269. A Falência Total
Jober Rocha*
Segundo os dicionários, as definições de falência nos vários campos da atividade humana diferem. Possuem sentidos distintos no campo econômico (o de insolvência) e no jurídico (ademais da insolvência é necessário a execução coletiva das dívidas). Para além destes campos, todavia, mesmo tratando de coisas distintas, falência é sempre um termo associado ao ato de decretar o fim de algo; muito embora qualquer coisa que acaba ou chega ao fim, seja, quase sempre, diferente das demais ou nem sempre coincida. Chamamos de falência o fim de uma atividade qualquer; o término de um reinado, de uma dinastia ou de um império; o ocaso de um sistema político, econômico ou de uma ideologia dominante e até da parada progressiva dos órgãos do corpo humano, como no caso da falência múltipla dos órgãos.
Falência também pode ser entendida como um sinônimo de caos generalizado, situação está em que a ordem, a hierarquia, a moral e os bons costumes, os tradicionais valores virtuosos e nobres, o cumprimento das leis e das normas, etc., deixam de fazer parte do chamado pacto social (que rege os aglomerados humanos organizados sob a forma de estados, países, nações, etc.), rompido este isoladamente por um ou simultaneamente por ambos os pactuantes.
Pacto Social ou Contrato Social, como todos sabem, foi mencionado pela primeira vez pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau em sua obra “Du Contrat Social ou Principes Du Droit Politique”, publicada em Amsterdam no ano de 1762. Rousseau afirmava que “a ordem é um direito sagrado, que serve de base a todos os outros”. Dizia também o filósofo, que “os homens, tendo nascidos iguais e livres, só alienam sua liberdade em proveito próprio”.
As convenções, segundo o autor, “eram as bases de toda a autoridade legítima entre os homens; já que, nenhum deles tem autoridade natural sobre o outro, e a força não gera nenhum direito”.
Conforme pensava Rousseau, considerando que os homens não podiam criar novas forças, não tinham eles nenhuma alternativa a não ser a de se unir e dirigir as forças que existiam “formando, por agregação, uma soma de forças que pudesse prevalecer sobre a resistência, colocá-las em jogo por uma só motivação e fazê-las agir de comum acordo”.
Assim, o problema fundamental que o Contrato Social dava solução, segundo Rousseau, era o de “achar uma maneira de associação que defendesse e protegesse a pessoa e os bens de cada associado, pela qual, cada um, unindo-se a todos, obedecesse unicamente a si mesmo, sendo livre como antes”.
Com respeito ao soberano ou o governante, o filósofo afirmava (a meu ver infantilmente, na ocasião): “alicerçado nos indivíduos que o compõem, o soberano não pode ter os seus interesses contrários ao do povo, não tendo nenhuma necessidade de garantia com seus súditos, pois é impossível que o corpo, queira prejudicar todos os seus membros”.
Entretanto, para o filósofo (ainda de forma infantil e inocente, na ocasião) “se através do Contrato Social o homem se vê privado de muitas vantagens advindas da Natureza, ele passa a possuir outras que as compensam, como, por exemplo, as faculdades exercitadas e desenvolvidas, a ampliação de suas ideias, os sentimentos enobrecidos, etc. Com o Contrato Social o homem perderia a sua liberdade natural e o seu direito ilimitado a tudo que o tenta e que ele pode atingir; mas ganharia a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui”.
Embora o Contrato Social de Rousseau tenha sido citado, inúmeras vezes, por algumas de nossas autoridades – que, se alguma vez o folhearam, seguramente, não entenderam com profundidade suas teses - aquele contrato vigente, até então, em nosso país, já tendo sido rompido, unilateralmente, pelos próprios soberanos do momento e seus cortesãos, estaria à beira de ser rompido, também, pelos súditos, provocando a falência total da republica e de nossas instituições supostamente democráticas.
Explico-me melhor: Conforme dito por Rousseau, no início, sendo a Ordem um direito sagrado que serve de base a todos os outros, é evidente que sem respeito ao ordenamento jurídico (que manteve os nossos cidadãos, até agora, fiéis ao Contrato Social pactuado) os demais direitos do cidadão perderão os seus valores e acabarão por se extinguir. Da mesma forma, conforme já mencionado anteriormente, os homens só alienam as suas liberdades em proveito próprio: quando percebem inexistir benefício algum pela troca que fizeram, a tendência é a de romper o Contrato Social, sempre de maneira radical e violenta, como muitos povos já o fizeram.
Basta uma leitura diária nos jornais ou a consulta às redes sociais, para que constatemos que este é o nosso caso presente.
Os três poderes disputam entre si o cetro do poder total, esquecendo que cada um deles tem a sua função e possui atribuições distintas dos outros dois. O judiciário pretende julgar, legislar e, algumas vezes, impedir o executivo de executar ou, então, obrigá-lo a executar. O legislativo deseja legislar, julgar ou impedir o julgamento, e obrigar o executivo a executar ou impedi-lo de o fazer. O executivo, ademais de executar, busca cooptar os dois outros poderes (em passado recente com o uso de verbas públicas, cargos na administração, etc.) para a consecução de seus objetivos (muitas vezes lesivos à população e ao desenvolvimento do país).
Interferindo em todo este quadro mencionado, ainda encontramos as ideologias nefastas, os interesses próprios e egoístas, as conveniências dos grupos econômicos, os benefícios supranacionais e o proveito das quadrilhas especializadas no desvio de dinheiro público.
Assistindo a tudo isto através das redes sociais, uma população cada vez mais informada (e inconformada) percebe que a situação fugiu do controle e que, talvez, seja mais desejável romper definitivamente o atual pacto do que continuar atendo-se a ele.
Os governantes e os parlamentares, eleitos pelo sufrágio universal para tratarem dos interesses daqueles que os elegeram, quase sempre, tratam, apenas, de seus próprios interesses particulares e daqueles de seus partidos políticos, esquecendo-se, completamente, que foram eleitos e que são, apenas, servidores do Estado. A partir de então, passam a se considerar patrões, soberanos e déspotas de uma população de escravos, em uma servidão consentida. Estabelecem seus próprios salários e suas mordomias ao bel prazer; aposentam-se com vencimentos integrais após apenas dois mandatos de quatro anos cada. Fazem, tão somente, aquilo que vai de encontro aos seus próprios interesses, olvidando os interesses de seus eleitores.
O legislativo, recentemente, atribuiu-se a função esdruxula de pretender elaborar e aprovar o Orçamento da União, deixando ao executivo a atribuição de simplesmente executá-lo, diferentemente de como era anteriormente quando o Executivo elaborava e o Legislativo aprovava ou homologava o orçamento. Através de uma proposta de emenda constitucional-PEC, o Orçamento da União seria, a partir de então, elaborado e aprovado pelo Legislativo (o que me afigura como sendo uma excrecência, o fato de um mesmo poder elaborar e aprovar o orçamento que elaborou), cabendo, ainda, aos parlamentares o poder de apresentar emendas do seu próprio interesse, do interesse de seus Estados e dos seus partidos, que teriam a característica de serem impositivas; isto é, de execução obrigatória pelo Poder Executivo. Reduzir-se ia, assim, portanto, os poderes do Presidente da República.
A suprema corte de justiça do país, por sua vez, da forma como é constituída, encontra-se altamente politizada, já que seus ministros, que não são funcionários de carreira do Estado, mas, tão somente, pessoas nomeadas pelos presidentes da república do momento e aprovadas pelo parlamento para cargos vitalícios, muitas vezes, se veem na contingência de ter de julgá-los (aos presidentes e aos parlamentares) por crimes comuns, cometidos contra à sociedade civil e contra a administração pública; já que, o foro destes (envolvidos nas indicações dos magistrados para a mais alta corte) é o chamado ‘privilegiado’ em razão dos cargos que ocupam.
Alguns outros exemplos do rompimento do contrato social, por parte do nosso soberano, podem ser encontrados em diversas medidas que têm sido adotadas, desde longa data, com a assunção ao poder dos partidos de esquerda. São os casos, por exemplo, da tolerância extrema com os movimentos campesinos e urbanos, que invadem propriedades rurais ou urbanas, produtivas ou não, muitas vezes depredando e danificando culturas, instalações e equipamentos; da elevada carga tributária (uma das mais elevadas do mundo) a que os cidadãos e suas empresas estão submetidos, sem uma contrapartida equivalente em termos infraestrutura de saúde, de segurança, de transportes, de serviços públicos, etc.; da ligação velada de autoridades com facções de narcotraficantes; da morosidade e, muitas vezes, da parcialidade do Judiciário com respeito aos julgamentos de autoridades e dos chamados réus ‘chapa branca’, isto é, aqueles pertencentes aos partidos políticos no poder e que apelam para o chamado ‘foro privilegiado’ (inicialmente destinado ao julgamento, pela mais alta corte, dos crimes de opinião, de ação ou de omissão quando estritamente na função legislativa, judiciária ou executiva) no caso de crimes comuns de roubo de recursos públicos, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, tráfico de divisas, etc. ; do corporativismo do legislativo, quando se trata de punir, através da cassação de mandatos, seus representantes no senado e na câmara; do envolvimento de inúmeras autoridades, dos três poderes, em episódios de corrupção divulgados pela mídia, sem que estas autoridades paguem, judicialmente, pelos seus atos criminosos e devolvam aos cofres públicos tudo aquilo que receberam ilicitamente.
São os casos, também, das tentativas recentes dos partidos de esquerda de estabelecerem um governo comunista ou socialista bolivariano, sem um referendo popular - governo este que teria o poder e a intenção de mexer nos bens dos cidadãos e suspender muitos dos seus direitos constitucionais, modificando, ademais, as instituições públicas e privadas; da aliança política, econômica e estratégica, levada a cabo por governos anteriores, com países comandados por ditadores retrógrados - que utilizam ideologias idem para governar seus países; do perdão de dívidas de países africanos com o nosso país (países estes comandados por ditadores, em sua grande maioria, milionários), feita por governos anteriores sem nenhuma consulta aos demais poderes da república e a população. Da execução do desarmamento da população, cujo objetivo velado foi o de retirar armas em poder dos indivíduos, de modo a evitar eventuais revoltas e rebeliões que pudessem destronar os governantes de esquerda e seus partidos, que pretendiam eternizar-se no poder; do sucateamento proposital das forças armadas, deixando o país indefeso frente a eventuais ameaças externas e internas; da cessão de partes importantes do território nacional (por sua riqueza em recursos naturais e minerais estratégicos) e sua completa autonomia, para determinadas populações indígenas (algumas destas habitando áreas de fronteira que adentram outros países), caracterizando, em alguns casos, verdadeiros crimes de Lesa-Pátria; do loteamento de cargos comissionados com elevados salários, na administração pública, entre os membros do anterior partido no governo e da base parlamentar que o apoiava, seus parentes e amigos indicados; do envolvimento de pessoas muito próximas aos anteriores governantes em denúncias de corrupção, desvio de recursos públicos e malversação de verbas, pessoas estas até hoje impunes, não julgadas ou condenadas, etc., etc. e etc.
Mais recentemente foi o caso da censura imposta a uma revista e a um site das redes sociais, que divulgaram denúncias de determinado empresário, em episódio de delação premiada no âmbito da Operação Lava a jato, acerca de um ministro da mais alta corte de justiça.
Assim, quando a maioria dos eleitores brasileiros se conscientizarem (e já estamos bem perto disto) de que formam a base da pirâmide, que são eles que tudo executam e que contribuem com seu esforço e com a sua renda para a construção do país - país este que, embora entre as dez maiores economias mundiais, muito pouco lhes dá em retribuição pelo tanto que fazem (em razão de má gestão e da ambição por poder e riqueza dos governantes que têm se sucedido) e constatarem, ademais, a perda dos valores morais, das virtudes e da proteção que buscavam ao participarem do chamado Contrato Social firmado entre eleitores e eleitos; verem os vícios dominarem o cenário político do país, com verdadeiras quadrilhas dilapidando os cofres da nação, os súditos brasileiros podem, eventualmente, se sublevar e romper também o Contrato Social que já havia sido rompido pelos soberanos que têm se sucedido desde longa data, instaurando-se uma convulsão social e a consequente guerra civil que sempre a acompanha. Temos visto isto acontecer em diversas partes do mundo, tanto no passado quanto no presente. Nós, que sempre pensamos que estas coisas só ocorriam em outros países, estamos perto de vê-las ocorrer também no nosso.
Certamente, quando a maioria dos cidadãos se der conta de que está sendo ludibriada – como parece já estar ocorrendo - e que deve alijar do poder muitas das atuais autoridades dos três poderes da república, o cenário político deverá se alterar. Quem será o líder a deflagrar este processo, ainda é uma incógnita. Este líder irá propor, com toda a certeza, a instalação de uma ‘Comissão de Apuração da Verdade’, perante a qual todos aqueles envolvidos, nas duas últimas décadas, no desvio de recursos públicos, em malversação de verbas, em concorrências fraudulentas, tráfico de influências, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, traição, etc., deverão ser chamados a se explicar e a prestar contas, mesmo que eventualmente já absolvidos anteriormente.
Que Deus, sendo brasileiro como muitos dizem ser, interceda para que não tenhamos que passar pela infelicidade de uma guerra civil com a consequente convulsão social que a acompanha, como tudo leva a crer, retornando o país a um eventual estado de barbárie com o rompimento do contrato social - como ocorreu e ainda ocorre em muitos países ao redor do mundo - e que permaneçamos, ainda e sempre, unidos pela força do Direito.
_*/ Economista, Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha e membro da Academia Brasileira de Defesa.
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