285. Oscilando entre virtudes e vícios
Jober Rocha*
Um dia destes, ouvindo o ‘Samba da Benção’, de Baden Powell, Marcelo Peixoto e Vinícius de Moraes, que começa pela estrofe mencionada mais abaixo, comecei a meditar sobre as razões pelas quais alguns seres humanos escolhem seguir o caminho das virtudes e outros preferem seguir a trilha dos vícios, pois, a rigor, conforme pregam muitos, é melhor ser virtuoso do que vicioso:
“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração”.
Evidentemente, alegria e tristeza não se constituem, respectivamente, em virtude e vício, mas, apenas, tratam de simples estados da alma ou sentimentos íntimos.
Todavia, na minha maneira de ver a questão, creio que existem, realmente, dependendo das épocas e das chamadas transvalorações de valores implantadas na sociedade, razões para esta preferir trilhar, algumas vezes, o caminho do que é considerado como virtude e, em outras ocasiões, a senda daquilo que é considerado como vício. Ainda mais convicto fico desta assertiva, sabendo que existe uma verdadeira conspiração matemático-filosófica nos impelindo para a prática de ambos (principalmente, na medida em que a população mundial aumenta e a evolução material e espiritual se processa).
Percebo que muitos leitores estranharam estes meus comentários, não entenderam o meu ponto de vista, nem aonde eu quis chegar com estas afirmações e penso, portanto, que devo me explicar melhor nas páginas seguintes.
Começarei, pois, pelo início. Virtudes, segundo a definição dos dicionários, consiste em uma capacidade qualquer ou excelência, possuindo alguns significados específicos, quais sejam os de: capacidade ou potência em geral, capacidade ou potência própria do homem e capacidade ou potência moral do homem.
As virtudes, ao longo da história, foram classificadas como Platônico-Aristotélicas (Justiça, amizade, coragem); Jacobinas (Liberdade, igualdade, fraternidade); Cardeais (assim chamadas, por Santo Ambrósio, as quatro virtudes de prudência, justiça, temperança e fortaleza); Éticas (as que correspondem à parte da alma, quando esta é moderada ou guiada pela razão. Consistem no meio termo e são: a coragem, a temperança, a liberalidade, a magnanimidade, a mansidão, a franqueza e a justiça); Teologais (na Idade Média a fé, a esperança e a caridade, que dependeriam de dons divinos e que visariam a obter a bem-aventurança. As virtudes a que o homem não poderia chegar só com as forças da sua natureza, constituíam, portanto, as virtudes teologais); Dianoéticas (segundo Aristóteles, seriam aquelas próprias da parte intelectual da alma, ao contrário das virtudes éticas e morais, ligadas à razão. Seriam elas a arte, a ciência, a sabedoria, a sapiência e o intelecto).
Vicio, por sua vez, na falta de uma definição melhor e mais completa, é considerado, simplesmente, como o oposto da virtude. A genealogia da moral e as definições de quais sejam os vícios e as virtudes são, respectivamente, constituídas e estabelecidas ao longo dos tempos e variam de épocas para épocas, mediante a chamada transvalorações de valores, bem definida está pelo filósofo Friedrich Nietzsche.
Todavia, desde o surgimento da raça humana, a natureza do homem sempre foi e sempre será a mesma, tendo ele vindo ao mundo com todos os defeitos e qualidades (vícios e virtudes) necessários para sobreviver em um meio inóspito, rude e violento, no qual vigora a ambição, a competição e o espírito de sobrevivência individual e grupal.
O ser humano, segundo o Imperativo Categórico, muito bem explicado pelo filósofo Immanuel Kant em sua obra ‘Crítica da Razão Prática’, reconhece, intimamente e na teoria, que deveria pautar sua vida pelos sentimentos e ações virtuosos, percebendo que não deve fazer aos outros aquilo que não deseja que façam com ele mesmo. Ademais, sabe muito bem quando seus sentimentos e ações são viciosos, mesmo que não evite cometê-los. Entretanto, na prática, segundo eu penso, as injunções psicossociais são de tal ordem que, em muitas ocasiões, os sentimentos mesmo sendo viciosos acabam por prevalecer sobre os virtuosos.
Quando o ser humano se encontra isolado, existe bastante lugar em seu íntimo para todos os sentimentos virtuosos. Basta, entretanto, que outro ser humano dele se aproxime para que aqueles espaços, que antes eram preenchidos pelos bons sentimentos, sejam, logo a seguir, ocupados por sentimentos de medo, de inveja, de temor, de desconfiança, de ciúme e de rejeição com relação ao intruso.
Isoladamente o ser humano é uma criação perfeita, já que só tem qualidades para consigo mesmo. Seus defeitos só aparecem quando está inserido em algum grupo. Dentro dos grupos é que surgem as competições, as desavenças, as ganâncias, as luxúrias, os ódios, as violências, as paixões, etc., e o ser humano pode assim, em tais ocasiões, abrir totalmente as portas do seu coração e mostrar ao mundo quem ele realmente é, permitindo que seus maus caracteres se manifestem. Os bons caracteres ele demonstra sozinho, no trato consigo, já que ninguém é mau para si mesmo; os maus ele só demonstra quando se encontra acompanhado.
Mesmo entre aqueles indivíduos considerados virtuosos encontraremos, por vezes, sentimentos viciosos de orgulho, de inveja, de raiva, etc.; como também entre aqueles seres humanos considerados viciosos encontraremos, por vezes, sentimentos virtuosos de amor, de amizade, de perdão, de compaixão, etc.
Em qualquer grupo normal de indivíduos, portanto, a maioria de seus membros nunca será totalmente virtuosa, como também nunca será totalmente viciosa.
Não que isto ocorra por vontade dos participantes do grupo, mas, sim, porque seus comportamentos, descritos por uma “Lei de Distribuição Matemática”, obedecem ao ‘Processo Dialético da Evolução’.
Este processo dialético, segundo Aristóteles, teria sido expressado pela primeira vez por Zenão de Eleia (490-430 a.C), mas outros consideram o seu pai como sendo o próprio Aristóteles (469-399 a.C). Diferentes correntes filosóficas, ao longo da história, utilizam a dialética com distintos significados; no entanto, atualmente, ela é entendida como a história das contradições, pois tudo está sempre em processo de constante devir (vir a ser, tornar-se, transformar-se).
Seguindo adiante com a nossa tese, constatamos que a maior parte dos fenômenos probabilísticos de natureza continua e alguns de natureza discreta, podem ser representados por uma Lei Matemática conhecida por ‘Lei de Distribuição Normal’. O seu uso é geral, em todas as Ciências, bastando dizer que mais de oitenta por cento dos fenômenos da Natureza, possuem comportamentos com a característica desta ‘Distribuição Normal’.
O matemático belga Quetelet chegou a afirmar em seu “Tratado sobre o Homem e o Desenvolvimento de suas Faculdades”, que tudo no homem e no mundo se distribui segundo a Curva Normal.
Atualmente, entre os matemáticos, vigora a ideia de que, praticamente, todos os eventos se distribuem assim, razão da hegemonia da Curva Normal nas análises estatísticas realizadas em pesquisas conduzidas pelos homens de Ciência. A normalidade ocorre, naturalmente, em muitos (senão em todos) eventos representativos de situações físicas, biológicas e sociais.
Assumir que um evento se distribui normalmente está baseado em dois fundamentos: o primeiro ocorre quando a distribuição da própria população de eventos é Normal e o segundo ocorre quando a distribuição da população não for Normal, mas o número de casos for muito grande.
Os valores mais frequentes; isto é, os valores que correspondem as maiores probabilidades de virem a ocorrer, se encontram em torno da média da variável considerada. Quanto mais afastados os valores estão da média, quer acima quer abaixo desta, menos frequentes são as suas ocorrências.
Esta interpretação da Lei de Distribuição Normal é coerente com o que se passa na maior parte dos fenômenos que sucedem na Natureza. Ora, as características dos fenômenos que ocorrem com os seres humanos, podem, também, ser representadas através de uma ‘Função de Distribuição Normal’.
Assim, frente à determinada situação com que se defronta um grupo (ou uma amostra ou uma população) normal, podemos afirmar que sessenta e oito por cento dos indivíduos deste grupo (ou desta amostra ou desta população), apresentará um comportamento considerado Normal e que estará a menos de um desvio padrão da média da variável que se está pesquisando. Noventa e cinco por cento dos indivíduos do grupo apresentará um comportamento que estará a menos de dois desvios padrões da média e noventa e nove, vírgula sete, por cento, dos indivíduos, apresentara um comportamento que estará a menos de três desvios padrões com relação à média.
Com isto, quero deixar claro que, no que respeita a virtudes e vícios, os comportamentos extremos, totalmente virtuosos ou totalmente viciosos, por exemplo, face à determinadas situações vivenciadas pelos grupos (ou pelas amostras ou pelas populações) normais, constituem-se em exceções ao comportamento médio e, como tal, não são seguidos pela maioria, mas, apenas, por 0,3 por cento dos indivíduos; ou seja, 0,15 por cento seriam totalmente virtuosos e 0,15 por cento seriam totalmente viciosos, em um conjunto total constituído, cem por cento, de indivíduos normais.
Os comportamentos totalmente virtuosos ou totalmente viciosos constituiriam, ambos, os extremos da curva representativa da Distribuição Normal.
Isto ocorre, não porque os indivíduos assim o queiram, mas, porque suas condutas, que podem ser descritas por esta Lei Matemática, são, invariavelmente, regidas pelo ‘Processo Dialético da Evolução Humana’.
Nenhum grupo normal pensa e age, unanimemente, de uma determinada maneira, sobre uma determinada questão, principalmente, quando o número de seus integrantes for grande o bastante; pois, sempre, existirão pontos de vista opostos ou conflitantes (motivados pelas distintas inteligências, diversas maturidades e, principalmente, pela maior ou menor prevalência dos sentimentos viciosos ou virtuosos, presentes em todos os seres humanos), que, considerados no conjunto de todo o grupo (ou da amostra ou da população), fornecerão uma média, uma moda, uma mediana e uma variância para qualquer evento. Quanto maior seja o grupo (a amostra ou a população), mais a Curva Normal representará o evento em questão.
A razão, por detrás de tudo isto, é o fato de que a evolução humana ocorre mediante um processo dialético, no qual são necessárias a tese e a antítese, para que, finalmente, ocorra uma síntese. Tese é uma proposição, antítese a sua negação e a síntese é a resultante de ambas, diferente, portanto, destas duas.
Assim, oscilando entre as virtudes e os vícios, a humanidade sintetiza, dialeticamente, em cada período de tempo a sua necessária evolução. Alguns denominam esse processo de Princípio do Contraditório, que vigora tanto na Natureza quanto na vida psicossocial dos indivíduos: a verdade aparece por intermédio das contradições humanas e tudo na Natureza, que necessita de evolução, evolui dialeticamente.
Logo, se não existissem contradições, a humanidade não evoluiria e a verdade não seria conhecida. Está é, pois, a razão que encontro para os vícios e as virtudes presentes em todos os seres humanos. Também é, segundo penso, a razão pela qual o Criador ou o Grande Arquiteto do Universo, que não necessita evoluir, pode ser considerado a fonte de todas as virtudes e a ausência de todos os vícios.
Assim, comportamentos totalmente virtuosos ou totalmente viciosos, serão, sempre, considerados como extremos em um grupo (amostra ou população), enquanto a espécie humana continuar habitando a superfície do planeta em busca de sua evolução.
O normal para os integrantes desta nossa espécie (isto é, aquilo que a maior parte fará, buscando o seu progresso) será, sempre, pautar sua conduta por procedimentos que incluam virtudes e vícios, em doses consideradas aceitáveis pela moral e pelos bons costumes de cada época; já que, os sentimentos virtuosos (como, por exemplo, os de misericórdia, de bondade, de amor, de compaixão, etc.) não constituem leis que, obrigatoriamente, tenham que ser seguidas por todos os indivíduos; como, também, os sentimentos viciosos (aqueles contrários aos virtuosos), representados, por exemplo, pela ira, raiva, egoísmo, inveja, maldade, etc., não constituem crimes, a menos que sejam transformados em ações concretas que violem as leis.
Por outro lado, as transvalorações de valores, segundo definição do filósofo Friedrich Nietzsche, já ocorreram algumas vezes durante a história da humanidade (mais recentemente, com a tentativa de implantação do chamado Comportamento Politicamente Correto), ocasião em que as virtudes, até então vigentes, passam a se constituir em vícios e os vícios se transformam em virtudes.
Lembremo-nos de que, historicamente, sob a ótica exclusiva da sobrevivência pessoal ou grupal, em diversos períodos ou ocasiões críticas, por exemplo, entendeu-se que era melhor e mais sábio ser covarde do que corajoso, avaro do que pródigo, injusto do que justo, falso do que franco.
E la nave va...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
Membro da Academia Brasileira de Defesa.
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