sábado, 11 de maio de 2019

271. O humor negro do Criador


Jober Rocha*



                                 Um dia destes ouvindo de um amigo, engenheiro eletrônico, a triste notícia de que ele teria que se submeter a uma cirurgia de urgência, perguntei-lhe do que se tratava. Respondeu-me, deprimido, que teria que substituir uma válvula cardíaca que já não funcionava tão bem como deveria.
                                             Após vários minutos de lamentações, meu amigo e eu nos despedimos contristados. Prometi orar para que a cirurgia tivesse sucesso e ele rapidamente se recuperasse.
                                                   Tomando uma dose de uísque em casa, mais tarde, comecei a pensar que poderia haver, por detrás desta trágica notícia relatada pelo amigo, um certo humor mordaz, sarcástico e negro partido da mente privilegiada do Criador, ou seja, daquele que tudo pode e que seria, em última análise, o causador de todas as nossas mazelas orgânicas e vicissitudes pessoais. Evidentemente, o nosso Criador que pode nos conceder benesses, também, pode retirá-las a qualquer momento ou enviar alguns castigos terríveis.
                                                   Como possuo uma rara inteligência e um acendrado espírito humorístico, fiquei me imaginando na pele do Criador, na hora de ter de retirar algum benefício de suas criaturas; de enviar-lhes alguma desventura; de criar alguma dificuldade na vida daqueles que, tão somente por possuírem o dom da vida, em determinada etapa da existência julgam-se pequenos deuses eternos, seja por se considerarem muito poderosos, muito ricos, muito belos ou muito saudáveis. Não direi muito inteligentes, pois este seria o caso, apenas, de uma pequena minoria a qual eu tenho o privilégio de pertencer e estou certo de que jamais algum de nós chegou a se considerar um mini deus eterno. 
                                                 Como disse, certa vez, aquele ídolo da esquerda sul-americana chamado Che Guevara: - “Hay que endurecer sin perder la ternura”! Fico imaginando que eu, como Criador de todas as coisas, pensaria, talvez de forma semelhante, algo parecido como: - “Hay que castigar las criaturas, sin perder el humor”!
                                                  Desta forma, fazendo uso da minha grande imaginação e maior ainda senso de humor sarcástico e mordaz, comecei por selecionar quais as enfermidades e vicissitudes poderia, caso fosse realmente o Criador de todas as coisas, enviar para determinadas criaturas minhas que precisassem ser reorientadas de volta ao rumo da humildade, da modéstia, da tolerância e da caridade, mediante o sofrimento físico ou, então, que, dada a gravidade do fato cometido e ao esgotamento do tempo de permanência terrestre destas criaturas, devessem se apresentar, imediatamente, perante a minha divina presença. 
                                                 A seguir apresento aos meus leitores algumas enfermidades e vicissitudes, que representassem sofrimentos físicos, psíquicos e emocionais, com as quais eu, com todo o amor que carrego comigo, presentearia minhas criaturas, pois, como todos sabem, os seres humanos só aprendem através do sofrimento.
                                                         Em se tratando, pois, de doenças, para um engenheiro eletrônico eu enviaria (da mesma forma como Ele fez com o meu amigo cujo relato deu origem a este texto) um problema na VÁLVULA cardíaca.
                                                     Para um advogado eu mandaria um PROCESSO inflamatório, agudo ou crônico dependendo do meu estado de humor na ocasião. Para um contador eu lhe tiraria a RAZÃO, mediante um desBALANÇO nas sinapses neuronais do cérebro. Para um professor eu enviaria uma síndrome psicótica qualquer, que o deixaria FALANDO sozinho pelas ruas. Para um mergulhador eu o deixaria com ÁGUA nos pulmões, HIDROPSIA ou, se seus pecados fossem muito graves, dar-lhe-ia uma EMBOLIA pulmonar. Um aviador seria, por mim, agraciado com crônica FALTA DE AR ou com alguma doença nas pernas que lhe retirasse a SUSTENTAÇÃO e o fizesse descer da ALTURA em que, de forma autônoma, havia se colocado perante seus parentes e amigos.
                                                        Para um banqueiro eu pensaria em algo que, ao ser extraído de sua POUPANÇA, lhe retirasse parte dos FUNDOS, como, por exemplo, grandes hemorroidas. Motoristas e cobradores de coletivos seriam chamados à minha presença, imediatamente, após praticarem a chamada ROLETA russa. Um equilibrista de circo seria aquinhoado com um DESEQUILÍBRIO emocional. A um jóquei eu enviaria uma pneumonia GALOPANTE.
Um engenheiro civil seria bem servido com duas ou três PONTES de safena. Um bombeiro hidráulico teria várias artérias ENTUPIDAS. Um fazendeiro, criador de gado, sucumbiria de febre do FENO. A um cultivador granjeiro eu enviaria uma doença crônica qualquer, que representasse um grande ABACAXI em sua vida. Um caçador receberia, quando menos esperasse, uma doença que seria TIRO e queda.
Um perito judicial sucumbiria de uma PERITONITE. Um maquinista de trem se tornaria dependente alcoólico, de modo a estar sempre saindo da LINHA, jamais andando pelos TRILHOS. Um analista de sistemas teria uma polineuropatia que comprometesse o seu SISTEMA nervoso periférico. Um jogador, enfermo e sem um diagnóstico fechado, ficaria sendo JOGADO de um hospital para outro em busca da solução para o seu caso. Um cozinheiro cairia nas mãos de um médico incompetente e relaxado, que ficaria meses COZINHANDO o seu caso ou, então, o cozinheiro poderia também vir a sofrer de uma neFRITE.
Um barbeiro sofreria da DOENÇA DE CHAGAS, transmitida pelo inseto chamado barbeiro. Um cabeleireiro, acometido de grave distúrbio emocional, estaria sempre perdendo a CABEÇA. Um dentista que estivesse devendo no sistema de partidas dobradas celestial, isto é, que tivesse mais débitos espirituais do que créditos, jamais chegaria a pegar uma BOQUINHA em algum órgão do governo.
Um mau militar, impatriótico ou mesmo traidor, sofreria de uma inCONTINÊNCIA urinária que o obrigaria a usar sempre um fraldão. A um pedreiro eu lhe presentearia com PEDRAS nos rins ou na bexiga. Um confeiteiro teria AÇÚCAR no sangue. Um caldeireiro PRESSÃO alta. Um pizzaiolo algum distúrbio na MASSA encefálica. Um ferreiro problemas na CORRENTE sanguínea, como, por exemplo, carência de FERRO.
                                                    Um agente municipal de trânsito teria dificuldades no TRÂNSITO intestinal, sofrendo de constipação. Um diarista, por sua vez, possuiria forte DIARREIA crônica. Um marginal baleado seria deixado à MARGEM, no corredor do hospital público, sem atendimento médico. Uma jovem patricinha dengosa seria aquinhoada com a DENGUE hemorrágica. Um mecânico especialista em embreagem sofreria de problemas na CAIXA torácica. Um oculista teria uma MACULA em seu passado. 
                                             A um procurador os médicos, finalmente, ENCONTRARIAM tumores espalhados pelo corpo. Um juiz perderia o JUÍZO. A um camelô os médicos não dariam nenhuma GARANTIA de que seria curado. Um jardineiro veria BROTAR feridas pelo corpo todo ou, então, enfrentar uma TUBERCULOse que estendesse suas RAÍZES pelos dois pulmões. Um lutador profissional teria, durante meses, que LUTAR CONTRA A DOR em um leito de hospital.
                                                     Uma mulher psicopata, por exemplo, teria PÉS DE GALINHA ao redor dos olhos e a micose conhecida como PE DE ATLETA. Um comerciante dono de ótica seria um neurÓTICO ou um psicÓTICO. Um enfermeiro viveria sempre ENFERMO. Um atendente sofreria de CÁRIES nos molares. Um pintor teria que fazer circuncisão, por problemas de fimose no PINTO. Um deficiente visual teria que se submeter a uma cirurgia que lhe custaria OS OLHOS DA CARA. Um domador, da mesma forma que um lutador, teria que ter controle sobre a DOR de uma hérnia cervical, por ser alérgico a anti-inflamatórios.  Um catador de papéis, a todo momento, estaria catando DORES em várias partes do seu corpo. Um borracheiro sofreria de flatulência, tendo que aguentar o CHEIRO de seus gases intestinais. Um psicólogo, LOGO após internado, teria rapidamente descoberto pelos médicos um velho tumor no pâncreas. 
                                                        Um cirurgião vascular, ao VASCULHAR seus exames periódicos, encontraria uma grave doença congênita. Um cirurgião geral, ao dar uma GERAL em tomografias recentes que fizera do estomago, descobriria um câncer incipiente. Uma vendedora de cuscuz, da mesma forma que o banqueiro, poderia ter problemas de HEMORROIDAS ou uma FÍSTULA ANAL. Um motorista de caminhão teria uma CARGA GENÉTICA desfavorável que lhe causaria inúmeras moléstias. Um professor de Português, poderia ter uma grave hérnia de HIATO, CONSOANTE ao seu estado mórbido.  Um frentista teria que encarar de FRENTE a notícia dada pelo médico de que só lhe restava dois meses de vida. O empilhador iria acumulando uma DOR em cima da outra. 
                                                       E assim eu seguiria, fazendo uso do meu humor negro, mordaz e satírico, e do meu poder discricionário, para castigar as minhas ovelhas negras desgarradas. O objetivo implícito nessa minha atitude seria, também, o de fazer com que as criaturas percebessem haver uma correlação entre os males físicos e psíquicos que as acometiam e as suas vidas, certamente impuras, que teimavam em levar de maneira desregrada e contra meus preceitos. Alguns, talvez, percebessem a relação de causa e efeito, outros, certamente, não a perceberiam. Todavia, o recado seria dado e aqueles que tivessem olhos para ver veriam.
                                                      Só não pensei no que faria quando as ovelhas desgarradas se tratassem de escritores ou de escritoras. Pensando bem, na atualidade, como ninguém mais tem o costume de ler, os eventuais males que estes pudessem causar, com os conteúdos dos seus textos, deveriam ser tão pequenos que era melhor deixá-los de lado, perdoá-los e fazer de conta que eles nem existem.


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


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