270. Meus respeitos àqueles que frequentemente descem ao inferno, mas que lá não permanecem...
Jober Rocha*
O imperador romano Publio Aelio Adriano (76-138 d.C), pouco antes de falecer, referindo-se ao inferno (onde imaginava que sua alma passaria a eternidade, em razão de tudo aquilo que ele fizera em vida) escreveu um belo poema:
Anima vagula, blandula
Hospes comesque corporis,
Quae nunc abibis in louca,
Palidula, rigida, nudula,
Nec, ut solis, dabis iocos…
Cuja tradução é a seguinte:
Minha pequena alma, terna e flutuante,
Hospede e companheira do meu ser,
Vais descer a lugares lúgubres, hesitante,
Que jamais pensaste algum dia conhecer.
Por sua vez, o poeta e escritor Dante Alighieri (1265-1321 d.C), em seu poema ‘A Divina Comédia’ publicado pela primeira vez em 1555, forneceu uma descrição dos sofrimentos que contemplou pessoalmente, impostos no Inferno aos espíritos daqueles condenados por vícios, crimes e pecados.
Em sua descrição, Dante relata que “após atravessarmos para a outra margem do Rio Aqueronte, conduzidos pelo demônio Caronte, chegamos ao inferno, onde existem vários círculos destinados aos espíritos dos mortos. O Inferno, propriamente dito, começa no segundo círculo, indicado pelo juiz Minos; já que o primeiro círculo é o Limbo”.
Segue, assim, o poeta descrevendo os sofrimentos impostos aos covardes, luxuriosos, gulosos, avarentos, pródigos, iracundos, indolentes, invejosos, soberbos, heréticos, violentos, suicidas, esbanjadores, usurários, alcoviteiros, aduladores, vendilhões, hipócritas, ladrões, fraudulentos, promotores de discórdia, cismáticos, falsários, mentirosos e traidores, nas profundezas daquele local.
Os sofrimentos impostos a todos estes são terríveis, segundo aquilo que a imaginação do autor pode vislumbrar em seu imaginário passeio. Ali é um lugar de sofrimento e expiação e quem não pertença, definitivamente, aquele meio, como o poeta que estava só de passagem, desejaria sair dali rápido, tal o péssimo astral percebido por qualquer visitante ocasional.
Na sociedade em que vivemos o inferno não é único e localizado em determinado ponto como aquele de Dante e como o mencionado pelo Cristianismo, mas são vários e encontram-se espalhados. Possui o nosso inferno uma grande população permanente (aqueles que lá vivem por circunstâncias várias, cujas causas eu não posso aqui discorrer, posto que são inúmeras e diversas) e uma população menor, transitória, que ali vai com certa frequência por dever de ofício ou por vocação.
Refiro-me aos profissionais cujas atividades obrigam a que permaneçam nestas filiais do inferno espalhadas por todos os cantos do país, muitas vezes correndo risco de vida, participando de todo aquele sofrimento individual e coletivo, tentando, de certa forma, minorá-lo ou, algumas vezes, fazendo até com que aumente por força da missão que lhes imputaram.
Os leitores mais argutos já perceberam que me refiro aos policiais de serviço, aos bombeiros em ação, aos médicos e enfermeiros em suas ocupações nos prontos socorros e emergências hospitalares, aos religiosos e voluntários que prestam assistências aos mendigos abandonados pelas ruas das cidades e aos militares quando em combate defendendo seu país e seus valores. Outras atividades semelhantes deixaram de ser mencionadas por não me ocorrerem no momento, mas saibam todos que também elas aqui se encontram incluídas.
Qual dos leitores já frequentou uma emergência hospitalar em um hospital público carente e localizado em área densamente populosa, com altos índices de criminalidade? Quem teria condições de passar 12 ou até mesmo 24 horas, em um local onde entram e saem pessoas feridas como fornadas de pão em uma padaria; onde o sangue e os dejetos humanos jazem espalhados pelo chão e são constantemente pisoteados por aqueles que por ali transitam? Um local onde a tônica são os gritos de dor e de sofrimento, as imprecações, os xingamentos, o suor, o cansaço, as lamentações, o desespero. Nesta filial do inferno, muitos ali estão, segundo conceitos religiosos proclamados, por que necessitam sofrer (seja lá por qual razão metafísica que me é desconhecida), mas outros lá estão por que precisam minorar o sofrimento destes infelizes. Nesta função também sofrem, mas é um sofrimento voluntário e meritório. Sem a presença deles o sofrimento dos primeiros seria muitas vezes maior ou até mesmo impossível de ser suportado. Quem, no entanto, é capaz de esquecer tudo aquilo que viu e de que participou no período em que lá esteve, tão logo saia pelo portão do hospital em direção a sua residência e ao encontro de familiares e amigos?
Qual dos leitores já participou de uma incursão policial em uma favela qualquer, das inúmeras espalhadas pela cidade? Quem já fez uma progressão subindo o morro e recebendo disparos de fuzis e de armas curtas a todo momento, vendo alguns companheiros tombando em razão de disparos recebidos? Quem já percorreu vielas sujas e apertadas, com valas negras e mau cheirosas escorrendo pelo meio e a ameaça de um confronto pairando o tempo todo no ar? Os responsáveis pela existência destes guetos, onde a população pobre é obrigada a viver, jamais fizeram este percurso cansativo e perigoso junto com a força policial que ali vai com frequência cumprir missões de busca e apreensão. Quem já participou de sessões de interrogatório, nas quais o preso deve confessar onde estão as armas, as drogas e os demais integrantes do bando escondidos? Quem, depois de anos de serviço e tendo prendido muitos criminosos, consegue andar calmamente pelas ruas da cidade, fazendo compras e observando vitrines como fazem muitos cidadãos comuns?
Quem já esteve em meio a um incêndio de grandes proporções, com vítimas encurraladas em andares altos, tendo que subir pelas escadas enfumaçadas de um prédio pegando fogo e ameaçando desabar, para procurar eventuais sobreviventes e resgatá-los?
Quem já participou do resgate de um suicida que tenta se jogar do alto de um prédio e que, para resgatá-lo, correu o risco de cair também? Quem já chegou a um local da queda de uma aeronave cheia de passageiros, onde os corpos e partes deles se espalham pelo terreno, junto com bagagens e destroços da aeronave ainda fumegantes?
Quem, como religioso ou como voluntário, já cuidou das chagas de mendigos abandonados nas ruas das cidades, já dividiu com eles a sua comida, já os lavou e os vestiu com roupas limpas, já ouviu as suas queixas e deu-lhes apoio psicológico?
Quem, como militar, já esteve em combate tendo que tomar uma posição fortificada localizada em um ponto alto, sendo defendida por canhões e metralhadoras? Quem já participou de um combate aéreo, em que sua vida depende de seus reflexos rápidos, da qualidade e performance da sua aeronave e do treinamento prévio que recebeu? Quem, nas profundezas do oceano, dentro de um submergível, ouve as cargas de profundidade, lançadas por um contratorpedeiro ou uma fragata, caindo e explodindo ao lado daquele que poderá ser seu ataúde, caso alguma delas acerte o alvo?
Vejam, meus caros leitores, que muita gente vai ao inferno todos os dias e, findo o seu trabalho, retorna para casa. Mal comparando, é como se saíssem de um local bastante aquecido e, a seguir, entrassem em uma câmara frigorífica. Fazendo isto com frequência, certamente, algumas sequelas acabarão por apresentar.
Não é por outra razão que são muitos os casos de suicídios entre policiais; de consumo de drogas por parte de médicos e de enfermeiros; de violência gratuita da parte de militares aguerridos que, ao retornarem do front para suas casas, com uma arma executam dezenas de pessoas nas cidades onde passam a viver. Os Estados Unidos da América do Norte estão cheios destes episódios.
A ida constante ao inferno acaba marcando, para sempre, aqueles visitantes transitórios. Eles, todavia, cumprem as missões para as quais estão designados. Bem ou mal, fazem aquilo que deles se espera. O inferno poderia ser, apenas, um local imaginário, um conceito, uma metáfora, um sentido figurado que representasse o mal localizado no interior de cada um de nós, conforme mencionou o Papa Francisco, e que precisaria ser neutralizado ou ter seu fogo apagado definitivamente. Infelizmente, o próprio ser humano com suas ganâncias, egoísmos, soberba e preconceitos, faz com que ele, o temido inferno, passe realmente a existir de verdade na própria superfície do planeta em que vivemos e não, apenas, em nosso interior ou em algum outro lugar oculto.
Lembremo-nos disto ao criticarmos qualquer um deles, por suas ações ou omissões. Não sabemos pelo que eles acabaram de passar no inferno onde estiveram pouco antes e de onde acabaram de retornar.
Àqueles profissionais que frequentemente a ele descem, por vontade própria ou por razões de ofício e que, em seguida, dele retornam tendo ali deixado parte do bem que a eles pertencia e que para lá levaram e trazido de lá parte do mal que ali encontraram; os meus maiores respeitos e a minha grande admiração pelo trabalho anônimo que executam. Não sei o que seria da nossa vida comunitária sem a colaboração, a coragem e o desprendimento de vocês.
Àqueles profissionais que frequentemente a ele descem, por vontade própria ou por razões de ofício e que, em seguida, dele retornam tendo ali deixado parte do bem que a eles pertencia e que para lá levaram e trazido de lá parte do mal que ali encontraram; os meus maiores respeitos e a minha grande admiração pelo trabalho anônimo que executam. Não sei o que seria da nossa vida comunitária sem a colaboração, a coragem e o desprendimento de vocês.
_*/ Economista, Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha e membro da Academia Brasileira de Defesa.
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