278. Romeu e Julieta modernos
Jober Rocha*
A história de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, passada entre os anos de 1553 e 1554 em Verona, na Itália, tem como protagonistas os apaixonados amantes Romeu Montecchio e Julieta Capuleto.
A cidade é o palco do conflito histórico entre duas famílias tradicionais: os Montecchio e os Capuleto. Por um infortúnio do destino, Romeu, filho único da família Montecchio, e Julieta, filha única da família Capuleto, conhecem-se durante um baile de máscaras e apaixonam-se perdidamente. As duas famílias eram tradicionais inimigas e ambos os jovens, já compromissados com terceiros, tiveram que romper seus relacionamentos, causando, ainda, mais confusão e inimizades.
Segundo alguns historiadores, Shakespeare deve ter se inspirado em uma história da Grécia antiga, de Píramo e Tisbe, que data do século III, segundo a qual uma jovem apaixonada vai em busca de um veneno qualquer para tentar escapar de um casamento indesejado.
Durante a renascença, ainda conforme relatam os historiadores, proliferaram narrativas de amor semelhantes a esta e, no ano de 1530 (antes, portanto, da peça teatral de Shakespeare ser divulgada) Luigi da Porto publicou uma estória que parece haver inspirado, posteriormente, aquela do poeta inglês, que manteve a mesma cidade, os mesmos nomes dos protagonistas e de suas famílias, na estória que escreveu posteriormente.
A referida estória de Luigi, também, tem como cenário a cidade de Verona, os protagonistas são nobres e as famílias em questão, os Montecchi e os Cappulletti. Os dois principais protagonistas chamam-se, inclusive, Romeu e Giulietta.
Desde então, inúmeras versões literárias foram feitas para esta peça, sob a forma de contos, peças de teatro, crônicas, romances e novelas. Também o cinema entrou em cena, com algumas versões da mesma estória.
O resumo da estória, certamente, todos os leitores já sabem, sendo, portanto, dispensável mencioná-lo.
O que eu imagino estará aguçando a imaginação e a curiosidade dos leitores é o fato de querer conhecer a estória de vida do Romeu e da Julieta modernos, que dá título a este texto e que passarei a relatar a continuação. Informo a todos, antecipadamente, que se trata, apenas, de uma simples ficção literária; pois desejo manter amigos e fiéis aqueles pouco leitores que tenho e que podem querer identificar algum dos personagens mencionados com pessoas conhecidas, de seus relacionamentos ou que, eventualmente ,admirem.
Romeu era filho de um militar, destes que vibram com a profissão que escolheram e que procuram fazer todos os cursos possíveis, visando tornar-se um guerreiro cada vez melhor. Como filho de militar, Romeu já residira em diversos Estados da Federação, à medida que ia crescendo e ao tempo em o seu pai ia sendo promovido.
Em determinada época da vida militar, o pai de Romeu, em razão dos baixos salários dos militares, resolveu sair a luta em defesa dos companheiros de farda; tendo promovido algumas manifestações públicas que foram consideradas inconvenientes pelos superiores hierárquicos, que acabaram por puni-lo.
Inconformado com a punição, o pai acabou solicitando sua baixa da vida militar e foi dedicar-se a outras atividades.
Dentre estas atividades, sobressaiu-se a da política. Eleito vereador por um pequeno partido, poucos anos depois era eleito deputado por um partido maior. Como tal, teve que mudar-se para a Capital Federal, onde passou a residir com a família.
Romeu começou, a partir de então, a frequentar a vida social da capital onde morava. As festas e recepções se sucediam, ora na casa de desembargadores, ora de ministros, ora de senadores, ora de altas autoridades do executivo. Romeu ficou conhecendo muita gente importante, comungando das mesmas ideias e da ideologia de seu pai e pensava, futuramente, entrar também para a política.
Certo dia o pai lhe comunicou que iriam a uma recepção no Palácio do Governo Federal. O Presidente da República e família iriam receber diversos embaixadores de países estrangeiros, e uma delegação de cinco deputados escolhidos ao acaso, dentre os quais ele era um deles, havia sido convidada com as respectivas famílias.
Trajando a sua melhor roupa, na hora aprazada, Romeu estava em companhia do pai na fila de cumprimentos ao Presidente da República e a sua família.
O presidente era um sindicalista com apenas o primeiro grau, que havia sido eleito há poucos meses em uma campanha considerada fraudada por diversos oponentes. Embora com poucos conhecimentos formais e reduzida formação cultural, ele era, no entanto, uma águia em ver longe a possibilidade de ganhar dinheiro; um mangusto (animal comedor de cobra) em malandragem, no trato diário com os seus pares na política; um louva-a-deus-orquídea ou uma borboleta coruja em mimetismo (capacidade de se disfarçar) com as suas maquinações ilegais, em conluio com empresários; uma formiga cortadeira em disposição e força para carregar, para as suas várias residências particulares, tudo aquilo que conseguia desviar dos palácios públicos que frequentava.
Em que pese tudo isto, o presidente possuía uma filha, chamada Julieta, da mesma idade de Romeu, que, naquele dia, se encontrava na fila dos cumprimentos junto ao pai e que, comungando das mesmas ideias e ideologia dele, planejava, também, entrar para a política.
Eu não estava presente àquela solenidade e, portanto, não posso dizer nada com relação a eventual beleza da jovem. Tampouco posso dar minha opinião acerca da aparência de Romeu, jovem este que jamais conheci pessoalmente.
O que posso afirmar é que se tratou de amor à primeira vista, aquela relação entre eles. Romeu hesitava em largar a mão da jovem e está não parava de encará-lo com um sorriso embevecido.
Findo os cumprimentos, os dois encontraram algum pretexto para se encontrar e, a partir de então, ficaram juntos até o final da recepção.
A conversa entre eles não havia passado despercebida entre o deputado e o presidente. O presidente quis saber quem era aquele jovem que estava com a sua filha e consultou um assessor. Pouco depois, este lhe informou que se tratava do filho de um deputado de partido de direita, opositor ao partido de esquerda que havia elegido o presidente. Isso foi o bastante para deixar-lhe com uma forte azia até o outro dia pela manhã. O deputado sabia ser ela filha do presidente e aquilo, da mesma forma que ocorrera com um salgadinho gorduroso, não havia descido bem pela sua garganta.
Na manhã seguinte, que amanhecera com um sol radiante, o presidente pensava em ter uma conversa privada com a filha e explicar-lhe que não ficava bem manter amizade com o filho de um opositor de direita, notadamente por que soubera, através do assessor, que o deputado de direita era um crítico ferrenho ao seu partido de esquerda, sendo considerado o inimigo número um da esquerda pela bancada (composta por vários partidos esquerdistas) que monopolizava a câmara e dava sustentação ao governo.
Ao conversar com a filha, mais tarde, no salão oval do palácio presidencial, foi por ela informado de que aquilo não era uma simples amizade; mas, que estava apaixonada pelo filho do deputado.
O presidente quase teve um ataque apoplético, ficando vermelho como um pimentão. Coçando a barba, começou a proferir impropérios e a gesticular a esmo. A filha levantou-se e foi embora, deixando-o sozinho.
Ficaram dias sem falar um com o outro. O presidente pediu ao seu Ministro das Relações Exteriores que conversasse com ela, explicando que era como uma sina: filhos de país de direita têm que ser de direita e filhos de país de esquerda têm que ser de esquerda. Em razão disto, filhos de direitistas não podem se relacionar afetivamente com filhos de esquerdistas, e vice-versa; notadamente quando se trata da filha do Presidente da República.
O ministro conversou com a irredutível jovem e a situação continuou a mesma. Ela estava apaixonada pelo jovem.
Por vezes, ela fugia do palácio sem que os seguranças percebessem e passava dias na companhia do amante em um local da capital que só eles conheciam. Um belo dia o presidente fez uma ligação telefônica para o deputado e ambos se insultaram à vontade, sob os olhares espantados dos empregados e familiares. Aquela relação entre seus filhos tinha que terminar, acabaram concordando depois de muito insulto mútuo.
Os dois jovens, no entanto, possuíam um amigo comum, que era juiz federal e, certo dia, estando os três tomando uma bebida e conversando sobre amenidades, em um bar da moda, na Capital Federal, ocorreu a ela uma ideia que lhe pareceu genial: espionaria as atividades ilegais do pai (que ela sabia existirem) e forneceria material suficiente para o juiz abrir uma investigação, de modo a afastar o pai da presidência, no mínimo, por improbidade administrativa. Com o pai afastado do alto cargo que desfrutava e sem a pressão política que sofria, seria mais fácil para os dois jovens darem prosseguimento ao seu relacionamento amoroso, era o que ela pensava na ocasião.
Pouco tempo depois, com base nas informações fornecidas pela jovem, começaram as prisões de empresários, de políticos e de executivos do governo.
Em breve, através de delações premiadas de empresários e de executivos, todas as maquinações envolvendo o presidente tornaram-se conhecidas das autoridades judiciais. Em pouco tempo as prisões estavam cheias de cúmplices do presidente que, após um processo de rápido trâmite, teve seu mandato presidencial cassado mediante impeachment.
Condenado em primeira e em segunda instância, o presidente foi mantido, a partir de então, preso em um presídio federal.
Enquanto isto, o pai de Romeu, por uma dessas circunstâncias do destino, candidatou-se ao cargo de presidente, vago em razão do impeachment havido e em razão das novas eleições marcadas para o preenchimento do referido cargo.
Em uma rápida campanha, contando com o apoio das redes sociais e com o desejo de mudança da população (desalentada com os políticos de esquerda e com suas maquinações visando, exclusivamente, desviar verbas públicas para seus partidos e para as suas próprias contas correntes particulares), o pai de Romeu foi eleito para o cargo máximo do poder executivo.
A partir de então o pai de Romeu iniciou uma dura campanha para desfazer o aparelhamento ideológico efetuado pelo pai de Julieta em toda a administração pública. Ao mesmo tempo, enviou diversas medidas ao parlamento buscando sanear as despesas, conter a criminalidade, reduzir os impostos e tapar os ralos por onde escoavam boa parte dos recursos públicos para os bolsos dos políticos e de seus apaniguados.
Romeu, logo a seguir, influenciado por um pensador, filósofo e ideólogo de direita, residente nos USA, terminou seu relacionamento com Julieta, alegando que a beleza não é tudo na vida de uma pessoa; que o caráter, a cultura e a ideologia dos indivíduos são muito mais importantes do que uma eventual beleza física, que porventura possam desfrutar.
Julieta, desconsolada com o término do relacionamento, aceitou a ajuda de um empresário amigo de seu pai e partiu para Paris, pensando em fazer alguma coisa, em cursar algo, que preenchesse o seu currículo, até então, vazio. Com uma gorda mesada, dada pelo empresário, foi residir em um apartamento cedido pelo mesmo na Avenue des Champs Elysées. Passava as tardes comendo em bons restaurantes, percorrendo os shoppings ou assistindo a filmes pornôs. A noite percorria casas noturnas em Montparnasse e só se recolhia ao apartamento com o dia clareando. De vez em quando enviava um cartão postal para o pai, na prisão, contando de suas aventuras e desventuras em Paris.
Em algumas ocasiões, durante o pôr do sol, Romeu, deitado em uma espreguiçadeira na piscina do Palácio Presidencial, e Julieta, sentada nas margens do Sena com as pernas balançando na beirada do cais, pensam em como a vida tinha sido favorável para eles livrando-os um do outro. Realmente, vencida a primeira fase de deslumbramento e estase com a beleza física, ninguém consegue viver junto com alguém com quem não tenha afinidade política. Nessas ocasiões Julieta recordava-se de como o amor levara-a a trair seu próprio pai, delatando seus relacionamentos promíscuos com empresários venais. Aquilo, todavia, não a incomodava, pois via como o pai traia a própria esposa, mãe dela, todos os dias e sem nenhum remorso.
Romeu, nessas mesmas ocasiões, pensava em como o destino havia sido bom para com ele. Imaginava-se casado com Julieta e todos os dias discutindo com ela, acaloradamente, acerca das matérias que estariam sendo votadas no parlamento, onde ambos, certamente eleitos como pretendiam, talvez estivessem ocupando mandatos eletivos por partidos ideologicamente contrários.
- A vida, hoje, seria um inferno para nós dois se aquele relacionamento tivesse prosseguido – pensavam ambos, há milhares de quilômetros de distância um do outro.
Em uma ocasião Julieta passeando pelo Quartier Latin contemplou, em uma banca de livros próxima do Sena, a obra “Roméo et Juliette, de la Haine à l'Amour” e resolveu compra-la para ler depois. Adquiriu o livro, apenas, porque continha seu próprio nome na capa, mas jamais chegou a folheá-lo, pois não gostava de ler.
Romeu, quase na mesma ocasião, pouco antes de embarcar em um voo no aeroporto da Capital Federal, entrou na livraria do aeroporto em busca de um jornal para ler a bordo. Em uma prateleira viu um livro de William Shakespeare com o título de Romeu e Julieta.
Por alguns minutos contemplou a capa do livro, pensando consigo mesmo: - Puxa, escapei de boa!
Em seguida, deu meia volta e foi-se embora, sem nem mesmo comprar o jornal.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.