279. O Pior Lugar do Mundo
Jober Rocha*
Um magnata e filantropo norte-americano resolveu, certa ocasião, estabelecer um concurso onde o prêmio seria uma semana na melhor suíte do hotel mais caro de Las Vegas, com direito a frequentar os cassinos e a zona boêmia da cidade.
Os candidatos deveriam ser cidadãos dos USA, que houvessem vivido e sobrevivido nos piores locais do globo terrestre. Eles teriam que subir em um palco e, perante um júri de cinco pessoas, contar as suas desventuras no local onde pior viveram, durante algum tempo, e as principais características do lugar.
A historia mais comovente, aquela que demonstrasse mais sofrimento e maior espírito de superação do seu protagonista, seria escolhida vencedora e o candidato premiado. Este sairia dali direto para a suíte presidencial do hotel, onde já o esperavam algumas garrafas de champanhe Veuve Clicquot, uma mesa com finas iguarias e algumas belas jovens locais.
O prêmio poderia ser entendido como uma tentativa do filantropo de proporcionar a alguém, que muito sofreu na vida, alguns momentos de extrema e de rara felicidade.
O concurso teve início em uma segunda feira pela manhã, sem prazo para terminar. Os candidatos, em número de 20, se sucederiam contando as suas vicissitudes, até que o último deles relatasse a sua. Após todos terem falado, seria feita uma contagem dos pontos atribuídos pelos jurados a cada um deles e aquele candidato que somasse o maior número de pontos seria declarado vencedor.
Dezenove dos candidatos eram ex militares. Alguns deles paraquedistas, outros fuzileiros navais, outros mergulhadores de combate, alguns comandos e outros forças especiais. Apenas um dos candidatos era militar ainda da ativa; porém, possuía, ademais da profissão militar, uma profissão civil que era a de Administrador de Empresas. A idade dos participantes regulava entre trinta e quarenta anos. Todos haviam vivido mais de dois anos nos locais que descreviam como os piores do mundo.
Começando o concurso, o primeiro, um ex paraquedista, começou a narrar sua epopeia de sofrimentos na Guerra do Vietname, desde que saltara em uma região de florestas, atrás das linhas inimigas, até o momento em que fora resgatado pelos companheiros, anos depois, em um campo de prisioneiros mantido pelo Vietcongue.
Seguiram-se os demais candidatos, uns falando de suas operações na Guerra do Iraque, outros na Guerra do Afeganistão, outros na Guerra da Síria, outros de operações especiais secretas desenvolvidas em países africanos e por aí vai. Todos, segundo diziam, haviam sofrido muito.
Finalmente, chegou a vez de o único militar da ativa contar o seu caso.
Tratava-se de um jovem que, tendo cursado Administração de Empresas em uma universidade norte americana (e, pouco depois, com a morte dos país, recebido uma razoável herança), resolvera investir a herança recebida na montagem de uma empresa industrial que ele mesmo administraria. Com a perspectiva de obter grandes lucros, resolveu investir seu dinheiro montando a referida empresa em um país em desenvolvimento (onde, normalmente, existem grandes carências de produtos diversos, pouca tecnologia, pouco capital e mão de obra abundante).
Analisando as várias opções que se apresentaram, acabou por escolher um país distante e imenso, com muitos recursos naturais e gente amável e hospitaleira; conforme seu pai havia mencionado, enquanto ainda vivo, por haver naquele país aportado como tripulante de um navio da marinha de guerra, durante a Segunda Guerra Mundial.
Analisando as várias opções que se apresentaram, acabou por escolher um país distante e imenso, com muitos recursos naturais e gente amável e hospitaleira; conforme seu pai havia mencionado, enquanto ainda vivo, por haver naquele país aportado como tripulante de um navio da marinha de guerra, durante a Segunda Guerra Mundial.
Assim, vendeu tudo o que tinha e comprou uma passagem aérea para o seu eldorado, um país distante chamado Brasil.
Após horas de viagem, desembarcou no aeroporto do Galeão, na cidade do Rio de Janeiro. Ficou horas para ser liberado pela alfândega. Já cansado, resolveu pegar um táxi. Sua surpresa, ao embarcar neste, foi constatar que lhe haviam roubado uma das malas. Desembarcara do avião com cinco e agora só tinha quatro.
Ao se deslocar do aeroporto para o centro da cidade, em determinado momento sentiu alguns barulhos na lataria do carro. Ao desembarcar em frente ao hotel pode notar diversos buracos redondos na lataria do veículo. Como não falava bem o português, resolveu não perguntar ao motorista o que era aquilo.
Já dentro do hotel, constatou que a reserva que fizera dias antes, desde os USA, não havia sido marcada e não possuía nenhuma habitação reservada. Teve de se contentar com um pequeno quarto de fundos, quando havia reservado uma suíte presidencial.
Depois de se instalar, resolveu fazer um passeio pelo bairro. Ao caminhar solitário por algumas ruas transversais, foi logo cercado por alguns jovens armados de facas que levaram a sua carteira de dinheiro, o relógio, o anel de ouro e o telefone celular.
Enquanto ele seguia narrando para os jurados, o silêncio era total. Nenhum ruído, nenhuma tosse, nenhum movimento de cadeiras sendo arrastadas. Todos mantinham seus olhares fixos no candidato, prestando atenção ao que ele dizia.
Suas atribulações começaram, realmente, no dia seguinte, quando ficou sabendo de todo o processo necessário para constituir uma empresa. A quantidade de papéis e certidões requeridas era tanta, as taxas e impostos a serem recolhidos aos cofres públicos tamanha, os despachantes que deveriam ser contratados eram em tão grande número, que quase desanimou. Mas, como era nascido no Texas e filho de país irlandeses, seguiu em frente.
Finalmente, oito meses depois, com a autorização em mãos, contratou uma firma, por um determinado preço, para edificar a sua empresa.
Quinze meses depois, tendo o preço original sido reajustado cinco vezes, a indústria ficou pronta. Restava, pois, adquirir os equipamentos; tarefa que levou mais seis meses. Finalmente, com tudo pronto, restava contratar pessoal qualificado para operar a empresa e alguns outros empregados para serem treinados, tarefa esta que consumiu mais alguns meses. Neste meio tempo, já havia feito contato com diversos compradores e já possuía algumas encomendas firmes.
A legislação trabalhista era tão confusa, segundo percebeu, que teve de contratar um escritório contábil para poder admitir pessoal. Do valor que custava, mensalmente, cada um dos empregados, metade ficava com o próprio e a outra metade ia para o governo.
Mensalmente, passavam vários fiscais pela empresa. Cada um fiscalizava uma coisa e, por mais que ele atendesse a todas as normas estabelecidas, os fiscais nunca se davam por satisfeitos, emitindo multas caríssimas. Um deles insinuou que se lhe desse mensalmente uma mesada ele pararia de fiscalizar a empresa. O sangue irlandês logo lhe subiu à cabeça e ele colocou o fiscal para correr. Após isto, as fiscalizações aumentaram de intensidade e também as multas.
Tentou vender seus produtos para empresas estatais; mas, estas somente compravam através de concorrências públicas. Tentou participar de algumas, mas percebeu que alguns participantes eram parentes dos licitantes e andavam todos abraçados pelos corredores, em uma intimidade, no mínimo, suspeita. Percebeu, também, que várias das empresas que participavam das licitações pertenciam a uma mesma pessoa e estavam todas localizadas no mesmo endereço. Os editais, muitas vezes, eram divulgados no dia e na hora da concorrência, não dando tempo de apresentar as propostas, tanto eram os documentos e certidões requeridos. Todavia, algumas empresas, na hora marcada, davam entrada em grandes envelopes contendo tudo aquilo que era pedido. Como elas conseguiam fazer isto ele não sabia. Premonição, talvez.
As ações trabalhistas se sucediam umas às outras. Alguns empregados que haviam trabalhado, apenas, uma semana, entravam na justiça com ações milionárias, alegando desde inadimplemento contratual até assédio sexual. E o pior é que existiam tantas brechas que eles quase sempre ganhavam suas ações milionárias, para alegria geral...
Um dia, pela manhã, ao chegar a empresa, notou que ladrões haviam levado os computadores, telefones, material de escritório, ferramentas, etc. etc. etc. Na véspera haviam sido assaltados por três bandidos armados, que tinham levado o dinheiro do caixa e o seu automóvel. Tentou registrar a queixa na delegacia do bairro, mas lhe informaram que o sistema havia caído e pediram que voltasse lá no final da semana, para ver se o sistema já havia sido restabelecido.
Todo final de mês o contador lhe apresentava diversas guias e boletos de impostos para serem pagos. Eram tantos que ele acabou tendo que pedir dinheiro emprestado aos bancos para pagar os impostos. Por essa altura, a sua herança já havia se extinguido e ele vivia das poucas vendas que fazia e dos empréstimos que solicitava aos bancos.
Não contaria sobre os diversos assaltos e sequestros relâmpagos que sofrera, para não cansar o júri. Não mencionaria sobre as horas que passou em pé, em filas quilométricas, para pagar contas, para tirar certidões, para ser atendido em repartições públicas, para pegar ônibus lotados (pois seu carro havia sido roubado, conforme já relatara).
Em épocas pré-eleição, diariamente, apareciam candidatos na empresa solicitando contribuições para o partido político a que pertenciam. Inicialmente ele não dava nada, mas, logo em seguida, começaram a aumentar as visitas dos fiscais. Alguns diziam, claramente, que eram vinculados a um determinado partido e sugeriam que ele desse a eles a contribuição que pediam, pois, caso contrário, os autos de infração e as multas aumentariam. Não tendo ele dado nada, poucos dias depois a prefeitura do bairro abriu um grande buraco na frente do portão de entrada e saída de mercadorias, que impedia os caminhões de entrega de descarregarem suas mercadorias e os caminhões da expedição carregarem. Foi obrigado a capitular e a pagar a contribuição que pediam, para ver o buraco tapado.
Em determinada ocasião, cinco empregados foram requisitados para trabalhar no sindicato da categoria. Ele teve que manter os salários deles por mais de um ano, enquanto trabalhavam no sindicato.
Alguns empresários, com os quais ele conversava, tentaram lhe demonstrar que o melhor era fazer o jogo do inimigo, isto é, corromper pessoas, pagar propina a fiscais, sonegar impostos, contrabandear insumos, roubar no peso e na qualidade, vender sem nota fiscal, burlar as leis, etc. Ele, no entanto, com a sua formação religiosa protestante, acostumado às leis e as normas norte americanas, com a educação que recebera dos seus pais em casa, era totalmente avesso ao que lhe propunham. Aquilo o deixava com o estômago embrulhado.
Pensava consigo mesmo: - Como estas pessoas podem se acostumar a viver desta forma, alimentando um sistema corrupto, venal, que não funciona da forma como deveria e que os manterá eternamente subdesenvolvidos? Por que não se revoltam e dão um basta nesta situação? Jamais entenderei como pensam os cérebros destes latino-americanos!
Um belo dia, recebeu uma notificação judicial para comparecer perante autoridades. Tratava-se de um débito milionário com cartão de crédito, não pago, que motivara uma ação julgada à revelia e já transitada em julgado. Ocorre que ele jamais possuíra qualquer cartão de crédito.
Vendo o valor da dívida, somando com o que devia de impostos e dos empréstimos bancários, chegou à conclusão que valia a pena deixar tudo para trás e retornar para os Estados Unidos. Rapidamente se dirigiu ao aeroporto, onde adquiriu uma passagem direta para os USA e embarcou pouco depois.
Nos USA, se alistou como fuzileiro naval, fez o curso de comandos e de forças especiais, sendo, desde então, enviado para diversas zonas de conflito ao redor do mundo. Nas forças armadas norte americanas possuía todo o apoio de que precisava: assistência médica, boa alimentação, salário elevado, prestígio junto a população americana, férias regulares, perspectiva de uma aposentadoria bem remunerada e um bom padrão de vida após se retirar da ativa. Por outro lado, sabia que aqui as leis eram cumpridas, a justiça era feita, os criminosos eram punidos. Estes anos em que tinha servido ao seu país foram os melhores da sua vida; principalmente, por que sabia que lutava pelo seu povo e pelos valores em que acreditava. Lutava pela prevalência do bem sobre o mal, das virtudes sobre os vícios, do conhecimento sobre a ignorância. É nisto em que acreditava e estava disposto a oferecer a sua vida pelo seu país e pelos seus valores, tanto quando milhares de conterrâneos seus já haviam feito ao longo da história dos USA.
- E assim termino de relatar o meu caso – finalizou o jovem.
O júri, imediatamente, se retirou para uma sala ao lado visando deliberar.
Pouco depois, saíram dali os jurados com um veredicto: o vencedor era o Administrador de Empresas que vivera no Brasil. Ele fora o que mais sofrera e conseguira aguentar vários anos de sofrimento, conseguindo se supera a cada dia em local tão desorganizado, corrupto e desprovido de qualquer apoio das autoridades, sem se deixar contaminar pelas nefastas e indecentes práticas locais.
Aplaudido até pelos demais concorrentes, ele já saiu dali em uma grande viatura preta, rumo ao luxuoso hotel onde era esperado por uma legião de belas jovens para uma inesquecível noite de luxúrias.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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