segunda-feira, 15 de outubro de 2018

254. As Mil e Uma Fraudes


Jober Rocha*




                                     Todos os leitores já viram ou ouviram falar sobre o livro ‘As mil e uma noites’, clássico da literatura árabe originário da Pérsia. Trata-se de uma das obras literárias mais sedutoras e mágicas já produzidas, que reúne em si vários contos coletados possivelmente entre os séculos XIII e XVI.
                                               O núcleo básico desta obra, que dá início e impulso às narrativas, envolve a relação entre o Califa de Bagdá (na época sob o domínio da Pérsia, atual Irã) e sua mais recente esposa Sherazade, supostamente, sua próxima vítima. O monarca persa, após ser traído pela primeira mulher com o próprio escravo, manda executá-la e decide se vingar do gênero feminino. Ele se casa cada dia com uma jovem, a quem mata no dia seguinte. Durante três anos ele irá praticar o mesmo ritual, até que não haja mais jovens virgens em seu reino. É quando a filha do Vizir, Sherazade, a mais bela donzela da corte na ocasião, decide se casar com o Califa, apesar de todos os riscos que sabia correr. Muito inteligente e astuta, ela arma um plano com a ajuda de sua irmã, Duniazade, que com a permissão do soberano dorme também no quarto nupcial.
                                                   Conforme combinado, a cunhada do Califa convida a irmã a lhe narrar um de seus contos fantásticos. Encantado com a narrativa que ouve e que ela, habilmente, não conclui, despertando sua inevitável curiosidade, o califa adia a execução da jovem, que vai intercalando uma história a outra, enredando-o em uma teia bem urdida, que ao mesmo tempo vai curando suas feridas e seduzindo-o. No fim das mil e uma noites o rei se revela completamente apaixonado e desiste de matá-la, bem como põe um fim a sua desvairada vingança.
                                                        Em que pese o nosso povo ser um dos que menos lê e a nossa Literatura praticamente inexpressiva,  por mais incrível que pareça, uma ex autoridade de um dos nossos governos recentes (que na atualidade se encontra presa, da mesma forma que o ex presidente ao qual serviu), através de um Termo de Colaboração que firmou na presença de um delegado e de seus advogados, compareceu, voluntariamente e com o espírito de colaborar no âmbito das investigações - segundo disse -, em audiência visando esclarecer fatos em apuração pela justiça, dando início, através do que narrou para o escrivão, a uma nova peça literária capaz de ombrear com ‘As mil e uma noites’. A esta nova peça, dei-lhe o nome de ‘As mil e umas fraudes’
                                                Como no velho livro de contos persa, as autoridades policiais viram desenrolar perante seus olhos um novelo de ações criminosas que, encadeadas entre si, pareciam jamais chegar ao fim.
                                              As ações envolviam centenas (senão milhares) de pessoas distintas, em ambientes, situações e ocasiões diferentes, maquinando golpes e fraudes variados, com o dinheiro público, em obras e negócios que envolviam empresas públicas, estatais, órgãos da administração direta e indireta, empresas nacionais e estrangeiras, estados e municípios, governos estrangeiros, etc.
                                                 Acostumados com as atividades policiais, os agentes da lei ficavam embevecidos de tanta criatividade criminosa. Aquilo tudo que ouviam superava, em muito, os melhores romances policiais de Agatha Christie e de Sir Conan Doyle; os contos de mistério de Edgard Allan Poe; os romances de espionagem de Ian Fleming, bem como as literaturas fantásticas e bizarras de Ambroise Bierce e de H. P. Lovecraft, que todos haviam lido em suas juventudes.
                                              Por sua vez, a ex autoridade presa, inteligentemente, como fizera Sherazade no passado, também evitava concluir o seu depoimento, sempre puxando um novo caso a partir do caso anterior.
                                                Assim é que, no primeiro dia, foram desfiados os casos referentes aos loteamentos de cargos em empresas estatais, para fins de arrecadação de recursos destinados ao financiamento das campanhas políticas; no segundo, os acordos financeiros para a obtenção de apoio de partidos políticos que fariam parte da base parlamentar do governo; no terceiro, a venda de atos de ofício; no quarto, a venda de emendas legislativas; no quinto, a destinação de recursos para entidades fantasmas e para programas sociais fraudados.
                                                   E assim prosseguia, dia após dia, o depoimento daquela ex autoridade. Os assuntos eram tão variados, as tramas tão intrincadas, os segredos revelados tão insuspeitos, que as autoridades policiais acabaram viciadas em ouvir, diariamente, o que aquele senhor contava. Alguns dos ouvintes dormiam pouco durante a noite, esperando o clarear do dia para, após um rápido café, correrem para o local do depoimento, sentarem-se em suas cadeiras e viajarem por aquele mundo de sonhos, de consumo e de fantasia.
                                                      Os ambientes descritos pelo depoente eram sempre riquíssimos. Gabinetes de autoridades e majestosas salas de empresários; salas de reunião e de estar, a bordo de modernos aviões a jato que cruzavam os oceanos; suítes presidenciais em hotéis cinco estrelas; palácios particulares em diversas capitais mundiais; iates que singravam os mares, transportando helicópteros para conduzir aos portos de destino seus famosos e discretos ocupantes.
                                                    As bebidas saboreadas e as comidas servidas eram o que de melhor o dinheiro podia comprar. As mulheres que frequentavam aqueles ambientes faziam parte da bagagem que acompanha, sempre, a mais fina flor das sociedades internacionais de milionários.
                                                   Como em uma película de James Bond, os ouvintes tomavam ciência do desenrolar das peripécias narradas pelo depoente. O montante de recursos públicos desviados de forma ilícita, para partidos políticos, para empresários, para políticos, para grupos estrangeiros e para funcionários do governo, já contabilizados, supõe-se que monta a casas das centenas de bilhões. Estes recursos, todavia, devem estar subestimados, por que grande parte dos desvios, supõe-se, ainda é desconhecida e deverá ser apurada mais a frente, com novas delações premiadas ou com o desenrolar de novas investigações.
                                                   Enquanto isso, do lado de fora do prédio, uma pequena multidão de militantes políticos e de pessoas (contratadas por alguns trocados, para lá se fazerem presentes gritando palavras de ordem), alheias ao teor do depoimento, pediam a libertação do criminoso alegando que se tratava de um preso político e não de um criminoso comum.
                                                     A mídia, dependente de verbas públicas, que servira muito bem àquele governo cujas entranhas estavam sendo expostas, alegava que o depoente fora torturado psicologicamente para inventar mentiras que incriminassem seus companheiros de partido e de política, de modo a se beneficiar com a libertação ou com a redução da pena. Representantes de organismos internacionais, alinhados política e ideologicamente com o partido no poder nos últimos anos (cujos principais governantes e autoridades encontram-se já presos ou respondendo à inquéritos na justiça), também fizeram infrutíferas pressões objetivando a libertação dos envolvidos cumprindo pena.
                                                      Em paralelo a isto, no resto do país, corria o processo eleitoral destinado a eleger o novo presidente da república, que ocuparia o cargo a partir do início de 2019. 
                                                 A questão que paira no ar é: será que o candidato da maioria, aquele com a maior votação no primeiro turno, conseguirá se eleger presidente no segundo e poderá, efetivamente, governar em paz, retirando o país do fundo do poço da criminalidade, do desemprego, do déficit orçamentário e da recessão econômica em que se encontra, trazendo-o de volta à superfície do crescimento econômico, do progresso e da paz social, onde brilha o sol da esperança?
                                                  Será que o novo presidente conseguirá, ele mesmo, contando, evidentemente, com a sua equipe de governo e com o novo parlamento eleito, escrever uma obra do quilate daquela persa, que nos trará orgulho pelos séculos dos séculos e que poderemos denominar de ‘As mil e uma noites de honestidade, de tranquilidade e de felicidade’?


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.



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