quarta-feira, 25 de julho de 2018


239. Novas crônicas sobre o País da Corrupção



Jober Rocha*



1.    A Divina Comédia e a Corrupção

                                     Embora condenados por um tribunal federal, os políticos envolvidos nos tristes episódios da história recente do país da corrupção (episódios estes de associação criminosa entre políticos e empresários objetivando desviar dinheiro público para os seus bolsos), em razão dos artifícios jurídicos e das brechas legais existentes na legislação do país, eles podem acabar escapando da prisão; seja por não perderem seus mandatos políticos; seja por seus advogados acionarem foros internacionais de julgamento, que podem absolve-los em razão de interesses políticos; seja pelo próprio parlamento, de forma corporativa, aprovar novas leis que os beneficiem; seja, até, por solicitarem asilo político em algum país do continente cujo governante, de esquerda, seja “mui amigo" daqueles políticos de esquerda presos.
                                                Entretanto, não devemos imaginar que eles sairão totalmente ilesos deste lamaçal, sem nenhum respingo, se não em seus corpos pelo menos em seus espíritos.
                                               Dante Alighieri (1265-1321), em seu poema ‘A Divina Comédia’, publicado pela primeira vez em 1555, forneceu uma descrição dos sofrimentos impostos no Inferno aos espíritos daqueles condenados por vícios, crimes e pecados, todos de muito menor monta do que os que foram cometidos pelos condenados em nossas humanas Cortes de Justiça.
                                                      Para que estes políticos condenados tenham uma pequena ideia daquilo que os espera, logo após deixarem seus eleitores, a política e a vida, para todo o sempre, rumo à espiritual Suprema Corte de Justiça, apresento um breve resumo da obra de Dante (posto que muitos destes políticos, certamente, nunca a leram; alguns até por não saberem ler), onde o autor passeia pelo Inferno e pelo Purgatório em companhia do seu amigo Giovanni del Virgílio, e pelo Paraíso ao lado de Beatriz sua amada falecida.
                                                     Oxalá a leitura deste resumo pudesse transmitir um pouco de receio àqueles políticos que se dizem cristãos e que creem no Inferno, no Purgatório e no Paraíso. Estes cidadãos só cometeram os crimes de que são acusados, e que acabaram por levá-los às barras dos tribunais, porque não acreditaram que pudessem, jamais, vir a ser punidos pela justiça dos homens.  Se, pelo menos, os políticos viessem a temer os castigos do além; ter-se-ia, no país, menos casos de corrupção iguais a estes.
                                                    Resumindo, portanto, isto foi o que Dante nos contou acerca do seu passeio pelas profundezas do Inferno:

                                                     Atravessando o fatídico limiar infernal, encontramos no vestíbulo os COVARDES. Após atravessarmos para a outra margem do Rio Aqueronte, conduzidos pelo demônio Caronte, chegamos ao inferno, onde existem vários círculos destinados aos espíritos dos mortos.
                                                     O Inferno, propriamente dito, começa no segundo círculo, indicado pelo juiz Minos (quase que Dante acerta e ele se chama juiz Moro), já que o primeiro círculo é o Limbo. Neste segundo círculo, os LUXURIOSOS são arrebatados por uma tempestade de vento. No terceiro círculo os GULOSOS são flagelados por uma chuva putrefata. No quarto círculo desfilam os AVARENTOS e os PRÓDIGOS, que empurram pesos enormes, e depois os IRACUNDOS, os INDOLENTES os INVEJOSOS e os SOBERBOS. Todos imersos na lama ardente do Rio Estige.
                                                  Caminhando, chegamos à cidade de Dite. Nesta, vimos os HERÉTICOS em sepulcros de fogo, os VIOLENTOS CONTRA O PRÓXIMO em um rio de sangue, os SUICIDAS transformados em árvores nodosas; os ESBANJADORES perseguidos e devorados por enormes cadelas.
                                                 Os VIOLENTOS CONTRA DEUS E CONTRA A NATUREZA eram submetidos a uma implacável chuva de fogo, caminhando sempre. Os USURÁRIOS também eram submetidos a esta chuva de fogo, mas sentados e movendo sem descanso as mãos para se defenderem. O oitavo círculo era dividido em dez fossos ligados entre si por pontes.
                                                      Num crescendo de horror, a segunda parte do inferno apresentava um espetáculo ainda mais tenebroso. Os ALCOVITEIROS eram flagelados por demônios com chifres; os ADULADORES estavam imersos em estrume. Os VENDILHÕES debatiam-se em óleo fervente. Os HIPÓCRITAS arrastavam-se oprimidos por pesadíssimas capas de chumbo.
                                                    Os LADRÕES estavam todos em um fosso repleto de serpentes, que os envolviam enroscando-se neles, apertando-os e os mordendo. No momento em que era mordido, o infeliz incendiava-se e ficava completamente incinerado. Todo o fosso fervilhava de estranhos seres em metamorfoses, entre um abater de caudas que se tornavam pernas e de braços que se retiravam do corpo e línguas que se bifurcavam.
                                                        Depois deste monstruoso espetáculo, surge o crepitar de chamas que encerram os CONSELHEIROS FRAUDULENTOS. Mais a frente, encontramos os PROMOTORES DE DISCÓRDIA e os CISMÁTICOS, cortados em pedaços pelas espadas afiadíssimas de demônios.
                                                     No último fosso, estavam apinhados os FALSÁRIOS, oprimidos por terríveis doenças. Os MENTIROSOS ardiam de febre.
                                                   Finalmente, atingimos o fundo do inferno, que, ao contrário do que pensávamos, era gélido e consistia em um imenso bloco de gelo. Prisioneiros, neste bloco, com as cabeças imersas na estrutura gelada, estavam os TRAIDORES.



                                                           Não resumirei o passeio de Dante pelo Purgatório e pelo Paraíso, pois, evidentemente, por lá não circularão nenhum dos espíritos daqueles envolvidos nos casos de corrupção julgados.
                                                       Como este passeio de Dante ocorreu antes do ano de 1555, e como se tratava de uma ficção (muito embora o poeta pudesse ter tido uma antevisão daquelas profundezas), somos levados a acreditar que, na época de Dante, os graves crimes imputados aos atuais políticos e empresários ainda eram totalmente desconhecidos das populações terrenas e, por maior que fosse a sua imaginação poética, Dante não foi, sequer, capaz de alcançar tamanha criatividade criminosa, para poder prever e inserir na Divina Comédia alguns diferentes e mais terríveis castigos; bem como, criar um simples fosso, que fosse, onde os autores daqueles crimes abjetos, aqui cometidos, passariam a residir e a penar, para sempre, nos subterrâneos do Inferno.
                                                            Todavia, em razão do progresso material, científico e filosófico; bem como, da evolução espiritual, da mudança nos costumes e do aperfeiçoamento das leis, ocorrida desde então, é de se supor que, na real existência do Inferno, novos castigos e piores penas, possam ter sido inventados por quem de direito, para serem aplicados, ali, aos novos crimes surgidos a partir de então; na suposição de que o Capeta ainda seja o administrador daquele local e que não tenha perdido o seu posto para algum político que, da mesma forma que iludiu os seus eleitores, pode ter iludido também o Criador e se feito nomear, por este, para a função tão bem gerida pelo velho Capeta, desde o surgimento da vida humana na face do planeta.
                                                               Seria, no mínimo, frustrante para o povo do país da corrupção se a pena imposta naquele Foro (único tribunal onde os maus são efetivamente punidos) aos espíritos dos MENTIROSOS (aqueles que dizem que não sabiam de nada e que, quase sempre, escapam da justiça dos homens), continuasse ainda sendo a mesma dos tempos de Dante, ou seja, apenas ‘arder de febre para sempre’. Por outro lado, a pena imposta aos TRAIDORES (que também se contam às dezenas, centenas ou mesmo milhares no país da corrupção), a de estarem presos no gelo pelas cabeças, pode se afigurar até como um benefício ou um favorecimento, visto a temperatura escaldante que deve vigorar naquele local de expiação.



2.    O Agente Duplo


                                             Durante anos ele havia sido treinado, em um país distante, sobre todos os tipos de operações clandestinas. Era ‘expert’ em espionagem e contraespionagem. Falava fluentemente vários idiomas, inclusive o português, e fora enviado por sua agência àquele país da corrupção, no início do ano, para coletar e remeter informações sobre os diversos aspectos dos principais setores do poder nacional: o econômico, o político, o militar e o psicossocial.
                                                         Já estava no país há quase seis meses. Durante este período havia procurado informar-se sobre tudo aquilo que se relacionava com a sua missão. Lia jornais e revistas, conversava com pessoas na rua e no prédio onde morava, assistia a filmes, via televisão, etc.
                                                        Em algumas ocasiões entrara, furtivamente, em repartições públicas desertas, durante o horário do almoço e mesmo várias horas após o encerramento deste, em busca de algum informe confidencial ou secreto porventura esquecido sobre as mesas.
                                                          Quando julgou conhecer bem o país e a sua gente, preparou o primeiro informe, codificado, para remeter à agência de inteligência que o havia enviado.
                                                       O informe que mandou codificado, depois de traduzido, basicamente, era o seguinte:

De: Agente X
Para: Alta Direção da Agência de Inteligência
Assunto: Relatório de Situação

                                                    Após seis meses vivendo infiltrado neste país, e dando prosseguimento à minha missão, pude coletar diversos informes confiáveis que passo a relatar a seguir:

1. Sobre os Aspectos Econômicos do país

. Vinte por cento do lucro dos bancos vêm das tarifas cobradas pelos serviços que oferecem aos seus clientes;
. Os juros, cobrados pelas organizações financeiras, são da ordem de até quinze por cento ao mês ou de até quinhentos e quarenta por cento ao ano, constituindo-se nos mais elevados do mundo;
. As filiais dos principais bancos internacionais, aqui instaladas, são as que obtêm os maiores lucros em todo o mundo;
.  A carga fiscal, incidente sobre as pessoas físicas e jurídicas, é a maior dentre todos os países, sendo que os impostos pagos anualmente por tais contribuintes representam, no mínimo, cerca de quatro meses de trabalho em suas atividades;
. O crescimento da economia, de um modo geral, tem sido muito baixo durante vários anos, pois o governo privilegia o setor financeiro em detrimento do setor industrial;
. A burocracia e a corrupção nos órgãos públicos desestimulam a transferência de empresas estrangeiras para o país e dificultam a sobrevivência daquelas aqui instaladas;
. O governo, através dos escorchantes impostos que compulsoriamente cobra das empresas, passa a se constituir em sócio de todas elas sem haver entrado com nada nesta sociedade;
. Os empresários, por sua vez, para sobreviverem, procuram sonegar ao máximo tudo o que podem, não emitindo notas fiscais de venda, roubando no peso, na quantidade e na qualidade dos produtos que comercializam, contratando empregados sem assinar suas carteiras de trabalho, etc.


2. Sobre os Aspectos Políticos do país

. É comum aos Presidentes da República afirmarem que não sabiam que os ministros desviavam recursos do governo para seus partidos políticos, quando estes ministros se envolvem em episódios de corrupção e a imprensa entrevista os presidentes em busca de informações sobre tais casos;
. Normalmente, setenta por cento dos parlamentares eleitos respondem a processos cíveis e criminais na justiça;
. Os parlamentares ganham no total, entre salários, auxílios e vantagens, cerca de duzentas vezes o salário mínimo vigente;
. Políticos filmados escondendo nas cuecas, nas meias ou em malas, dinheiro recebido ilegalmente, declaram, cinicamente, que assim o faziam por medo da violência nas ruas;
. Políticos condenados por desvios de recursos públicos e corrupção não perdem os seus mandatos e, caso sejam presos, podem trabalhar no parlamento durante o dia e recolherem-se às suas celas no presídio durante a noite;
. Criminosos presos não perdem seus direitos civis e podem se candidatar a cargos eletivos. Se eleitos tomam posse.


3. Sobre os Aspectos Militares do país

. Grande parte das armas e munições utilizadas pelos criminosos é obtida através de furtos nos quartéis militares;
. As forças armadas têm funcionado, durante grande parte do ano, sob o regime de meio expediente, em razão de falta de comida para os militares;
. A Força Aérea, através de uma comissão, escolheu adquirir aviões de caça, de um determinado tipo e fabricante, destinados à atualização e a modernização da sua frota de aeronaves de combate; porém, o Presidente da República, na ocasião, mostrou interesse por outra aeronave diferente, produzida por outro fabricante, afirmando que quem entendia daquele assunto era ele;
. As forças armadas, em caso de engajamento em um conflito externo, possuem munição para apenas um só dia de combates intensos;
. Os Ministros da Defesa são apenas políticos, sem nenhuma formação específica nas Ciências Militares e na Arte da Guerra. 



4. Sobre aspectos Psicossociais do País

. O número de reclusos fugitivos das cadeias e penitenciárias é maior do que o número de reclusos, efetivamente, presos;
. A polícia soluciona menos de cinco por cento de todos os crimes ocorridos no país;
. Os criminosos que são condenados a mais de trinta anos de prisão, na prática, cumprem apenas cinco anos ou menos em regime fechado;
. Os menores de dezoito anos condenados por crimes de morte cumprem, no máximo, três anos em estabelecimento correcional;
. A imprensa e a Mídia, de uma maneira geral, endeusam os criminosos e criticam a ação da polícia, em seus acertos e em seus erros;
. É comum o fato de criminosos e infratores, presos no dia de hoje, serem vistos nas ruas, soltos, no dia de amanhã.



                                                       Quando estes informes chegaram ao quartel general da agência de espionagem e foram decodificados, uma reunião urgente da alta direção foi logo marcada.
                                                Vários dirigentes e analistas de informações reuniram-se para avaliar o teor do relatório.
                                                   Após horas de discussão, o Diretor Geral levantou-se e, traduzindo a opinião geral, declarou: 


                                                       - Senhores este é mais um caso de agente nosso que se bandeia para o lado do inimigo. Sem dúvida, ele já está a soldo do governo local trabalhando como agente duplo e envia estes informes falsos para nos confundir.
                                                              - Seu erro, todavia, foi primário, pois ao enviar informes tão inverossímeis, que não seriam levados a sério nem mesmo por uma criança totalmente desinformada, praticamente, confirmou sua condição de agente duplo. Nenhum país do mundo poderia coexistir com situações tão esdrúxulas e inimagináveis como estas que ele descreve.
                                                       - Vamos despachar um comando operacional nosso para sequestrá-lo, com ordem para que seja lançado no meio do oceano, de pés e mãos amarrados, como fazemos sempre com aqueles que nos traem, passando para o lado do inimigo.
                                                              - Que isto sirva de exemplo futuro para todos os nossos agentes em missão no exterior, de maneira a que jamais pensem em nos trair como fez este pobre infeliz. Que o capeta o receba de braços abertos no inferno, se é que ele ainda manda naquele local...



_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
 




 






 

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