de contas em Hong Kong, 10, e valor total depositado vinte milhões de dólares; contas em Samoa, 20, e valor total depositado cinco milhões de euros; contas nas Bahamas...”
                         Em pouco tempo a vitória daquele candidato estava mais do que evidente, pois o seu oponente possuía menos da metade dos recursos que ele dispunha em suas contas correntes, secretamente abertas naqueles diversos paraísos fiscais espalhados pelo mundo. Os vultosos depósitos existentes, em bancos no exterior, tinha sido finalmente o critério desempatador de tão renhida disputa. Proclamado vencedor sob os aplausos dos presentes, ele foi efusivamente cumprimentado até pelo rival perdedor. Certamente, aquele derrotado candidato à vaga de presidente da comissão estava contente e satisfeito por haver sido vencido por um colega tão competente e tão profissional naquilo que todos ali faziam.
                         O vencedor, demonstrando ar de tranqüilidade superior, convidou os presentes para um almoço, às suas expensas, em churrascaria próxima. Lá, enquanto bebia uma dose de uísque 50 anos, ele já maquinava novos artifícios de engenharia financeira para extorquir recursos daqueles que, eventualmente, viessem a cair nas malhas da comissão que ele agora presidia e, assim, reabastecer as suas contas bancárias no exterior. Convidou, logo de início, o colega perdedor para ser o seu adjunto e auxiliar direto naquele colegiado, visando mantê-lo sob constante vigilância e, além disto, cooptá-lo para as futuras operações ilícitas de absolver os acusados que concordassem em pagar pelas suas absolvições e de condenar os que não pagassem.
                            Alguém propôs um brinde à sua vitória e ele mandou o garçom servir champanhe Veuve Clicqot aos presentes. Pouco depois, saboreando um pedaço da picanha redonda ao ponto, que o garçom servira naquele momento, ele declamou para os colegas presentes um velho poema que aprendera na juventude e que era considerado como um verdadeiro hino pelos membros daquele Sindicato do Crime: - “Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! Não verás nenhum país como este! (...) “Boa terra, jamais negou a quem trabalha o pão que mata a fome, o teto que agasalha.”




_*/ Economista, Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

terça-feira, 23 de agosto de 2016


127. Somos tão fracos, mas tão fortes...**


Jober Rocha*


           Somos tão fracos quando sucumbimos às vicissitudes que a vida nos impõe; quando choramos sobre os corpos sem vida dos seres que amamos e quando deparamos com mistérios insondáveis cujas explicações ignoramos, mas cujos efeitos perversos sobre o nosso entorno bem podemos perceber.
               Somos tão fracos quando nos entregamos aos vícios que corrompem o corpo e a alma; quando temos a exata noção do quanto desconhecemos neste vasto universo em que existimos e quando nos sentimos impotentes para mudar o curso das nossas próprias vidas.
            Somos tão fracos quando temos as nossas existências submetidas e os nossos destinos comandados por seres humanos egoístas e de má índole, cujos únicos objetivos consistem na acumulação de poder e de riqueza, não hesitando, para tanto, em cometer as mais graves atrocidades e as mais terríveis violações dos direitos humanos.
               Somos tão fracos quando percebemos as nossas limitações, físicas e intelectuais, para vencer obstáculos que outros encaram com naturalidade e, até mesmo, como coisas corriqueiras.
            Somos tão fracos quando nos deparamos com amores desfeitos, com situações irreconciliáveis, com caminhos sem volta, com as emoções conduzindo as nossas ações e quando percebemos as distâncias inexpugnáveis que nos separam de pessoas com as quais gostaríamos de  poder interagir.
                  Somos tão fracos quando, desarmados de qualquer sentimento de maldade ou de egoísmo, nos deixamos, inocentemente, iludir, enganar e conduzir por gente mal intencionada e astuciosa, que deseja apenas o seu próprio benefício às nossas expensas. 
                 Somos tão fracos quando, premidos pelos poucos anos que nos restam, percebemos não ter alcançado os nossos objetivos na vida ou haver desperdiçado a existência de forma leviana, sem possuirmos outra possibilidade de recuperar aqueles anos que perdemos.
                 Finalmente, somos tão fracos quando nos deparamos com o término da existência Terrena, sem termos a necessária coragem de penetrar no desconhecido território da morte e ir conhecer os seus mistérios.
              Por outro lado, somos tão fortes quando temos a oportunidade de consolar seres que necessitam ser consolados; quando conseguimos superar as nossas limitações; quando conseguimos dominar os sentimentos viciosos e fazer aflorar os virtuosos; quando produzimos obras dignas de criaturas que se identificam com Aquele que as criou.
                 Somos tão fortes quando superamos o Ego e a necessidade de satisfazer os seus desejos, passando a pensar e a agir de forma coletiva; quando dedicamos o nosso tempo e o nosso esforço a praticar ações que beneficiarão pessoas desconhecidas e/ou gerações futuras; quando intercedemos junto aos poderosos para defender os direitos daqueles que nada podem.
                  Somos tão fortes quando transmitimos os nossos conhecimentos para outros; quando produzimos algo novo; quando inventamos ou descobrimos aquilo que, até então, era desconhecido; quando geramos uma nova vida e quando salvamos a vida de algum semelhante ou aliviamos o seu sofrimento físico e/ou psíquico.
                  Somos tão fortes quando conseguimos evitar o nosso erro e o erro alheio; quando protegemos a Natureza e as suas espécies, impedindo que sejam contaminadas, que se extingam ou que sejam maltratadas.
                 Somos tão fortes quando nos colocamos sempre ao lado da verdade e da justiça, assumindo integralmente os riscos que estas ações implicam; quando nos encontramos no lugar certo e na hora certa, para evitar uma injustiça, corrigir um erro, salvar uma vida.
                 Finalmente, somos tão fortes quando compreendemos e aceitamos o término da vida atual e partimos, sem temor, para o outro lado da existência com a firme convicção de que o espírito humano, que é uma forma de energia, sempre existiu e jamais poderá ser destruído.


_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Menção Honrosa no II Concurso Literário da Academia Ferroviária de Letras. 2017. Rio de Janeiro, RJ

quinta-feira, 18 de agosto de 2016


126. Os Escritores**

Jober Rocha*


               Relendo o conhecido e volumoso romance ‘Guerra e Paz’, de Leon Tolstoi, ocorreu-me comparar a vida de alguns escritores (daqueles que foram tocados pela vocação literária desde bem cedo) a um grande vulcão. Não ao vulcão que após uma primeira e única demonstração de sua monumental capacidade e potencialidade, passa o resto da vida dormitando em alguma montanha isolada ou no fundo do oceano, sem nada mais produzir de magnífico que traga novamente encanto e deslumbramento ou que cause até temor àqueles que de longe o observam.
                  O Vulcão a que me refiro (e existem muitos destes espalhados pelo mundo) é aquele que se comunica diretamente com o magma do centro da Terra, com regular freqüência. Por sua boca ou cratera vertem à luz do sol, constantemente, várias toneladas de minerais nobres e, até mesmo, alguns diamantes de quilates, fogos e purezas únicos e de rara observação no solo; fato que, por si só, justificaria aquele monumental trabalho da Natureza; bem como, a enorme quantidade de terra, lavas e cinzas que o vulcão é obrigado a lançar, pelo solo e pelos ares, para possibilitar a contemplação, pelos nossos humanos olhos, daquelas preciosidades até então escondidas no interior do planeta. 
               Alguns poucos escritores, iguais aos vulcões que mencionei, possuem uma ligação direta com a dimensão etérea onde se encontram as divindades, trazendo, dali (estou plenamente convencido), as palavras, os diálogos, os temas, os personagens, as situações, as teses e as teorias com que enriquecem seus trabalhos, produzindo, por vezes, obras-primas divinas; muito embora, em algumas ocasiões tragam junto, por força de excessiva, mas necessária, prolixidade (da mesma forma que os vulcões fazem com as toneladas de cinzas, terras e lavas que expelem, antes de trazerem à luz os diamantes), palavras, parágrafos e textos cujas únicas funções são as de trazer à luz e fazer realçar as qualidades daquelas pedras preciosas e daqueles metais nobres que tais escritores produziram, sob a forma de textos literários, científicos ou filosóficos.
                 Inúmeros outros escritores, mesmo sem poder desfrutar desta ligação com a dimensão onde habitam os deuses e deles extrair as mencionadas características de seus trabalhos, possuem, também, como que pequenos vulcões internos, que os obrigam a liberar constantemente parte da matéria prima intelectual que, em combustão, circula por suas mentes em busca da luz do olhar, da apreciação e do entendimento dos leitores.
                 Tais escritores têm uma necessidade imperiosa de produzir, ininterruptamente, textos científicos, filosóficos e literários (poesias, contos, crônicas, romances, novelas, etc.), colocando para fora de si todo aquele material em combustão, a ponto de entrar em erupção; o que faz com que, usualmente, passem várias horas por dia, em seus gabinetes, escrevendo. Aquilo que para outros poderia ser considerado como um castigo ou uma obrigação, para eles constitui-se em um prazer inaudito. Muitos escritores de textos literários vivenciam de tal forma a vida de seus personagens, que chegam a se emocionar com os destinos que lhes reservaram, enquanto escrevem suas obras; da mesma forma como se emocionarão os seus leitores, com o desenrolar daquilo que irão futuramente ler.
                 A satisfação que a maioria dos escritores sente, ao ver terminada uma boa obra de sua autoria, é comparável a do pai ou a da mãe ao contemplar o filho recém nascido nos braços do médico que o extraiu do útero materno. Digo boa obra porque, mesmo os melhores escritores, nem sempre escrevem obras das quais se orgulhem em sua totalidade. Fatores supervenientes, que eu denomino de repouso dos deuses e que muitos chamam de falta de inspiração, podem afetar uma ou outra obra de escritores tradicionalmente reconhecidos como geniais.
                   Finda uma obra ou mesmo antes disso, muitos escritores já estão partindo para outra, quase sempre sobre assunto totalmente diverso da anterior. Seus trabalhos são como uma corrente de lava que têm a necessidade de ser expelida pelo vulcão, para que a pressão interna não faça explodir todo o centro criativo, onde o magma incandescente da criação ferve. Isto que se passa com alguns escritores, também ocorre com outros artistas (compositores, pintores, escultores, cineastas, etc.); bem como, com alguns cientistas e com alguns filósofos, desde, evidentemente, que exerçam suas atividades por vocação.
                    Os leitores poderão, talvez, imaginar que ao buscar descrever algumas das características comuns aos escritores por vocação, tento, subliminarmente, fazê-los crer que me incluo nesta categoria. Nada mais longe da verdade, pois, além de jamais ter tido tal pretensão, trago vivas na memória as palavras de Niccolo Machiavelli, em O Príncipe:
                - “Assim como aqueles que desenham a paisagem se colocam nas baixadas para considerar a natureza dos montes e das altitudes e, para observar aquelas, se situem em posição elevada sobre os montes, também, para bem conhecer o caráter do povo, é preciso ser príncipe e, para bem entender o do príncipe, é preciso ser povo”.  
                   Portanto, para conhecer bem o leitor é preciso ser escritor, e para bem entender o escritor é preciso ser leitor.
                 Ao final, estou realmente convencido de que, em se tratando de obras geniais (embora materializadas estas através de seus autores), foram elas, com toda a certeza, concebidas pelos deuses em outra dimensão, gestadas nas mentes dos respectivos artistas, cientistas e filósofos, durante algum tempo, e trazidas ao público através das mãos destes virtuosos que, ao longo dos tempos, têm proporcionado enorme prazer aos amantes da Arte, da Ciência e da Filosofia e engrandecimento ao gênero humano.

_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Crônica premiada no ‘Concurso Pérolas da Literatura – 2014’. Prefeitura do Guarujá, SP.

_**/ Crônica publicada pela Academia Niteroiense de Letras. Revista Virtual ‘A Cadeira’, Ano 9 nº 1 (jan/fev/maio de 2015) coluna ‘Pensarte’. Niterói, RJ.


quarta-feira, 17 de agosto de 2016


125. O Retorno das Cruzadas**


Jober Rocha*


              As Cruzadas consistiram em episódios militares da Idade Média, de inspiração cristã, que, partindo da Europa Ocidental em direção à Terra Santa (Palestina) e à cidade de Jerusalém, objetivavam a conquista e o domínio daquela região em benefício do Cristianismo.
                   Terminada a última delas em 1272, mediante um acordo entre o príncipe Eduardo, da Inglaterra, e o sultão Barbars, do Egito, a região permaneceu em um equilíbrio instável e frágil até o ano de 1291, quando a última fortaleza cristã na cidade de São João de Acre foi tomada pelos árabes, e os remanescentes cristãos fugiram para a Europa, para a Grécia e para as ilhas de Chipre, de Malta e de Rodes. Ao todo, foram cerca de duzentos anos de conquistas e de recuos, de ambas as partes, após o Papa Urbano II ter iniciado a pregação da primeira delas, em 1095.
                  As Cruzadas, que aprofundaram as hostilidades entre o Cristianismo e o Islã, se caracterizaram pela cobiça européia de terras e de riquezas, e pela grande brutalidade por parte de ambos os contendores. A Jihad, guerra religiosa travada pelos muçulmanos contra os hereges e os inimigos do Islã (todos aqueles não muçulmanos), praticamente esquecida no início do século XII, foi reativada em decorrência do início das cruzadas.
                   Novecentos e vinte anos depois, em 2015, cristãos e muçulmanos ainda se enfrentam pelos quatro cantos do planeta, sejam em combates de tropas regulares, sejam em episódios de guerrilhas nos campos e nas cidades, ou em atos de terrorismo.
                     Na atualidade em alguns países da Europa, como na Holanda e na Bélgica, cinqüenta por cento dos recém nascidos já são filhos de famílias muçulmanas. Estudos recentes dão conta de que em 2025, um terço dos recém nascidos na Europa será de origem muçulmana.
                   As taxas de fertilidade de trinta e um dos países da União Européia encontram-se, em média, em torno de 1,38; taxa esta considerada muito baixa, frente aos 8,1 dos muçulmanos que vivem na Europa. Desde 1990, no entanto, o crescimento da população européia tem sido devido, quase que exclusivamente, à imigração islâmica. Atualmente, na França, trinta por cento dos jovens com menos de vinte anos é de origem islâmica. Em algumas regiões deste país esta percentagem chega a quarenta e cinco por cento.
                   A recente onda migratória originária da Síria e de outros países, em direção aos países da União Européia, certamente, fará com que estes dados mencionados se alterem consideravelmente para mais, em alguns poucos anos. Muitos destes emigrantes, que têm sido absorvidos pelos diversos países da Europa, possuem vínculos com organizações terroristas como o Exército Islâmico, Al Qaeda, Boko Haran, Al Shabab, Talibã, etc., trazendo problemas adicionais aos países europeus que acolhem refugiados muçulmanos. 
               Constata-se, nos dias atuais, que, em sentido contrário ao das Cruzadas da Idade Média, existe uma nova Cruzada (melhor seria chamá-la de Crescente, pois a iniciativa tem partido dos islamitas cujo símbolo é a Lua Crescente), pacífica, em andamento, através do crescimento da população muçulmana na Europa e outra, violenta, representada pela prática de atos terroristas que ceifam vidas e produzem feridos entre cristãos, judeus e muçulmanos, nos países europeus.
                 O recente atentado em Paris, onde morreram cerca de 130 pessoas e perto de 300 ficaram feridas, é um exemplo destes problemas adicionais mencionados. É de se supor que estes atentados continuarão ocorrendo, em diversas cidades e capitais da Europa.
             Como a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário, é de se esperar o acirramento da luta entre cristãos, judeus e islamitas; principalmente, em razão dos interesses econômicos e geoestratégicos envolvidos com a produção e a comercialização do petróleo, como também do radicalismo religioso destes últimos que, ademais de considerarem os dois primeiros como inimigos de Alá, almejam fazer do Islã a religião mundial e impõem a Sharia (Lei islâmica que constitui a base religiosa, política e cultural de todos os muçulmanos) entre as comunidades islâmicas do ocidente, impedindo-as de adotarem os costumes dos países ocidentais para onde emigraram.
                  Diferentemente das cruzadas da Idade Média, quando o estágio de desenvolvimento tecnológico das armas e das táticas de guerra era ainda muito primitivo, uma Cruzada atual em direção a Europa, com origem na Síria, na Palestina, no Iraque e no Afeganistão, entre cristãos, judeus e islamitas, pode conduzir o mundo para uma Terceira Guerra Mundial, com conseqüências devastadoras para toda a humanidade; já que, as principais potências envolvidas por detrás destes acontecimentos (USA, Inglaterra, França, Rússia, China, Israel e Irã) são todas elas potencias nucleares.
                     Esperemos que o bom senso prevaleça entre as elites que detém o poder no mundo e que, em futuro próximo, o radicalismo religioso ceda lugar ao ecumenismo respeitoso ou, até mesmo, a adoção de uma única religião universal, já idealizada pelos Cavaleiros Templários, de Jerusalém, pouco antes de serem presos e de terem a sua ordem extinta, em 22 de março do ano 1312, e nos dias de hoje já proposta pelo atual papa Francisco.

_*/ Economista; MS pela Universidade de Viçosa, MG; Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Publicado na Revista Ideias em Destaque nº 46, jul/dez 2015. Instituto Histórico e Cultural da Aeronáutica – INCAER. Rio de Janeiro, RJ.


124. Bem longe, lá atrás daqueles montes!**


Jober Rocha*


                    Mohamed al Mansour desembarcou sozinho no Caís Pharoux, na cidade do Rio de Janeiro. Chegara à cidade naquela manhã como um dos passageiros do navio ‘Alliance’, de bandeira francesa, que deixara Beirute, no Líbano, em novembro de 1878.
                         Dois anos antes ele havia conhecido o imperador brasileiro, Pedro II, que, com sua esposa e uma comitiva de quase novecentas pessoas, havia visitado aquele país, em novembro de 1786, navegando a bordo do navio ‘Aquila Imperial’. Pedro II e a sua comitiva haviam visitado já inúmeros países, em um tour ao redor do mundo que incluiu, dentre outros: Estados Unidos, Canadá, França, Portugal, Itália, Grã Bretanha, Alemanha, Suécia, Rússia, Dinamarca, Grécia, Egito, Líbano, Finlândia, e Suíça.
                        Alguns dias depois da sua chegada à Beirute, Pedro II, dando azas ao espírito aventureiro e pesquisador que o caracterizava, montado em uma égua branca e com apenas uma mochila, estava cavalgando, sozinho, no rumo de Baalbeck, terra natal de Mohamed al Mansour. Coincidentemente, este, também em um cavalo, caminhava, naquela mesma ocasião, pela estrada de terra em que seguia o imperador, ambos seguindo na mesma direção.
                          Mohamed era um comerciante de tecidos libanês e havia ido a Beirute receber e pagar uma carga de seda que desembarcara de um navio oriundo da China. Despachara a carga para Baalbeck e seguia para casa, calmamente, em seu cavalo.
                             Tendo os dois animais emparelhados na estrada, Pedro II, que falava vários idiomas, cumprimentou al Mansour em árabe e seguiram os dois juntos, conversando em francês, língua que Mohamed também dominava.
                            Pouco depois, atravessando o Vale de Chtaura, rumo a Baalbeck, passaram por várias cidades, dentre elas Zahle, chegando ambos aos seus destinos com o dia já escurecendo. Naquela ocasião, Pedro II parou para escrever algo em um caderno e mostrou para al Mansour o que havia escrito em seu diário, tão admirado ficara ao contemplar a cidade: “...a entrada nas ruínas de Baalbeck, à luz de fogaréus e lanternas, atravessando por longa abóbada de grandes pedras, foi triunfal e as colunas tomavam dimensões colossais”. 
                             A convite de al Mansour, o imperador hospedou-se na casa deste. Após se instalarem em seus aposentos, al Mansour convidou Pedro II para jantar, o que foi prontamente aceito por que ele nada havia comido desde a manhã daquele dia.
                                 No dia seguinte, em companhia de al Mansour, o Imperador visitou os templos de Júpiter e de Vênus, observando tudo, medindo, tomando notas e, por fim, escreveu em seu diário: “Saindo de Baalbeck, onde deixei meu nome com a data na parede do fundo do pequeno templo (Templo de Baco), que está cheio de semelhantes inscrições; lendo-se, logo depois da entrada, estas palavras: “Comme le monde est bête!”. 
                                   O imperador ficou encantado com a vida no Líbano e com o povo libanês, tendo dito a al Mansour, ao se despedir: - “Gostaria de poder contar com os libaneses em meu país. Prometo recebê-los bem e tenham certeza de que retornarão prósperos”.      
                                  Deixando Baalbeck, Pedro II dirigiu-se para Damasco, na Síria, observando, ainda, em seu diário: “Reparei melhor para a planície que, apesar de coberta de seixos, é aproveitada para trigo e, sobretudo, para vinhas. Perto de Baalbeck nasce o antigo Orontes, que vai banhar a Antioquia. À noite passada, encheram-se de neve os cabeços dos montes e que belo efeito produziram, vistos do fundo do grande templo ou por entre as seis colunas.”
                               Dois anos depois daquele dia em que conhecera o imperador brasileiro, atendendo ao convite que este lhe fizera na ocasião, Mohamed desembarcava no porto do Rio de Janeiro, sede da corte do seu amigo imperador. Tão logo al Mansour se instalou e aclimatou na cidade, foi ao Palácio da Quinta da Boa Vista procurar o imperador para uma entrevista. 
                           Recebido com cordialidade por este e após conhecer toda a família imperial, participou do almoço no palácio, ao qual compareceram inúmeros membros da nobreza local. Estranhou bastante a comida que foi servida na ocasião, composta, basicamente, de carnes de caça (capivara, jacaré e anta) e de aves locais. Havia estranhado, também, a cidade, que era bastante diferente daquela na qual nascera e vivera toda a sua vida. As ruas centrais do Rio de Janeiro estavam apinhadas de escravos, vendendo seus produtos. As praças e ruas constituíam pontos de encontro, onde interagiam os habitantes locais. A chegada de peixe fresco, vendido pelos próprios pescadores no mercado de peixe do cais; a venda de frutas tropicais pelas negras; as carroças puxadas por bois e por cavalos, conduzindo objetos, mercadorias ou, mesmo, pessoas em pequenas cadeirinhas; os vendedores ambulantes com os seus pregões de forma gritada ou cantada, às vezes acompanhados de toques de tambor ou de violão; tudo isto era bastante diferente daquilo que Mohamed estava acostumado no Líbano.
                            Todavia, como o seu objetivo principal fosse o de estabelecer um entreposto comercial na cidade, através do qual exportaria mercadorias aqui produzidas e importaria produtos que aqui não existissem ou cujos preços fossem elevados, ele logo se acostumou com os costumes e com as deficiências da cidade, deficiências estas que consistiam, fundamentalmente, na presença de inúmeros e imundos cortiços e no saneamento precário.
                             O imperador oferecera ajuda para dar partida ao seu incipiente negócio, o que Mohamed aceitou de bom grado. Em pouco tempo, com a experiência que tinha e com a ajuda de alguns nobres da corte, apresentados pelo imperador, os primeiros navios começaram a chegar com produtos vários, notadamente óleo vegetal, azeite, cedro, vinho e tecidos vários e a sair com açúcar, café, sal e madeiras.
                                Mohamed, solteiro até então, em suas freqüentes aparições na corte, seja no Teatro Constitucional, frequentado pelo imperador, seja nos saraus realizados nas mansões de nobres e de burgueses, do Flamengo, de Botafogo, de São Cristovão e da Tijuca, passou a ser disputado por algumas viúvas jovens e por inúmeras moças em idade de casar. 
                                 O progresso e a prosperidade, experimentados pela administração estável de Pedro II, influíram no sucesso dos negócios de Mohamed. Passados alguns anos, ele já morava em um pequeno palacete no Flamengo, possuía uma sege de duas rodas, com duas cortinas de couro na frente e que corriam para os lados, quando era preciso entrar e sair. Nesta sege, conduzida por apenas um cavalo, andava pelas ruas da cidade, sempre que necessitava se deslocar para algum local.
                                  Em poucos anos todas as mulheres da corte usavam vestidos confeccionados com os tecidos importados por al Mansour, que também havia entrado no ramo das jóias. Importava colares, anéis e pulseiras dos melhores ourives e artífices libaneses, que eram vistos nos dedos, pulsos e pescoços das mulheres mais bonitas da corte.
                                No Líbano, por sua vez, tanto a nobreza quanto a plebe adoçavam as suas bebidas, notadamente o chá e o café (este do Brasil e exportado por Mohamed), com açúcar brasileiro que chegava mensalmente ao porto de Beirute, transportados pelos navios enviados do Rio de Janeiro por al Mansour.
                                 Desde a chegada dele ao Brasil, já se haviam passado oito anos. Neste pequeno período de tempo ele havia enriquecido; uma coisa que em seu país seria praticamente impossível, dada a estratificação social vigente naquela ocasião.
                               Alguns meses antes ele havia conhecido, no Teatro Constitucional, uma viúva jovem que lhe fora apresentada pelo Conde de Luca, quando do espetáculo promovido pela atriz Sarah Bernhard. A viúva, embora rica e bonita, era como a maioria das mulheres brasileiras da época; isto é, totalmente inculta. As mulheres, não só no Brasil daquele tempo, mas em inúmeros países do mundo desde a mais remota antiguidade, eram consideradas inferiores e dependentes dos homens (país, maridos ou irmãos). Como tal, não eram incentivadas a se envolver nos negócios e a adquirir cultura.
                               Mohamed passou a cortejar a viúva; posto que, estava bastante atraído pelos lindos olhos negros dela, que muito se assemelhavam ao das mulheres da sua terra natal. Ademais, a viúva, sem filhos, possuía lindos cabelos negros e um porte gracioso.
                               Certa ocasião, encontrando-a em uma de suas joalherias no centro da cidade, foi, por ela, convidado a jantar em sua casa.
                              Mohamed esperou que ela saísse para escolher uma linda pulseira com que a presentearia naquela noite.
                                 Pouco antes da hora aprazada, forneceu o endereço ao seu cocheiro (nesta altura, ao invés da sege ele já dispunha de uma carruagem com cocheiro, puxada por dois cavalos) e, rumando para o endereço da viúva, começou a pensar em como o seu destino havia mudado desde que conhecera o Imperador do Brasil. Imerso em seus pensamentos, quando deu por si, estava dentro do terreno do palacete da viúva, em Botafogo.
                               Esta, tendo vindo recebê-lo ao descer da carruagem, conduziu-o à grande varanda, que circundava o palacete. Sentados em um enorme sofá, com macias almofadas, contemplavam as montanhas que cercam o bairro e falavam amenidades. Em certo momento, ela perguntou onde ele nascera. Mohamed, que nunca mais havia voltado ao Líbano, contemplando a lua cheia cujos raios luminosos banhavam a cidade do Rio de Janeiro naquela inesquecível noite, respondeu, com lágrimas nos olhos a escorrerem pela face: - Bem longe, em Baalbeck, lá atrás daqueles montes!

_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Conto premiado com Menção Honrosa no Concurso Literário de Contos “Muito Além das Montanhas”. Edt. Eber Josué, Três Corações, MG. 2016.



123. Quem sabe se não foi assim?**

 Jober Rocha*


           A quarta das leis promulgadas no Brasil referentes à escravidão – precedida das leis Eusébio de Queirós, do Ventre Livre e dos Sexagenários – foi assinada no ano de 1888. O processo gradual de abolição da escravatura finalizou, assim, com a chamada Lei Áurea, cujo nome simbólico traduz algo de muito valor, notadamente para aqueles que por ela foram beneficiados.
                  Conta a História que tendo assinado a lei, após assumir pela segunda vez a regência do país, teria a Princesa Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga comentado com o senhor João Maurício Vanderley, Barão de Cotegipe: - Então, senhor, eu ganhei ou não a partida! (referia-se, a princesa, a uma conversa mantida com ele, dias antes, em que informara ao barão acerca da sua resolução em sancionar a referida lei, já aprovada pela Câmara Geral e pelo Senado Imperial, quando este, sem atinar com os motivos da princesa para tal, teria dito: - Neste caso, a mim só me resta a porta e a Vossa Alteza o mar!). 
                  Sancionada a lei, Cotegipe, a este segundo comentário da princesa, teria respondido: - Vossa Alteza redimiu uma raça, mas perderá o trono!
                Estes diálogos, mais ou menos desta forma, foram preservados pela História do Brasil. Entretanto, reza uma lenda que o verdadeiro motivo pelo qual a princesa teria assinado a referida lei, foi um sonho recorrente que já vinha tendo há algumas semanas.
                  Sonhava a princesa, logo após adormecer, que era uma menina negra vivendo em uma das fazendas do Barão de Cotegipe. Nesta fazenda, era encarregada de ordenhar as vacas, de arrumar a casa, de fazer a comida, de alimentar a criação, etc. etc. etc. Seu dia a dia era, totalmente, ocupado com afazeres domésticos e agropecuários; tendo ela, diga-se de passagem, apenas cerca de dez ou doze anos de idade.
                O barão, nas vezes em que visitava a sua fazenda – e isto ocorria toda vez que a princesa sonhava - cobrava-lhe resultados e estabelecia novas metas, punindo-a com rigor, relativamente àquilo tudo que julgava falho e mal feito.
               A jovem escrava nutria um ódio terrível pelo barão e desejava vê-lo padecer nas profundezas do inferno, tanto quanto ela padecia naquela fazenda afastada da corte, localizada próxima da Boca do Mato, no Rio de Janeiro.
                Uma noite a jovem menina negra também teve um sonho: sonhou que era uma princesa jovem, toda poderosa, que tinha poderes para decidir sobre a vida e a morte dos seus muitos súditos. A primeira medida que tomou, em sonho, foi revogar o titulo de nobreza do barão e confiscar-lhe as propriedades, banindo-o para a África no porão de um navio negreiro que retornava vazio. A segunda medida foi libertar todos os escravos que viviam de trabalhos forçados pelo país inteiro, notadamente as crianças e os velhos.
                  Um fato curioso é que, em todos os sonhos da princesa Isabel, ela assumia a identidade da menina negra, que, também em todos os seus sonhos, por sua vez, assumia a identidade da princesa.
                Consultando um sábio esotérico da corte, relativamente àqueles sonhos estranhos, a princesa Isabel ouviu dele, pela primeira vez, a possibilidade de ela poder estar tendo contato, nos sonhos que tinha, com uma de suas vidas passadas; já que, havia nascido em 1846 e o barão em 1815. A diferença de 31 anos que os separavam, poderia justificar ter sido a princesa uma menina escrava a serviço do barão em sua fazenda, que, tendo falecido prematuramente, reencarnou como princesa na corte de Pedro II.
                  A princesa, católica fervorosa, em principio não acreditou naquela possibilidade aventada pelo sábio; porém, como os sonhos teimavam em se repetir com freqüência, buscou a jovem princesa (com 43 anos na ocasião) conselhos de padres, médicos e, até mesmo, de xamãs e de curandeiros. A maior parte das respostas que ouviu não chegou a satisfazê-la. Apenas um xamã disse-lhe algo parecido com aquilo que ouvira do sábio esotérico (note-se, a título de esclarecimento, que o espiritismo, como doutrina, surgiu, em 1857, com a publicação do Livro dos Espíritos, por Alan Kardec). 
               Na biblioteca do palácio a princesa encontrou um exemplar do livro de Alan Kardec, adquirido por seu pai, Pedro II, quando de uma viagem à Paris. Tendo lido integralmente o livro, a princesa passou a interessar-se por aquelas afirmações e experiências relatadas na obra de Kardec.
                   Corria o ano de 1888 e, naquela época, James Braid (1795- 1860) já havia dado início à hipnose científica, tendo cunhado, em 1842, o termo hipnotismo. Por outro lado, James Erdaile (1808-1868), como médico-cirurgião, já havia utilizado a hipnose anestésica em cerca de três mil cirurgias, sem a necessidade de anestesias. Jean Charcot, médico, por sua vez, já havia estudado o efeito da hipnose em pacientes histéricos.
               O sábio esotérico procurado inicialmente pela princesa era, também, um exímio hipnotizador e, ademais disto, espírita adepto de Alan Kardec.
                Em conversas posteriores, o sábio alertou à princesa que havia uma possibilidade de ela confirmar, realmente, se aqueles sonhos recorrentes possuíam algo a ver com suas encarnações anteriores. Isto poderia ser feito através de uma regressão hipnótica, método conhecido, apenas, por pouquíssimas pessoas em todo o mundo, naquela ocasião.
                Esta regressão - explicou o sábio - baseia-se na doutrina espírita, que afirma ser necessário o esquecimento do passado para que o espírito, em sua atual existência, não seja sobrecarregado com lembranças e emoções de outra vida. Afirmou, ainda, que existia uma passagem no Livro dos Espíritos que autorizava o resgate das memórias de encarnações passadas. Tal passagem era a seguinte,  conforme ele relatou à princesa:
         Ao entrar na vida corporal, o Espírito perde, momentaneamente, a lembrança de suas existências anteriores, como se um véu as ocultasse; entretanto, às vezes, tem uma vaga consciência disso e elas podem até mesmo lhe ser reveladas em algumas circunstâncias. Mas é apenas pela vontade dos Espíritos Superiores que o fazem espontaneamente, com um objetivo útil e nunca para satisfazer uma curiosidade vã.
               Assim – continuou o sábio - nessa passagem do Livro dos Espíritos, é possível que venhamos a nos lembrar de existências anteriores, sempre que haja um motivo útil, e, mesmo assim, apenas, quando os espíritos superiores aprovam.
                   Essa abordagem – segundo ele comentou na ocasião – busca extrair da hipnose regressiva o seu fundamento; ou seja, em estado alterado de consciência, a pessoa regressaria a um passado, além do limiar da vida atual, onde se encontraria uma memória extra-cerebral que permitiria o acesso à encarnação anterior.
                    A princesa, convencida das explicações do sábio, decidiu submeter-se à hipnose sugerida, como única forma de esclarecer aquele mistério que tanto a atormentava.
                     Em uma das salas do palácio, deitada em um divã, a princesa, sob as ordens do sábio, penetrou em um transe regressivo. Em pouco tempo, regredindo de idade sob o efeito da hipnose, viu-se em outra existência, como aquela menina negra com quem sonhava freqüentemente, em uma fazenda no interior. Sentiu, muito mais vivamente do que nos sonhos, toda a dor e sofrimento daquela pequena criança, obrigada a trabalhar pesado desde pequena. Viveu, por algumas horas que pareceram uma verdadeira eternidade, as vicissitudes padecidas pelos escravos naquela servidão compulsória. Percebeu, agradecida, que o fato de haver encarnado, em sua vida seguinte como uma princesa, tinha por objetivo, principal e único, o de colocar um fim àquele estado de coisas no império, que aviltava a condição humana.
                A oportunidade, para tanto, estava em suas mãos como princesa regente. A lei, que permitiria banir para sempre do Brasil a triste e trágica escravidão, já aprovada pela Câmara e pelo Senado, aguardava apenas a sua sanção. 
                      Acordando do sono hipnótico, a princesa agradeceu ao sábio e dirigiu-se ao seu gabinete mandando chamar, imediatamente, o Barão de Cotegipe.
                  Tendo este vindo a sua presença, a rainha, próxima de uma das janelas do palácio, perguntou ao barão, naquela ocasião, a sua opinião sobre a lei que pretendia sancionar em breve. A resposta do barão, já mencionada no início destas páginas, indicava ser ele contrário à referida lei que, segundo pensava, prejudicaria todos os fazendeiros e as exportações agrícolas brasileiras.
                      A princesa, com um sorriso intrigante nos lábios – não mencionado pelos historiadores - despediu-se do barão para assinar, poucos dias depois, a famosa lei.
                    Cotegipe, logo a seguir, demitido do Conselho de Ministros pela princesa regente, foi uma das últimas vozes a declarar-se, abertamente, contra a abolição geral da escravatura.
                   A Princesa Isabel, após a assinatura da Lei Áurea, nunca mais sonhou com a pequena menina negra.
                      Embora a imaginação dos escritores tudo permita, meus caros leitores, quantos episódios da nossa história; bem como, da de outros povos, foram regidos por acontecimentos totalmente desconhecidos dos historiadores e que passaram despercebidos até dos próprios contemporâneos daqueles acontecimentos? Isto, evidentemente, nós jamais saberemos...

_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Conto premiado no Concurso Literário de contos “A Lei Áurea”. Ed. Eber Josué. 2014. Três Corações, MG.


terça-feira, 16 de agosto de 2016



122. Visitando uma Loja Maçônica em Beirute


       Jober Rocha*


           Em novembro do ano de 1876, quando de uma viagem ao Líbano, o Imperador do Brasil, D. Pedro II, permaneceu por cinco dias naquele país, com uma comitiva de aproximadamente duzentas pessoas, dentre elas damas, barões, condes e viscondes. Alguns destes nobres que o acompanhavam eram maçons e haviam conseguido intermediar um contato do imperador com a mais alta autoridade maçônica do Líbano, Boulos Mass’ad, que também era o patriarca da Igreja Maronita Libanesa.
            D. Pedro II compareceu ao encontro no Grande Oriente do Líbano, na cidade de Beirute, na noite de 12 de novembro de 1876, e estava ele acompanhado por dois condes e um barão, todos os três membros da sua comitiva e igualmente trajados como o imperador, de fraque preto, luvas brancas e cartola preta. Os três serviram de anfitriões à D. Pedro II, por terem sido eles que haviam agendado àquela visita de cortesia.
       Tratado como um visitante ilustre, Pedro II sentou-se no oriente de uma das Lojas Maçônicas existentes na sede do Grande Oriente Libanês, ao lado das dignidades maçônicas presentes, muito embora não fosse um maçom. Nas seções abertas, quando é permitida a entrada de não maçons nas lojas, estes costumam sentar-se na parte ocidental da loja, mas, em deferência ao imperador, cujo pai, D. Pedro I, havia sido grão mestre da Ordem Maçônica no Brasil, foi-lhe concedida àquela prerrogativa. 
          Após a abertura ritualística, o Venerável Mestre da Loja fez uma longa saudação a D. Pedro II, na Ordem do Dia. Enquanto ele falava, D. Pedro recordava que o seu avô, D. João VI, através da Carta de Lei assinada em 20 de junho de 1823, havia suprimido todas as sociedades secretas, no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, quaisquer que fossem as suas denominações, punindo com a pena de degredo para a África por, no mínimo, cinco anos; além da multa de cem mil réis. Caso fosse provada alguma conspiração ou rebelião, induzida ou motivada por alguma sociedade secreta, seus membros seriam condenados a pena de morte. 
                  Aquela lei havia sido assinada no Palácio de Bemposta, em Portugal, no dia 20 de junho de 1823 e registrada no livro I das cartas, alvarás e patentes da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, a folha 33 vers, em 21 de junho de 1823. Pedro II lembrava-se de tudo isto, pois estivera com este livro nas mãos, em uma das viagens que fizera a Portugal.
                   Tendo sido lida a Ordem do Dia, passado o Saco de Propostas e Informações e entrado no Tempo de Estudos, muitos dos presentes inscreveram-se para falar. Alguns falavam em árabe e outros em francês, línguas que o imperador conhecia bem e dominava com facilidade. Os assuntos variavam muito, indo desde saudações ao visitante e à sua comitiva, até assuntos ligados diretamente à maçonaria libanesa ou à maçonaria mundial.
             Findo o Tempo de Estudos e passado o Tronco de Beneficência, tendo a palavra sido concedida, logo a seguir, ao Bem da Ordem, em Geral, e do Quadro de Obreiros, em Particular, D. Pedro II, tendo solicitado a palavra, com todos os presentes atentos a sua pessoa e ao que ele ia dizer, iniciou, falando em francês:
           - Meus queridos tios. Eu os chamo desta maneira porque o meu finado pai era maçom e, como tal, todos os maçons são meus tios, por serem considerados irmãos do meu pai; embora o meu avô tenha, infelizmente, passado para a História como um inimigo desta organização.
          - Meu pai teve a sua iniciação, como aprendiz maçom, em 02 de agosto de 1822, com o nome de Guatimozim, no Rio de Janeiro. Em 05 de agosto, do mesmo ano, foi aprovada sua exaltação ao grau de mestre. Em 04 de outubro meu pai prestou juramento como o novo Grão Mestre da Maçonaria Brasileira.
  - Todavia, em 25 de outubro, como grão mestre que era, encerrou as atividades da Maçonaria no Brasil, sem revelar os verdadeiros motivos para esta decisão que havia tomado. Com isto, a maçonaria ficou cerca de nove anos sem exercer as suas atividades livremente no país, só sendo reinstalada em novembro de 1831, quando José Bonifácio de Andrada e Silva, lendo um discurso preparado por Gonçalves Ledo, comentou: - A voz da política nunca mais soará no recinto dos nossos templos, nem o bafo impuro dos partidos e das facções manchará a pureza de nossas colunas.
  - Neste mesmo discurso, José Bonifácio citou o pedido de perdão do meu pai, com sincera humildade, aos maçons brasileiros e àqueles de todo o mundo, por erros, que a inexperiência conduziu, ao longo daquele breve período em que ele foi Grão Mestre do Grande Oriente do Brasil.
 - Meu falecido pai, com toda a certeza, no final de 1822, sabia, antecipadamente, daquela lei que estava sendo gestada a instâncias do meu avô, em Lisboa, e que, em meados de 1823, viria a proibir a existência das sociedades secretas nos Reinos Unidos de Portugal, Brasil e Algarves.
 - Não desejando ver nenhum maçom sob o seu comando padecer sob os rigores daquela lei, meu pai julgou por bem extinguir a Ordem Maçônica no Brasil, antes da entrada em vigor do referido dispositivo legal. Como ele não divulgou os reais motivos pelos quais tomara aquela decisão, inúmeras versões surgiram para tentar explicar aquele ato.
         - Alguns afirmaram que ele, temendo as conseqüências da decisão que havia tomado, em 09 de janeiro de 1822, como Príncipe Regente, de não acatar ordem das Cortes Portuguesas para que deixasse o Brasil, imediatamente, rumo a Portugal (visando enfraquecer as idéias de independência que já circulavam, na ocasião, em todo o território brasileiro e fazer retornar ao Brasil, novamente, o estatuto de colônia de Portugal) e esperando uma invasão de tropas portuguesas (em represália por aquele ato e pelo outro que a ele se seguiu, em 07 de setembro do mesmo ano, quando meu pai proclamou a Independência do Brasil), aliara-se a maçonaria brasileira com vistas a angariar apoio popular. Evidentemente, esta versão nada mais era do que uma simples hipótese, pois aqueles que a divulgaram, na ocasião, desconheciam a lei que meu avô promulgaria em meados do ano seguinte, proibindo a maçonaria de exercer as suas atividades nos territórios sob o domínio de Portugal.
          - Este, portanto, é um testemunho que eu me senti na obrigação de dar, perante todos vocês nesta noite reunidos no Grande Oriente do Líbano, visando resgatar a imagem de maçom do meu falecido pai.

         Tendo sido finalizada a seção da loja com um encerramento ritualístico, D. Pedro II foi efusivamente cumprimentado pelos presentes e, logo a seguir, dirigiram-se todos, sob o comando do Mestre de Banquetes, para um salão finamente decorado, onde seria servido um jantar de boas vindas ao Imperador do Brasil.
            D. Pedro II sentou-se, à mesa, ao lado do Grão Mestre Libanês, Boulos Mass’ad, filósofo e estudioso das Ciências, como D. Pedro II. Conversaram sobre todos os assuntos, pouco tempo despendendo com a comida servida e com os excelentes vinhos disponíveis. Estavam ali para aprender e para trocar idéias sobre os seus países e sobre o mundo, de uma maneira geral. Uma oportunidade como aquela era rara e única, e eles como intelectuais e estudiosos não podiam desperdiçá-la com comidas e bebidas.
            Após horas de agradável conversação, D. Pedro II convidou o seu anfitrião a conhecer o Brasil. Pretendia, mesmo, o imperador brasileiro, angariar contingentes de imigrantes libaneses para povoar o seu império, carente de recursos humanos e de recursos financeiros. Antevia, também, inúmeras possibilidades de comércio entre os dois países.
              Terminado o jantar, D. Pedro II e o Patriarca Maronita se dirigiram para uma grande varanda externa onde, saboreando um vinho do Porto e fumando um charuto, sentaram-se em grandes poltronas para ultimar a conversa que travavam. Da varanda, contemplavam uma lua cheia que iluminava a cadeia de montanhas, ao leste da cidade, que resplandecia ao luar como se fora banhada em prata.
               A certa altura o patriarca perguntou: - E o seu país, fica muito longe daqui?
Pedro II, tomando um gole do Porto e dando uma baforada em seu charuto, respondeu, com incontida emoção e com os olhos marejados: - Sim, meu país é bem longe e está situado muito além das montanhas que daqui avistamos. Espero retornar para ele em breve, e gostaria de tê-lo como meu hospede ou, quem sabe, até mesmo como meu súdito.
            Este conto, meus caros leitores, baseia-se em fatos históricos verídicos e, embora se trate de uma ficção literária, estou quase convencido de que as coisas, realmente, se passaram desta forma...


_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.