272. O Novo Mandarim
Jober Rocha*
O consagrado escritor Eça de Queirós (1845-1900), em sua obra O Mandarim, produziu uma sábia alegoria sobre a riqueza.
A obra descreve as atribulações de um funcionário subalterno de um ministério qualquer, em Lisboa, chamado Teodoro e morador na pensão de uma viúva.
Certa noite, ao ler um livro em seu modesto quarto de pensão, a vista lhe escureceu e ele viu, diante de si, um novo livro, em cuja página estava escrito: “No fundo da China existe o Mandarim mais rico de que todos os reis de que a Fábula ou a História contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição dum avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha”?
Após dialogar por alguns minutos com um espectro que lhe apareceu no quarto em seguida, vindo do nada, Teodoro não hesitou e tocou a campainha: “Foi talvez uma ilusão; mas pareceu-me que um sino, de boca tão vasta como o mesmo céu, badalava na escuridão através do Universo, num tom temeroso que decerto foi acordar sóis que faziam né-né e planetas pançudos ressonando sobre os seus eixos...”
Cerca de um mês depois, um agente bancário, vindo da China, o procurou em Lisboa para entregar-lhe letras de câmbio referentes a herança do Mandarim Ti-Chin-Fú.
A continuação, o livro trata de como Teodoro se pôs a gastar a fortuna recebida e como o remorso foi, aos poucos, se instalando em sua consciência.
A Mega-Sena (loteria brasileira), do dia onze de maio do corrente ano, conferiu o seu maior prêmio da história. Quem acertou as seis dezenas do concurso número 2.150 da Mega-Sena irá receber a quantia de R$ 275 milhões de reais. Mal comparando, assemelha-se a herança recebida por Teodoro.
Fiquei, pois, meditando no que faria, caso fosse eu (que jamais joguei em loterias) o ganhador de tão expressiva quantia. Tendo lido ‘O Mandarim’, posso concordar com o Teodoro, personagem de Eça de Queirós e misto de filósofo e ‘bon vivant’, de que existe um primeiro momento de alegria extrema e desvairada, onde o novo rico percebe que tudo pode. Seu menor desejo pode ser imediatamente satisfeito. No entanto, a possibilidade de chafurdar em um consumo nababesco e sem sentido, onde todos os vícios se sobreponham às virtudes, é enorme. Também é grande a possibilidade de vir a esgotar, de modo rápido e sem critério, a sua fortuna.
Qualquer quantia recebida sem mérito e sem esforço é, normalmente, despendida de forma perdulária; pois, não existe nenhum vínculo psicológico, representado por anos de trabalho, de sofrimento, de necessidades não supridas, de vicissitudes, etc., que ligue o gastador à nova e imprevista fortuna que gasta.
Muitos daqueles aquinhoados com prêmios lotéricos terminam, novamente, depois de alguns anos, na mesma situação inicial em que se encontravam antes de ganharem as fortunas que ganharam. Episódios recentes do cenário político brasileiro, por sua vez, mostraram inúmeros políticos, agraciados com polpudas quantias extorquidas de empresários em troca de favores políticos, esbanjando sua riqueza em viagens, lanchas, veículos de luxo, aeronaves, mansões. Tanto gastaram que ficou evidente, para muitas autoridades do Ministério Público, que todo aquele gasto nababesco não poderia ser fruto apenas de salários, despertando a atenção das autoridades. Como estamos no Brasil, a chance de saírem impunes é elevada. Em outros países, no entanto, padeceriam alguns anos em algum cárcere isolado e longínquo e ficariam sem nada.
Não quero dizer, todavia, que os afortunados pela loteria devam doar aos necessitados tudo aquilo que o destino resolveu depositar em suas mãos. Estes seriam tantos, e com tanta carência, que seria como jogar um balde d’água nas areias do deserto do Saara; ou seja, eles continuariam existindo em enorme proporção na face da Terra e aquele que assim o fizesse passaria a ser um deles, engrossando ainda mais as suas fileiras. Também não quis dizer, com isto, que não se deva atender aos necessitados. Todavia, estes devem ser casos pontuais e a forma de ajuda-los deve ser bem estudada, para não se tornar algo realizado em vão.
Filosoficamente falando, segundo penso, aquele que foi agraciado pela fortuna não possui nenhuma obrigação moral de dividi-la com quem quer que seja. Só afirmam que sim aqueles que, eventualmente, pretendam receber alguma parte da fortuna. Por outro lado, aplicar a fortuna em alguma instituição financeira e viver dos juros que ela proporcionaria, embora seja uma forma inteligente de proceder, manteria a fortuna imobilizada em algum cofre de banco, apenas sendo guardada para eventuais herdeiros e seus cônjuges dela desfrutarem no futuro, após a morte do ricaço e o correspondente final do inventário, onde o Estado ficaria com uma grande parte e o advogado com a outra.
Adquirir imóveis em várias partes do país e, até mesmo, no exterior, vivendo de aluguéis, também é algo que muitos costumam fazer; porém, como na situação anterior, estes imóveis estarão, apenas, sendo guardados para os sucessores e seus cônjuges, que desfrutarão futuramente de tudo isto, sem nada terem feito para tal. Por outro lado, com o degelo polar e a elevação futura dos níveis dos oceanos, muitas áreas litorâneas poderão desaparecer e, com elas, incontáveis imóveis de muitos ricaços investidores. É algo que deve ser ponderado pelos agraciados pela Fortuna (deusa romana), pela Tique (deusa grega) e pela Lakshmi (deusa indiana – todas elas deusas estas que distribuem os bens segundo seus caprichos), antes de adquirirem os seus imóveis à beira-mar.
Gastar a fortuna em passeios, consumo de iguarias e bebidas finas, roupas de grife, veículos, etc., dependendo do montante desta, representará algo que poderá ser feito eternamente. Se o montante possuído for muito grande, uma única existência pode não ser suficiente para esgotar toda a fortuna de alguém que a possua muito grande. Como não existe nenhum método científico que possibilite a qualquer espírito encarnar, efetivamente, na mesma família e ser o primeiro na linha sucessória em uma nova encarnação, nem que assegure que esta encarnação (caso possa ser feita) se realize de imediato e não com mil anos de intervalo de espera, nada leva a crer que a fortuna não gasta nesta vida possa vir a ser aproveitada em uma outra existência pelo mesmo espírito.
Como meus leitores já devem ter percebido, os problemas que afligem aqueles muito ricos parecem ser infinitamente maiores do que os que os que acometem os muito pobres. Não possuir nada e almejar ter é um sofrimento muito menor do que ter muito e não saber o que fazer com o muito que se tem.
Outro grande problema que aflige aos endinheirados é a dúvida que os acomete acerca de todos aqueles que deles se aproximam. A grande maioria dos amigos pós-fortuna, sem sombra de dúvidas, é motivada por interesses partidos dos menos afortunados para os mais afortunados. Por esta razão os novos e os velhos ricos são, excessivamente, desconfiados de todos aqueles que deles se aproximam pleiteando amizade.
Por outro lado, as amizades existentes entre aqueles que nada têm são, estas sim, motivadas pela afeição recíproca. O filósofo Aristóteles (324 a.C. a 322 a.C.), em sua obra ‘Ética a Nicômaco’, foi um dos primeiros a escrever, substancialmente, sobre a amizade, que considerava uma virtude extremamente necessária à vida. Ele distinguia três tipos de amizades: a fundamentada no interesse, a baseada no prazer e a amizade perfeita. A amizade perfeita, segundo ele, “existiria entre indivíduos que são bons e semelhantes na virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro, de maneira idêntica, e são bons em si mesmos. Estes seriam amigos em razão de suas próprias naturezas e não por acidente”. Creio ser essa a amizade que prevalece entre aqueles que nada têm, pois seriam amigos em razão de suas próprias naturezas e não por interesses acidentais.
Pelo que até aqui foi dito, os leitores já podem imaginar que não é tão simples, como parece, ser detentor de uma grande fortuna, adquirida de uma hora para outra. Já é diferente quando a fortuna vem de família, onde aquele que hoje dela desfruta já dela desfrutava quando pequeno e foi criado no fausto comedido, sabendo que a fortuna oriunda dos avós ou dos país deveria ser bem administrada, para poder ser usufruída continuamente por várias gerações.
Mas, voltando ao início do texto, acho que os leitores estão curiosos em saber dos meus planos para dissipar um montante como este sorteado no sábado passado.
Em primeiro lugar, após receber o prêmio e me assegurar de que estava bem guardado e aplicado, embarcaria em um cruzeiro de volta ao mundo em uma das melhores companhias marítimas globais. Não comunicaria a ninguém esta viagem para evitar ser, eventualmente, seguido por parentes e amigos em busca de auxílios financeiros para novos projetos mirabolantes ou, simplesmente, para pedidos de empréstimos ou de doações. Minha mesa neste cruzeiro seria uma das mais bem localizadas, servida, sempre, com os melhores vinhos da adega da embarcação. Nos portos visitados eu percorreria todos os pontos turísticos dignos de serem visitados e conheceria os melhores e mais caros restaurantes locais. Uma ou outra joia, que se destacasse pela beleza e qualidade do ouro e da pedraria, seria por mim adquirida.
De volta do cruzeiro, daria início a um check-up médico em uma das melhores clínicas do país, de forma a estar seguro de que nenhum mal me afligia ou, se fosse esse o caso, iniciar imediatamente o tratamento requerido.
Caso tudo estivesse normal, me mudaria para uma suíte de um hotel de luxo, onde passaria a viver despreocupadamente, frequentando teatros, concertos, espetáculos musicais e possuindo uma boa biblioteca com as obras mais recentes sobre temas variados.
Esqueci-me de mencionar: se fosse casado faria tudo isto com a minha mulher. Se fosse solteiro faria tudo isto, cada dia, com uma mulher diferente.
Estabeleceria uma regra de três simples, na qual eu teria X milhões de reais para gastar e Y anos de vida (levando em conta a minha idade atual e a estimativa da vida que me restava, dada por meus abalizados médicos). Teria, assim, uma determinada quantia em dinheiro para gastar diariamente. Caso algum dia não chegasse a gastar o previsto, no dia seguinte o valor não gasto no dia anterior seria acrescido ao valor do dia, para ser gasto.
Alguns leitores estarão pensando: - Mas que sujeito egoísta, não pensou em nenhum momento nos pobres e nos necessitados!
Claro que pensei. Reconheço que o mundo está cheio deles. Por vezes não consigo dormir, pensando na multidão de pobres sofredores a percorrerem as ruas descalços e maltrapilhos implorando algo para comer. Nestas ocasiões, encho os bolsos de dinheiro, solicito meu automóvel ao mordomo e saio pelas ruas, procurando algum restaurante de alto luxo aberto, onde janto algumas lagostas e tomo várias taças de champanhe até ficar meio tonto, a ponto de retornar à minha suíte no hotel e pegar no sono imediatamente.
Sempre que algum pedinte se aproxima de mim nas ruas, ouço o que ele tem a dizer com atenção e tenho a compaixão de encaminhá-lo a pessoa mais próxima, pedindo a está que o atenda, pois tenho sérios compromissos a tratar no Jóquei Clube e não posso me demorar muito naquele local.
Não consigo ver um mendigo com o chapéu na mão, nas escadarias de alguma igreja, sem atirar dentro dele uma bala de hortelã, das muitas que carrego nos bolsos da calça para ocasiões como estas. Estou, portanto, em paz com a minha consciência, se é isso que desejam saber.
Muitos poderão pensar: - Mas ele, com toda essa fortuna, não pratica nenhum ato de filantropia!
Claro que eu pratico. Gosto muito de música clássica e, ao menos, uma vez por semana, assisto aos concertos da orquestra filarmônica da cidade. Para aqueles que não sabem, uma orquestra sinfônica é integrada por músicos profissionais, remunerados; enquanto uma orquestra filarmônica (palavra que tem sua origem no termo filantropia) é composta só por músicos amadores, que se reúnem apenas pelo prazer da música, sem nenhuma remuneração e sem a cobrança de ingressos.
Outros pensarão: - Como é desumano. Não faz nada pelos órfãos carentes!
Evidentemente que estes que assim pensam não me conhecem. Desde que fui aquinhoado com a suposta fortuna (que tento imaginar, neste texto, como gastaria), a minha grande preocupação com os órfãos fez com que eu percorresse vários asilos da cidade levantando os nomes, filiação e data de nascimento dos órfãos que ali se encontravam. Quando completavam a idade de doze anos eu ia procurar cada um deles, pessoalmente, levando comigo um grande envelope pardo, lacrado.
Ao trazerem o órfão à minha presença eu pedia a ele que sentasse diante de mim, mencionava que era um homem riquíssimo e que não me esquecera dele no dia em que completava doze anos. Rasgava o envelope, retirava de dentro do mesmo uma folha timbrada e lia para ele o teor da respectiva folha:
“Meu caro fulano de tal, na qualidade de milionário que sou, querendo ajudar um pequeno órfão como você a seguir a sua vida com mais tranquilidade, mais esperanças e maiores oportunidades no futuro, venho informa-lo do seguinte":
"Seu falecido pai está enterrado no Cemitério tal, na quadra tal e na sepultura de número tal. Sua falecida mãe, por sua vez, está repousando na sepultura x, da quadra y do cemitério Z. Espero que algum dia você possa ir visita-los nos locais onde repousam, levando para cada um deles algumas flores".
"Do seu amigo e benfeitor, Fulano”.
A cena era tão emocionante e comovente que, por vezes, eu saia dali com lágrimas nos olhos e tinha que tomar vários cálices de vinho do porto antes do almoço, no restaurante do terraço do hotel, para que o apetite voltasse e eu pudesse saborear os pratos da cozinha francesa, que tanto admiro.
Vejam meus caros leitores que nada é fácil nesta vida. Ganhar uma fortuna talvez seja mais fácil do que gastá-la. Não imagino quem terá sido o feliz ganhador da Mega-Sena deste sábado, mas, com toda a certeza, já deverá estar sendo assediado por amigos, parentes e conhecidos. Espero que possa ter acesso a este texto para que tenha algum balizamento sobre como proceder, sem se deixar influenciar por todos aqueles que, a partir de então, irão assediá-lo diuturnamente e sem se deixar intimidar por uma consciência que, muitas vezes, de tão egoísta e imaterial que é, só pensa nela e em suas virtudes, esquecendo que nós, os seres humanos de carne e osso, também possuímos os nossos vícios...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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