352. O Museu da Malandragem
Jober
Rocha*
Assim é que pretendiam criar uma entidade filantrópica
privada, com inúmeros empregados que percorreriam todos os países, de todos os
continentes, buscando inteirar-se de episódios, já passados ou atuais, em que os
protagonistas principais tivessem demonstrado uma superioridade matreira muito
maior do que aquela dos seus contemporâneos pares, em episódios de pura e
simples esperteza e malandragem; com isto, auferindo vantagens de toda ordem,
inclusive pecuniárias.
O Vocábulo malandragem, como bem sabem os
leitores, possui, evidentemente, várias conotações; mas, aquela a que mencionamos aqui se refere ao ato de ser mais esperto no trato com os demais; à
ação daquele que é hábil e malicioso em suas maquinações; o proceder de quem se
utiliza de algum ardil para vencer; a característica de alguém que age com
malícia para atingir seus objetivos.
A entidade a ser criada, que seria um
museu, conteria, pois, depoimentos de milhares de pessoas ao redor do mundo; depoimentos
estes que poderiam ser apenas escritos ou também gravados e filmados. Possuiria
o museu uma ala onde se prestariam homenagens aos vultos mais malandros da
humanidade, expondo suas fotos ou imagens em pintura e escultura. Estes vultos
seriam escolhidos por uma comissão de banqueiros, previamente nomeada pelos
próprios, que eram os donos do museu, em um ato de pura malandragem. Aquele
considerado o mais malandro de todos seria alvo de uma homenagem, em que
receberia um prêmio e um diploma de honra ao mérito da malandragem.
As despesas seriam custeadas pelos
banqueiros suíços, já imaginando seus próprios retratos figurando em uma ala, como
aquela mencionada, onde seriam expostas as fotos ou as imagens dos indivíduos considerados
como os mais malandros do mundo.
Criada logo a empresa (pois, como dizia um
velho banqueiro: - Quem tem dinheiro tem pressa!), contratados os empregados,
estes partiram para os quatro cantos do mundo com suas pranchetas, gravadores e
filmadoras, buscando descobrir episódios inéditos de malandragem dignos de
figurarem nos arquivos do museu. Enquanto isto iniciavam-se as obras do prédio,
cujo projeto, megalomaníaco, evidenciava uma certa malandragem do arquiteto ao
ter previsto a colocação de uma grande placa interna no saguão do edifício
contendo o seu próprio nome e mencionando-o como tendo sido o arquiteto
projetista de tão importante e suntuosa obra.
Os custos, evidentemente, foram
superfaturados em conluio com a empreiteira que realizaria a obra. Os
banqueiros, donos do dinheiro, não se importavam, em realidade, com os custos;
pois imaginavam serem ressarcidos, de todas as despesas da construção e da
manutenção dos empregados, com a cobrança de ingressos para a visitação do
museu pelos turistas mundiais e com a isenção de impostos sobre atividades
filantrópicas tão importantes quanto aquela.
Os empregados do futuro museu passaram
meses viajando e entrevistando pessoas. Ouviram um sem número de histórias,
gravaram milhares de horas de depoimentos e outras tantas horas de filmagens e
de entrevistas. Todos estes empregados recebiam diárias e deveriam apresentar
comprovantes das despesas efetuadas com taxis, alimentação, hotéis, etc., para
comprovarem os seus gastos. A quase totalidade deles, em um ato de pura
malandragem, solicitava recibos acima dos valores efetivamente gastos, buscando
ficar com a diferença para si mesmo.
Tendo todos eles, finalmente, retornado à
Suíça, teve início então a seleção, a catalogação e o julgamento dos
depoimentos e das entrevistas. Todos estes ficariam arquivados no museu, mas, o
que se buscava avidamente eram os casos que demonstrassem uma maior malandragem
da parte do seu protagonista principal. O importante, segundo pensavam os
espertos banqueiros, seria aprender com os casos daqueles que fossem
considerados os mais malandros do mundo.
Havia, no meio de todo aquele material
coletado, depoimentos de marajás indianos; de comerciantes árabes; de
contrabandistas chineses; de chefes de facções criminosas brasileiras; de negociantes
internacionais de armas; de piratas da Somália; de membros dos Carteis de Cali,
Medellin e Tijuana; de produtores de petróleo do oriente; de proprietários de
empresas de transporte aéreo e marítimo; de donos de empreiteiras de obras públicas;
de atuais e de ex políticos do mundo todo (prefeitos, governadores e
presidentes); de sacerdotes e membros do clero de todas as seitas e religiões;
de chefes militares, com e sem experiência de guerras; de doleiros; de
financistas; de investidores na Bolsa de Valores; de deputados e senadores; de
juízes e promotores; de advogados; de donos de empresas de marketing; de
proprietários de órgãos de imprensa e Mídia em geral; de donos de institutos de
pesquisas e de verificação de opiniões, etc.
Aos poucos, depois de filtrada e analisada
a maior parte dos depoimentos, ficou bem evidente para os membros integrantes do
júri ou da comissão de juízes, que os depoimentos de uma determinada pessoa se
destacavam bastante de todos os demais.
Tais depoimentos denotavam uma enorme
perspicácia do entrevistado na maquinação e montagem de negócios e situações em
que o único grande ganhador era ele. Os banqueiros, tradicionalmente espertos,
ficaram maravilhados com golpes e maquinações, jamais imaginados por eles, que
haviam sido bolados e aplicados por aquele indivíduo que amealhara uma imensa
fortuna, sabiamente espalhada pelos quatro cantos do planeta.
Por unanimidade de votos, o título de
personalidade mais malandra do mundo foi atribuído àquele personagem que tanta
admiração despertara entre os espertos banqueiros.
Resolveram convidá-lo para a inauguração
do museu e para receber o prêmio a que fazia jus, por ter sido considerado a
pessoa mais malandra do mundo por um júri de homens reconhecidamente espertos.
A entrega do prêmio e do diploma seria precedida de um discurso do presidente
do júri, enaltecendo o premiado. A seguir seria pronunciado o discurso deste,
agradecendo tão honroso galardão. Todas as despesas de translado e de
hospedagem do homenageado seriam custeadas pelo museu, que solicitaria a ele
declarações, para a contabilidade e para o fisco, de valores muito mais
elevados do que aqueles realmente despendidos.
No dia programado para a festa de
inauguração, a grande mídia mundial estava presente ao evento. Os flashes não
se cansavam de espocar pelos corredores do museu. As estantes e as prateleiras
estavam repletas de pastas contendo milhares de depoimentos. Enormes telas de
TV transmitiam entrevistas de personalidades mundiais da malandragem.
O presidente do Júri deu início a cerimônia
de premiação, lendo um breve curriculum do agraciado e destacando alguns dos
episódios de extrema criatividade e malícia, que fizeram com que ele fosse
considerado como o homem mais malando do mundo, de todas as épocas e lugares.
A medida que o presidente do júri seguia
discursando, qualquer pessoa medianamente esperta perceberia o sentimento dominante
de inveja que pairava no ar, partido daquela plateia tão seleta e composta de
cidadãos mundanos considerados como águias nos negócios mundiais.
O que mais contribuía para deixá-los
invejosos era o fato de que a maioria deles havia tido uma formação científica
primorosa. Grande parte possuía doutorado em Finanças, em Economia, em Política,
em Marketing, em Ciências Militares, em Teologia, por conceituadas
universidades. Todos eram bastante experientes e maldosos quando se tratava de
enganar o próximo (ou, como costumavam dizer, os otários). No entanto, nenhum
havia tido as magníficas ideias do homenageado, criadas por sua privilegiada
mente, apenas, para enganar os demais. A inveja dos presentes se devia, pois,
ao fato de tratar-se ele de pessoa praticamente sem nenhuma formação científica
ou cultural que o destacasse de qualquer homem comum do povo.
Eu, felizmente ou infelizmente, estava
presente aquele evento, como jornalista, enviado que fora por minha agência sediada
nas Ilhas Jersey, paraíso fiscal onde muitos dos ali presentes possuíam contas
correntes abastecidas com dinheiro público desviado de países pobres.
Terminado o discurso, que foi muito
aplaudido pelos presentes, entregue o prêmio e o diploma, chegou a vez do
homenageado discursar.
Ele subiu ao púlpito, mirou a todos com um
olhar cínico e malicioso e começou com uma voz rouca, saída das profundezas: -
Cumpanheiros e Cumpanheiras...
Nesta hora, reconhecendo quem era o homenageado,
levantei-me para deixar o recinto. Caminhando em direção à porta de saída,
ainda pude ouvir algumas vozes que gritavam histéricas: - Deixem o pobre homem
livre!
_*/
Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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