131. A perfeição não existe, logo...
Jober Rocha*
A perfeição, conforme esclarecem os dicionários, designa uma circunstância que não pode ser melhorada ou um ser que reúne todas as qualidades e não tenha nenhum defeito.
Filosoficamente Aristóteles já considerava, em sua época, três critérios para que algo ou alguém pudesse ser considerado perfeito:
1. Aquilo a que não falta nenhuma de suas partes ou além do qual não se pode achar nenhuma das partes que lhe pertença;
2. O que possui, em sua própria espécie, uma excelência que não possa ser sobrepujada; e
3. O que atingiu seu objetivo; desde que se trate de um bom objetivo.
No primeiro sentido, o perfeito seria o completo; no segundo, o excelente; e no terceiro o real ou atual, por que cumpriu seu objetivo. O primeiro e o terceiro são conceitos absolutos e, portanto, pertencem à Metafísica. O segundo é um conceito que exprime apenas a excelência relativa de algo, não fazendo parte da Metafísica. Assim, os filósofos quando estudam a perfeição tratam somente do primeiro e do terceiro significados distinguidos por Aristóteles.
O desenvolvimento da Ética, por sua vez, trouxe a noção da perfeição como uma idéia; isto é, uma condição que não é alcançada, mas deve, necessariamente, ser almejada.
A Escolástica (pensamento cristão da Idade Média que tentava conciliar a racionalidade com a verdade revelada, concebida pela fé cristã), afirmava que uma coisa era tanto mais perfeita quanto maior a sua posse do ser; e como Deus possuía todo o ser, era totalmente perfeito. Esse era o pensamento de Tomás de Aquino ao descrever a perfeição de Deus, e da sua criatura, como consistindo na posse, por ambos, do ser.
Ocorre, todavia, devido à perfeição de Deus formulada pelo Cristianismo, que um ser perfeito não poderia criar coisas e seres imperfeitos; daí serem as criaturas, sob a ótica da Escolástica, forçosamente, perfeitas.
A contradição entre a formulação escolástica e a práxis é evidente. Todos passaram a percebê-la, de forma mais clara, após a divulgação, em 1858, da obra de Charles Darwin sobre a evolução das espécies animais. A Teoria da Evolução explica e apresenta abundantes evidências de que a diversidade biológica é o resultado de um processo de descendência com modificações, onde os organismos vivos se adaptam, gradualmente, através da seleção natural, e as espécies se ramificam, sucessivamente, a partir de formas ancestrais, como galhos em uma árvore.
As igrejas cristãs logo se posicionaram contra esta teoria, pois contradizia e solapava as bases do criacionismo divino (formulado pela Bíblia, em Gênesis); no qual, a perfeição do Criador e das criaturas era a tônica.
Inúmeras outras contradições, surgidas com a noção de perfeição do Criador e das criaturas, se apresentaram ao longo da história do Cristianismo (e também do Judaísmo e do Islamismo). A própria vinda de messias e de profetas, enviados posteriormente, pelo Criador, deixaria evidente uma falha no Projeto Divino da Criação; já que, teria sido necessária a vinda destes messias e destes profetas para corrigir os rumos errados tomados pela humanidade.
O próprio dogma do Pecado Original, formulado por Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), em uma controvérsia com o monge Pelágio, da Bretanha, que se apoiou em passagens da Epístola de Paulo aos Romanos e aos Coríntios, além de uma passagem do Salmo 51, contradiz a ideia da perfeição das criaturas. Este dogma, segundo Jaques Le Goff, em sua obra “Uma História do Corpo na Idade Média”, teria contribuído muito para aumentar o poder de controle da Igreja de Roma sobre a vida sexual dos povos da Idade Média.
Por outro lado, a morte de Jesus Cristo, na cruz, se justificaria como tendo ocorrido para salvar os seres humanos deste pecado ou vício de origem, que seria congênito e hereditário, contradizendo a perfeição da criação proporcionada por um ser divino perfeito.
Vejam, ademais, que, embora um mecanismo maravilhoso e quase perfeito, o corpo humano apresenta moléstias e enfermidades, de origem interna e externa, que o debilitam e destroem. Da mesma forma a alma (o espírito quando encarnado), que comanda o corpo e a mente humana, embora maravilhosa por suas virtudes, também apresenta vícios que a corrompem.
No que respeita ao Reino Vegetal, a linhagem que deu origem às plantas terrestres evoluiu do ambiente aquático. A conquista das terras secas, pelos vegetais, modificou profundamente aspectos geomorfológicos e geoquímicos do planeta, afetando, também, a evolução de todas as demais formas de vida, em uma contínua interação entre os três reinos da Natureza. A competição entre as próprias plantas, ao se intensificar, favoreceu àquelas de maior crescimento, possibilitando o surgimento de formas cada vez mais arborescentes e que originaram as primeiras florestas há cerca de trezentos e setenta milhões de anos. Assim, as espécies vegetais estão sempre em constante mutação e adaptação as condições ambientais, não sendo, evidentemente, perfeitas.
Relativamente ao Reino Mineral, percebe-se que este está sempre em constante movimentação e transformação, seja através dos ventos, da ação geotérmica, das marés, da luz e do calor solar, dos movimentos sísmicos, da ação da gravidade, da variação de temperatura, da precipitação pluvial, etc. Mesmo quanto às substancias químicas e ao nível atômico e subatômico, a transformação e a evolução tornam-se evidentes: substâncias sofrem transformações em que processos químicos fazem com que elas desapareçam ou ocorram reações em que aparecem novas substâncias; átomos se transformam em outros átomos diferentes, ao perderem elétrons, como, por exemplo, o caso do hidrogênio que se transforma em hélio; a corrosão do ferro que transforma seus átomos em íons, etc.
Através da Radioatividade (decaimento radioativo de núcleos instáveis), uma parte do núcleo de um átomo se desprende na forma de partícula alfa e novo elemento é formado, com massa atômica menor. É o caso, por exemplo, do urânio que se transforma em chumbo.
Com respeito ao próprio Universo, constata-se que, embora os incontáveis corpos celestes girem todos em suas órbitas, muitas vezes, estrelas explodem e desaparecem; meteoros caem na superfície de planetas; explosões ocorrem na superfície do nosso sol; corpos celestes entram em rota de colisão e se destroem mutuamente, etc. Tudo isto comprova que a tão desejada perfeição não existe em nenhum lugar do Cosmos.
Verifica-se, portanto, que nada no Universo é perfeito, no sentido do terceiro critério de Aristóteles, e que tudo se encontra em constante transformação, mutação e evolução (não tendo, ainda, atingido seu objetivo) independente dos dogmas religiosos em contrário. Como disse o físico e astrônomo italiano Galileu Galilei, no século XVII, após haver sido condenado à prisão em um tribunal eclesiástico da Inquisição e obrigado a se retratar, por divulgar e ensinar a Teoria Heliocêntrica e o movimento da Terra em torno do sol: - Eppur si muove (contudo, ela se move).
Assim, vê-se que nada na Natureza atende ao requisito três, mencionado no início e formulado por Aristóteles. A perfeição, mais em conformidade com a definição oferecida pela Ética, seria uma característica buscada pela própria Natureza, mas nunca encontrada. Talvez esta própria perfeição que pretendemos para o Criador não ocorra na realidade; principalmente, tendo em vista as imperfeições e o caráter evolutivo imprimido a todas as suas criações e criaturas. Um ser perfeito, evidentemente, não produziria coisas imperfeitas, tese que sempre defendeu o próprio cristianismo. Podemos imaginar e aceitar a imperfeição no Reino Animal; já que, os espíritos necessitariam evoluir, dialeticamente, para patamares mais elevados. Entretanto a imperfeição não tem sentido de existir no Reino Vegetal e no Mineral, que, conforme rezam as próprias religiões, são ausentes de espíritos.
O espírito em sua imaterialidade, afirmam as religiões monoteístas, sempre existiu e estaria em continua evolução. Mesmo tendo alcançado os graus mais elevados de iluminação, eu creio que os espíritos de luz (como eles são chamados), por serem imperfeitos, sempre terão algo a aprender e estágios novos de evolução para alcançar; já que, sendo o Criador único, na concepção destas religiões, nenhum espírito, por mais evoluído que fosse, poderia se igualar a eventual perfeição do seu Criador.
Até para as religiões politeístas, onde existem vários Deuses, existe um status de maior ou menor grau de importância, isto é, uma ordem de precedência; tendo os Deuses habilidades individuais, necessidades, vontades e histórias distintas. Se existem esta precedência e estas distinções, que caracterizam cada um dos Deuses, os fatos indicam que nem mesmo estes seriam integralmente perfeitos, pois um deles seria mais importante que os demais ou teria criado os outros Deuses de menores status, como ocorria na Mitologia Grega e Romana. O próprio cristianismo, ao falar em pai e filho estabeleceu esta distinção hierárquica e, para não contradizer-se, Tertuliano (160-250 d.C) criou o denominado Espírito Santo, defendido por Atanásio (296-373 d.C), bispo de Alexandria e decretado por Constantino (272-337 d.C), Imperador Romano. O Espírito Santo uniria estes dois Deuses em um só; posto que, se tratava de uma religião monoteísta.
As religiões panteístas (aquelas para as quais Deus está presente em toda a Natureza) evidenciam, ainda mais, essa imperfeição divina. Como um Criador perfeito poderia estar presente em reinos imperfeitos que se transformam e evoluem a todos os momentos?
Após tudo o que foi dito o leitor, mais comprometido com a racionalidade do que com o dogmatismo poderá exclamar, de si para consigo:
- Se a perfeição não existe, logo, o Criador também não existe ou, caso exista, evidentemente, não parece ser uma Entidade perfeita ou tão poderosa como imaginamos!
- Por que uma Entidade que, filosoficamente, pode tudo, não poderia ter feito tudo de modo perfeito? Será que a Filosofia e a Metafísica, até agora, têm percorrido caminhos equivocados ao idealizarem um Criador perfeito?
- Será que o filósofo Voltaire deveria ter formulado apenas três das suas quatro hipóteses sobre a Natureza de Deus (O Criador quer e não pode, ou seja, é bom e não tem poder; ou pode e não quer, ou seja, tem poder e não é bom; ou não quer e não pode, ou seja, não é bom e não tem poder), descartado a quarta e última hipótese (Deus quer e pode, ou seja, é bom e tem poder) por não ser verdadeira e compatível com o Universo imperfeito da criação em que vivemos?
Algumas outras possibilidades poderiam ainda ser exploradas, mas estou certo de que para alguns leitores elas poderão passar por delírios ou teorias conspiratórias. Todavia, sinto-me na obrigação de mencionar duas delas.
A primeira é a de que poderíamos estar vivendo uma vida virtual ou estarmos em uma Matrix. Esta seria, assim, uma falsa realidade, na qual aquilo que vemos pode não ser, exatamente, da forma como vemos; já que, por vivermos em três dimensões, apenas, captamos aquilo que nossos sentidos percebem, deixando de perceber o que se encontra em outras dimensões e que poderia, eventualmente, apresentar-nos diferentes realidades para os fenômenos que observamos.
Como não podemos sair desta Matrix, alguns autores afirmam que não devemos tentar nos afastar desta realidade em que estamos; mas aprender a viver nela, esquivando-nos das suas ilusões e olhando além da falsa realidade, para não sermos controlados e manipulados por seus idealizadores, quaisquer que sejam eles.
A segunda possibilidade é a de que sejamos frutos da criação (ou oriundos de modificação genética no DNA de seres inferiores, já existentes no planeta) processada por raças alienígenas, que aqui aportaram há milhares ou milhões de anos e que seriam considerados como aqueles Deuses vindos do céu, mencionados nas antigas religiões ainda hoje professadas.
Esta possibilidade, hoje em dia, já é factível pela Ciência praticada na Terra. A técnica denominada Ectogênesis busca desenvolver seres humanos fora do ventre feminino. Trata-se de um útero artificial que reproduz o ambiente natural, onde o bebe é gestado em uma incubadeira em que está rodeado de líquido aminiótico sintético e controlado por uma placenta artificial que proporciona os nutrientes para que o novo ser cresça, além de eliminar os seus resíduos.
Com o método da Ectogênesis o DNA poderia ser modificado antecipadamente, de forma a escolher-se as características desejadas para aquele novo ser, como a cor dos olhos, o tipo de cabelo, etc. No ano de 2074, segundo o cientista J.B.S. Haldane, cerca de setenta por cento dos nascimentos mundiais já seria feito desta forma. Assim, o milagre da criação deixará de ser divino e passará a ser humano. Se hoje a nossa Ciência já dispõe desta técnica, o que dizer de civilizações alienígenas bem mais adiantadas do que a nossa, que conseguem (e já conseguiam no passado) chegar até nós com as suas naves?
Esta possibilidade, hoje em dia, já é factível pela Ciência praticada na Terra. A técnica denominada Ectogênesis busca desenvolver seres humanos fora do ventre feminino. Trata-se de um útero artificial que reproduz o ambiente natural, onde o bebe é gestado em uma incubadeira em que está rodeado de líquido aminiótico sintético e controlado por uma placenta artificial que proporciona os nutrientes para que o novo ser cresça, além de eliminar os seus resíduos.
Com o método da Ectogênesis o DNA poderia ser modificado antecipadamente, de forma a escolher-se as características desejadas para aquele novo ser, como a cor dos olhos, o tipo de cabelo, etc. No ano de 2074, segundo o cientista J.B.S. Haldane, cerca de setenta por cento dos nascimentos mundiais já seria feito desta forma. Assim, o milagre da criação deixará de ser divino e passará a ser humano. Se hoje a nossa Ciência já dispõe desta técnica, o que dizer de civilizações alienígenas bem mais adiantadas do que a nossa, que conseguem (e já conseguiam no passado) chegar até nós com as suas naves?
Estas duas hipóteses não poderiam ser descartadas, na medida em que as nossas origens ainda não foram satisfatoriamente explicadas pela Ciência oficial, que deveria ser religiosa, política e ideologicamente isenta, mas que, na realidade, não o tem sido até os dias atuais.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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