segunda-feira, 20 de janeiro de 2020


352. O Museu da Malandragem


Jober Rocha*


      Sábios do mundo todo e banqueiros espertos reuniam-se periodicamente em um conclave na cidade de Davos, na Suíça, para discutir sobre os destinos do mundo e da humanidade. Entre um e outro gole de champanhe francesa e ao final das discussões daquele ano, deliberaram edificar, em algum lugar próximo da capital do país, um museu destinado a salvaguardar para as futuras gerações todo o conhecimento sobre a esperteza humana, acumulado nos diversos campos das atividades, quer políticas, econômicas, militares ou psicossociais.
Assim é que pretendiam criar uma entidade filantrópica privada, com inúmeros empregados que percorreriam todos os países, de todos os continentes, buscando inteirar-se de episódios, já passados ou atuais, em que os protagonistas principais tivessem demonstrado uma superioridade matreira muito maior do que aquela dos seus contemporâneos pares, em episódios de pura e simples esperteza e malandragem; com isto, auferindo vantagens de toda ordem, inclusive pecuniárias.
O Vocábulo malandragem, como bem sabem os leitores, possui, evidentemente, várias conotações; mas, aquela a que mencionamos aqui se refere ao ato de ser mais esperto no trato com os demais; à ação daquele que é hábil e malicioso em suas maquinações; o proceder de quem se utiliza de algum ardil para vencer; a característica de alguém que age com malícia para atingir seus objetivos.
A entidade a ser criada, que seria um museu, conteria, pois, depoimentos de milhares de pessoas ao redor do mundo; depoimentos estes que poderiam ser apenas escritos ou também gravados e filmados. Possuiria o museu uma ala onde se prestariam homenagens aos vultos mais malandros da humanidade, expondo suas fotos ou imagens em pintura e escultura. Estes vultos seriam escolhidos por uma comissão de banqueiros, previamente nomeada pelos próprios, que eram os donos do museu, em um ato de pura malandragem. Aquele considerado o mais malandro de todos seria alvo de uma homenagem, em que receberia um prêmio e um diploma de honra ao mérito da malandragem.
As despesas seriam custeadas pelos banqueiros suíços, já imaginando seus próprios retratos figurando em uma ala, como aquela mencionada, onde seriam expostas as fotos ou as imagens dos indivíduos considerados como os mais malandros do mundo.
Criada logo a empresa (pois, como dizia um velho banqueiro: - Quem tem dinheiro tem pressa!), contratados os empregados, estes partiram para os quatro cantos do mundo com suas pranchetas, gravadores e filmadoras, buscando descobrir episódios inéditos de malandragem dignos de figurarem nos arquivos do museu. Enquanto isto iniciavam-se as obras do prédio, cujo projeto, megalomaníaco, evidenciava uma certa malandragem do arquiteto ao ter previsto a colocação de uma grande placa interna no saguão do edifício contendo o seu próprio nome e mencionando-o como tendo sido o arquiteto projetista de tão importante e suntuosa obra.
Os custos, evidentemente, foram superfaturados em conluio com a empreiteira que realizaria a obra. Os banqueiros, donos do dinheiro, não se importavam, em realidade, com os custos; pois imaginavam serem ressarcidos, de todas as despesas da construção e da manutenção dos empregados, com a cobrança de ingressos para a visitação do museu pelos turistas mundiais e com a isenção de impostos sobre atividades filantrópicas tão importantes quanto aquela.
Os empregados do futuro museu passaram meses viajando e entrevistando pessoas. Ouviram um sem número de histórias, gravaram milhares de horas de depoimentos e outras tantas horas de filmagens e de entrevistas. Todos estes empregados recebiam diárias e deveriam apresentar comprovantes das despesas efetuadas com taxis, alimentação, hotéis, etc., para comprovarem os seus gastos. A quase totalidade deles, em um ato de pura malandragem, solicitava recibos acima dos valores efetivamente gastos, buscando ficar com a diferença para si mesmo.
Tendo todos eles, finalmente, retornado à Suíça, teve início então a seleção, a catalogação e o julgamento dos depoimentos e das entrevistas. Todos estes ficariam arquivados no museu, mas, o que se buscava avidamente eram os casos que demonstrassem uma maior malandragem da parte do seu protagonista principal. O importante, segundo pensavam os espertos banqueiros, seria aprender com os casos daqueles que fossem considerados os mais malandros do mundo.
Havia, no meio de todo aquele material coletado, depoimentos de marajás indianos; de comerciantes árabes; de contrabandistas chineses; de chefes de facções criminosas brasileiras; de negociantes internacionais de armas; de piratas da Somália; de membros dos Carteis de Cali, Medellin e Tijuana; de produtores de petróleo do oriente; de proprietários de empresas de transporte aéreo e marítimo; de donos de empreiteiras de obras públicas; de atuais e de ex políticos do mundo todo (prefeitos, governadores e presidentes); de sacerdotes e membros do clero de todas as seitas e religiões; de chefes militares, com e sem experiência de guerras; de doleiros; de financistas; de investidores na Bolsa de Valores; de deputados e senadores; de juízes e promotores; de advogados; de donos de empresas de marketing; de proprietários de órgãos de imprensa e Mídia em geral; de donos de institutos de pesquisas e de verificação de opiniões, etc. 
Aos poucos, depois de filtrada e analisada a maior parte dos depoimentos, ficou bem evidente para os membros integrantes do júri ou da comissão de juízes, que os depoimentos de uma determinada pessoa se destacavam bastante de todos os demais.
Tais depoimentos denotavam uma enorme perspicácia do entrevistado na maquinação e montagem de negócios e situações em que o único grande ganhador era ele. Os banqueiros, tradicionalmente espertos, ficaram maravilhados com golpes e maquinações, jamais imaginados por eles, que haviam sido bolados e aplicados por aquele indivíduo que amealhara uma imensa fortuna, sabiamente espalhada pelos quatro cantos do planeta.
Por unanimidade de votos, o título de personalidade mais malandra do mundo foi atribuído àquele personagem que tanta admiração despertara entre os espertos banqueiros.
Resolveram convidá-lo para a inauguração do museu e para receber o prêmio a que fazia jus, por ter sido considerado a pessoa mais malandra do mundo por um júri de homens reconhecidamente espertos. A entrega do prêmio e do diploma seria precedida de um discurso do presidente do júri, enaltecendo o premiado. A seguir seria pronunciado o discurso deste, agradecendo tão honroso galardão. Todas as despesas de translado e de hospedagem do homenageado seriam custeadas pelo museu, que solicitaria a ele declarações, para a contabilidade e para o fisco, de valores muito mais elevados do que aqueles realmente despendidos.
No dia programado para a festa de inauguração, a grande mídia mundial estava presente ao evento. Os flashes não se cansavam de espocar pelos corredores do museu. As estantes e as prateleiras estavam repletas de pastas contendo milhares de depoimentos. Enormes telas de TV transmitiam entrevistas de personalidades mundiais da malandragem.
O presidente do Júri deu início a cerimônia de premiação, lendo um breve curriculum do agraciado e destacando alguns dos episódios de extrema criatividade e malícia, que fizeram com que ele fosse considerado como o homem mais malando do mundo, de todas as épocas e lugares.
A medida que o presidente do júri seguia discursando, qualquer pessoa medianamente esperta perceberia o sentimento dominante de inveja que pairava no ar, partido daquela plateia tão seleta e composta de cidadãos mundanos considerados como águias nos negócios mundiais.
O que mais contribuía para deixá-los invejosos era o fato de que a maioria deles havia tido uma formação científica primorosa. Grande parte possuía doutorado em Finanças, em Economia, em Política, em Marketing, em Ciências Militares, em Teologia, por conceituadas universidades. Todos eram bastante experientes e maldosos quando se tratava de enganar o próximo (ou, como costumavam dizer, os otários). No entanto, nenhum havia tido as magníficas ideias do homenageado, criadas por sua privilegiada mente, apenas, para enganar os demais. A inveja dos presentes se devia, pois, ao fato de tratar-se ele de pessoa praticamente sem nenhuma formação científica ou cultural que o destacasse de qualquer homem comum do povo.
Eu, felizmente ou infelizmente, estava presente aquele evento, como jornalista, enviado que fora por minha agência sediada nas Ilhas Jersey, paraíso fiscal onde muitos dos ali presentes possuíam contas correntes abastecidas com dinheiro público desviado de países pobres.
Terminado o discurso, que foi muito aplaudido pelos presentes, entregue o prêmio e o diploma, chegou a vez do homenageado discursar.
Ele subiu ao púlpito, mirou a todos com um olhar cínico e malicioso e começou com uma voz rouca, saída das profundezas: - Cumpanheiros e Cumpanheiras...
Nesta hora, reconhecendo quem era o homenageado, levantei-me para deixar o recinto. Caminhando em direção à porta de saída, ainda pude ouvir algumas vozes que gritavam histéricas: - Deixem o pobre homem livre!


_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário