quarta-feira, 18 de julho de 2018

238. Crônicas curtas sobre o País da Corrupção



Jober Rocha*



1.    Na Instituição Financeira Governamental

                                Um empresário nacional, cuja empresa necessitava fazer investimentos para sobreviver, tendo necessidade de recursos a baixo custo, isto é, subsidiados pelo governo, procurou um amigo que era, por sua vez, amigo do gerente de uma instituição de crédito governamental, para pedir que conseguisse uma entrevista com o referido gerente, pois necessitava de um vultoso empréstimo financeiro.
                                         O amigo, após transcorridos alguns dias, agendou uma entrevista entre o empresário e o gerente, a qual também compareceu.
                                                Feitas as apresentações, tomados os copos d’água e os cafezinhos de praxe, o empresário relatou ao gerente as dificuldades pelas quais passava a sua empresa e, apelando para a amizade comum que tinham, ele e o gerente, para com o apresentador de ambos, pedia que a sua solicitação de crédito àquela instituição fosse atendida.
                                                    O gerente, acendendo um finíssimo e caro charuto cubano, perguntou ao empresário, aparentando um leve ar de filósofo: - O amigo, como eu, também possui alguma religião?
                                                   O empresário respondeu que sim e acrescentou, ainda, que era devoto de Santa Edwiges, padroeira dos comerciantes e dos empresários endividados.
                                                     O gerente, dando uma longa baforada do charuto, continuou: - Então, sempre que você ou alguém da sua família adoece, imagino que peça ajuda ao nosso Deus e à sua padroeira, não é assim?
                                                    O empresário concordou imediatamente, relatando que, certa vez, havia prometido uma ou mais novenas completas, caso se curasse de uma crise de hemorroidas sem a necessidade de intervenção cirúrgica. Como a inflamação diminuísse dias depois, passou várias semanas rezando em agradecimento à graça alcançada.
                                                    O gerente, ainda degustando o perfumado charuto cubano, acrescentou: - Caro amigo - creio que posso chama-lo assim – se você, para uma simples crise de hemorroidas oferece novenas ao Criador, para uma situação grave como esta pela qual passa a sua empresa - que considero como uma sua filha, pois você a fez nascer e crescer – qual a oferenda que você pretenderá fazer ao seu Salvador, neste caso o amigo gerente aqui presente e à sua disposição?
                                                  O empresário, que já possuía longa experiência no trato com políticos, fiscais e despachantes, respondeu: - Excelência – creio que posso chama-lo assim – como disse Jesus em Mateus 22:21, ‘a César o que é de César’, digo eu também ‘ao Gerente o que é do Gerente’. Fique tranquilo que a oferenda que farei ao meu Salvador será equivalente, em moeda corrente, a diversos caminhões contendo velas, flores, imagens e materiais de construção diversos para as obras da matriz.
                                                  O gerente, apagando o seu charuto no belo cinzeiro de cristal sobre a mesa, levantando-se, finalizou dizendo enquanto dava um fraternal abraço no novo amigo empresário e apertava a mão do amigo comum: - Face a esta crise moral e de valores que corrói a sociedade em nosso país, nada como os verdadeiros religiosos e tementes à Deus se apoiarem mutuamente. Concordam comigo, meus queridos amigos?




2.    No Hospital Público

                                                    A sala de espera estava lotada. Pacientes com febre, falta de ar, pressão alta, pressão baixa, enjoos, dores diversas, etc. amontoavam-se nas poucas cadeiras disponíveis e no chão úmido e sujo daquele hospital público, quando cheguei com meu vizinho de porta, após eu haver agendado uma consulta particular, paga antecipadamente a uma senhora que ali trabalhava e que prometia atendimento imediato e sem fila.
                                                             Antes, porém, é necessário que eu relate aos leitores qual era o problema do meu vizinho e amigo. Segundo ele me relatara algumas semanas antes, enquanto tomávamos uísque e comíamos umas linguiças fritas elaboradas por sua esposa, um dia pela manhã, ao tomar banho e ensaboar-se, sentiu um pequeno caroço sob a pele do pescoço.
                                                       Como tinha horror a médicos e doenças não comunicou o achado à mulher, nem aos filhos; porém, com o passar dos dias, além de doer e incomodar o caroço havia aumentado de tamanho, passando a se tornar visível.
                                                      A esposa ao perceber o caroço, durante o almoço, sugeriu-lhe a ida ao hospital. Ele, no entanto, atarefado com seu trabalho de vendedor ambulante, deixou de lado o tal caroço; já o considerando como um adorno permanente que o acompanharia pela vida a fora.
                                                Dias depois, no entanto, mais precisamente hoje, como o caroço passasse a doer muito ele me pediu que o acompanhasse até o hospital, o que fiz; não sem antes ligar para a minha conhecida que lá trabalhava e depositar em sua conta corrente o valor da consulta.
                                              Lá chegando, portanto, meu amigo foi prontamente atendido por uma enfermeira que gritou da porta: - Senhor Ariovaldo Benigno!
                                         Caminhando em direção à enfermeira, ele adentrou a sala de exames enquanto eu esperava do lado de fora, observando aquela multidão de pacientes esperando a sua vez de ser atendida.
                                                   Finalizada a coleta de material (exame de sangue e biópsia), a enfermeira pediu que ele aguardasse na sala de espera, onde estavam todos os demais pacientes.
                                                   Ficamos ali, em pé, por quase duas horas, aguardando a liberação do resultado. Subitamente, quando já não aguentávamos mais de cansados, abriu-se a porta da sala de exames e uma enfermeira chamou: - Senhor Ariovaldo Maligno!
                                                  Como nenhum dos presentes se manifestasse, ao ouvir aquele nome sendo chamado pela segunda vez, o meu vizinho, timidamente, perguntou: - Senhorita, não será Ariovaldo Benigno?
                                                    A enfermeira, com um sorriso estranho nos lábios, prontamente e em voz alta, respondeu para que todos na sala ouvissem: - Não, senhor Ariovaldo, no seu caso é maligno mesmo!
                                                     Desenganado desde então o meu vizinho Benigno aguardava em sua casa, tomando uísque e comendo linguiça frita junto comigo, o dia em que, após ser mortalmente nocauteado por “Maligno‟, partiria definitivamente para os “Campos Sagrados de Caça‟, conforme costumava se referir ao território do além...


3.    Um Político Honesto

                                        Não desejo que aqueles que me leem pensem que brinco com seus sentimentos e com suas emoções, ao denominar este texto de ‘Um Político Honesto’. Sei que é difícil imaginar algo parecido; porém, o fato que passarei a narrar foi por mim mesmo testemunhado, já que convivi por longo tempo com o seu protagonista, como amigo particular e colega dos bancos escolares, e, para mim, também foi uma grande surpresa o desfecho final deste insólito caso.
                                                Desde pequeno fomos vizinhos em um pequeno prédio residencial do subúrbio. Crescemos juntos como colegas de escola, companheiros de partidas de futebol e, mais tarde, na adolescência, frequentadores assíduos dos bailes e festas nas casas das jovens do bairro.
                                                Ele, desde garoto, possuía o dom da palavra e do convencimento. Toda vez que alguém aniversariava, ele era o escolhido para fazer a saudação; panegirico este que emocionava não só ao aniversariante, como, também, a sua família e os demais convidados. Sempre que ocorria alguma discussão entre duas ou mais pessoas, em ambiente no qual ele se encontrasse presente, a sua intervenção na conversa fazia com que a opinião dos presentes convergisse para a dele, em razão dos seus argumentos e do seu poder de persuasão que tinha.
                                                 Nunca - que eu visse - falou alguma palavra indelicada ou algum palavrão, faltou com a verdade, agiu com injustiça, fez alguma covardia, foi descortês com alguém, apropriou-se de algo que não lhe pertencia, maltratou algum ser humano ou, mesmo, qualquer animal. Era estimado por todos, na escola, no clube, na vizinhança, no bairro.
                                                     Talvez em razão disto tudo, quando atingiu a maioridade, seus amigos mais chegados sugeriram que ele ingressasse na política partidária, como forma de poder contribuir para a melhoria do bairro, onde vivera a maior parte da vida e onde possuía uma multidão de amigos.
                                                      Inicialmente contrário à ideia – já que dentre todas essas suas qualidades, ainda existiam as da modéstia e da premonição – relutou durante alguns anos, mas, finalmente, sucumbindo à pressão dos amigos, acabou se filiando ao Partido dos Suburbanos Inconformados e Unidos – PSIU e candidatando-se a uma cadeira de vereador, na Assembleia Legislativa do município, nas eleições daquele ano.
                                                       Durante os comícios pelas praças do bairro, a multidão em peso acorria para ouvi-lo falar sobre seus programas e propostas de melhoria para a comunidade. Foi eleito vereador com milhares de votos. Creio que o bairro inteiro - além de vários outros bairros vizinhos - deu seu voto para ele.
                                               Empossado, começaram os seus problemas. Tendo recusado um cargo de direção na administração municipal, para que o suplente ocupasse a sua vaga de vereador e ele, na função de diretor de órgão municipal, conseguisse desviar recursos financeiros para o partido pelo qual se elegera - através de concorrências fraudadas e superfaturadas - foi logo mal visto pelo seu próprio partido político, que, a partir de então, passou a considerá-lo como um traidor.
                                               Tendo, logo a seguir, recusado uma verba mensal concedida pela prefeitura – verba esta oferecida para todos os vereadores – destinada a comprar seus votos favoráveis naquelas matérias do interesse do prefeito, passou a fazer parte das listas negras, tanto da casa onde se reunia para legislar quanto da prefeitura.
                                                  A partir de então, todos os projetos que apresentava eram sistematicamente rejeitados pelos seus pares. Era sempre visto sozinho em seu gabinete; nem seus próprios assessores e assistentes apareciam por lá.
                                                   Os eleitores do bairro, depois de algum tempo, vendo que nenhuma das promessas que ele havia feito fora cumprida (pois o bairro continuava igualzinho como sempre: ruas sujas, esgotos a céu aberto, terrenos baldios com o mato alto, falta de coleta de lixo, falta d’água, ruas esburacadas, hospitais carentes de médicos, pouco transporte coletivo, etc. etc. etc.), passaram, a partir de então, a falar mal dele. Diziam que era igual a todos os demais políticos; isto é, prometia apenas para obter votos, já sabendo, de antemão, que nada faria daquilo que havia prometido.
                                                   A noiva que possuía antes de ser eleito, acabou por abandoná-lo ao saber das coisas que ele contava sobre a vida de político. Abandonou-o, porque não via nele nenhum futuro na política e nem na vida pessoal. A recusa dele em receber aquela pequena fortuna que lhe havia sido oferecida, foi uma gota d’água que entornou as taças de champanhe com que brindariam o casamento já marcado para o mês seguinte. Como ser a feliz esposa de um político de sucesso – pensava ela – que não cuidava do conforto e bem-estar da família e dos futuros filhos que, certamente, pretendiam ter?
                                                  Os eleitores, antes contados aos milhares e agora contados às dezenas, o evitavam sempre que podiam. Não frequentavam mais o bar do Manoel nas quintas feiras - dia em que ele por lá costumava aparecer, desde muito antes de se tornar um político – para não o encontrar e, eventualmente, poder chegar até as raias de vir a agredi-lo fisicamente, durante alguma discussão mais acalorada.
                                                 Seus poucos amigos achavam que em defesa dos eleitores e de suas demandas, todos os comportamentos políticos, mesmo os viciosos, eram válidos na vida de um vereador. Eram adeptos do ‘Rouba, mas faz’! - frase esta dita com certo orgulho por muitos eleitores, em determinada ocasião, referindo-se a um político local.
                                                 Todos no bairro o criticavam por não haver aceitado suborno; propinas estas que, mantendo-o ‘bem’ na política municipal, permitiria a eles - seus eleitores - verem atendidas as suas reivindicações em prol do bairro em que residiam. Todos eles, em seu lugar, teriam aceitado aquele ‘acerto’ proposto pelo prefeito e, por isso, não entendiam o seu comportamento ‘moralista’ e nem o perdoavam. Na assembleia legislativa ele se sentia como um ‘peixe fora d’água’. Era como se falasse outra língua (gaélico ou provençal, por exemplo), que nenhum dos seus pares entendia.
                                                     Esperou o seu mandato terminar e deixou o partido e a política, para sempre. De que adiantava – pensava ele - pelejar por um povo acostumado a ‘levantar templos aos vícios e cavar masmorras às virtudes’ (endeusar o errado e demonizar o certo)?
Aquele era um povo que aceitava o mal, buscando angariar o bem para si mesmo. Um povo que era conivente com a fraude, desde que aquilo resultasse em alguma melhoria para o seu bem-estar pessoal. Um povo que passava por cima da moral e dos bons costumes, se vislumbrasse, com isto, alguma benesse para si, para sua família ou para seu grupo social.
                                                         Assim, meu amigo de infância concluiu que era melhor viver isolado em uma ilha deserta, longe daqueles eleitores oportunistas e egoístas.
                                                        Isso, meus caros leitores, foi o que ele declarou, particularmente, a mim como seu amigo e antigo companheiro de juventude e, também, publicamente, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, que apurava desvio de recursos e malversação de fundos públicos, durante seu mandato; já que ele era um dos principais acusados de chefiar uma quadrilha que fraudava concorrências, extorquia empresários e participava de inúmeros negócios escusos no município e no Estado.
                                                            Fora descoberto, ao ser investigado pelo Ministério Público, em razão da aquisição de milionária e cinematográfica ilha (com dezenas de suítes, varandas, salas, garagens de barco, porto para atracação de iates e aeroporto para pouso e decolagem de aviões e helicópteros), situada no litoral do Estado e adquirida por cinquenta milhões de dólares, conforme a escritura de compra e venda em poder das autoridades judiciais. Vivia na ilha com a amante, depois que terminou o noivado com aquela moça do bairro, que namorava desde os tempos de colégio.
                                                            Até hoje, ainda não sei em quem acredito - se nele, meu amigo e vizinho de infância, ou se nos promotores que o acusam. Ele sempre me pareceu um camarada tão sério, tão certinho e tão honesto...


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
   

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