sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

259. Furtando o passado, prejudicando o presente e comprometendo o futuro



Jober Rocha*


                                O Brasil, desde o início da sua colonização, tem sido pródigo no que se relaciona com um dos mais antigos e tradicionais vícios humanos, que é o de se apropriar sorrateiramente das coisas alheias; seja sob a forma de roubo (quando existe violência), seja sob a forma de furto (quando ela não existe). 
                                                 Um livro, anônimo até os dias de hoje, denominado ‘A Arte de Furtar’, surgiu em Portugal no ano de 1744, porém datado de 1652, acreditando-se que, pelo estilo, seu autor fosse o Padre Antônio Vieira. No livro o autor alertava ao rei D. João IV sobre os vários tipos de furtos, os tipos de ladrões e as variadas circunstâncias em que a má ação ocorria, notadamente nas colônias portuguesas onde a presença do rei só se fazia presente através de seus prepostos (Governadores-Gerais, Donatários, etc.).
                                                       De lá para os nossos dias esta arte apenas se aperfeiçoou em nosso país, fazendo uso da evolução científica e tecnológica e da involução moral e dos costumes, pelas quais temos passado desde então.
                                                       Os episódios recentes da história brasileira, que além de manchá-la no presente, ficarão, para sempre, indelevelmente, maculando-a para as futuras gerações, foram os do chamado Mensalão e da denominada Operação Lava a Jato, por todos já sobejamente conhecidos para que sobre eles discorramos neste texto.
                                                       Nosso objetivo aqui é tratar de um outro tipo de furto, de proporções tão gigantescas quanto estes outros dois mencionados. Trata-se do furto sistemático de documentos históricos, de livros antigos, de peças raras, de mobiliário colonial, de imagens sacras; muitos deles únicos no mundo, originários dos primórdios da nossa história e depositados em museus, em bibliotecas e em igrejas católicas.
                                                       Com respeito ao roubo e furto de imagens, gravuras e quadros, no dia 04 de dezembro de 2018, segundo informações colhidas no endereço da WEB https://veja.abril.com.br/entretenimento/o-desenrolar-dos-roubos-do-maior-ladrao-de-obras-raras-do-brasil/ , foi noticiado que:

                                                         “Um novo capítulo se abre na longa e absurda história de Laéssio Oliveira, chamado de maior ladrão de obras raras do Brasil. O Itaú Cultural devolveu nesta segunda, 3, quatro peças roubadas da Biblioteca Nacional em 2004 e que estavam em seu acervo. São elas: a litografia Rio de Janeiro Pitoresco (1842-1845), de Buvelot e Moreau e três desenhos de Keller-Leuzinger que retratam a Amazônia, feitos entre 1865 e 1868”. 
                                          “O imbróglio teve início quando Laéssio, ladrão confesso dessas e de outras obras, mandou, da prisão, no começo do ano, uma carta a várias pessoas e instituições em que contava que as gravuras de Emil Bausch pertencentes à coleção do Itaú Cultural tinham sido roubadas por ele e vendidas ao colecionador Ruy Souza e Silva — que, por sua vez, as vendeu ao Itaú. Silva é ex-marido de Neca Setubal, herdeira do banco, e disse à época que tinha comprado o material numa loja de Londres. Em março, uma perícia confirmou que as gravuras eram da Biblioteca Nacional. Em abril, as duas instituições assinaram um convênio para avaliar todas as obras sob suspeita”. 
                                                “Foram enviadas, ao todo, 102 obras em três lotes, das quais foram confirmados esses quatro itens devolvidos agora. De todo o lote, apenas 32 foram descartadas como não pertencentes à Biblioteca Nacional. O laudo foi inconclusivo para as demais, já que elas foram manipuladas, lavadas ou recoloridas. Segundo a Biblioteca Nacional, ela foi vítima de dois grandes roubos em 2004 e 2005, enquanto era presidida pelo editor e colecionador Pedro Correa do Lago, que também é o curador da coleção Itaú”. 
                                                     “Um inquérito foi instaurado pela Polícia Federal, que está ouvindo os envolvidos na história. Laéssio Oliveira, 45 anos, ficou conhecido em 1998 quando retirou da Biblioteca Nacional de São Paulo 14 revistas e jornais antigos, com valor calculado, na época, em 750.000 dólares. Ao longo de mais de duas décadas, ele furtou obras, revistas, livros, documentos e pinturas de instituições como Biblioteca Nacional, Biblioteca Mário de Andrade, Palácio do Itamaraty, Fundação Oswaldo Cruz, Universidade de São Paulo (USP), Museu Nacional, entre outros. Do Museu que acabou consumido pelo fogo este ano, Oliveira teria roubado 3.000 gravuras, além de revistas e livros. ‘Salvei essas peças, não é mesmo’?, diz, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo”. 
                                                         “Oliveira participou do maior furto de livros raros já registrado no país na antiga Biblioteca Central da Universidade do Brasil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De lá, desapareceram 303 obras raras, entre elas os 16 volumes da primeira edição dos Sermões de padre Antônio Vieira (1610) e muitos títulos com gravuras, que eram cortados a navalha e vendidos separadamente. Já em valores, o maior roubo foi no Palácio do Itamaraty, no Rio, quando furtou 2.000 documentos avaliados em 1,5 milhão de reais”.
                                                     Com referência ao roubo e furto de documentos históricos, no endereço da WEB https://site.seduce.go.gov.br/cultura/alvo-de-roubo-acervo-do-arquivo-historico-e-recuperado-pela-policia-civil/  de 15 de maio de 2017, encontramos: 
                                                     “Mais de 10 mil documentos históricos foram encontrados em poder de professor da rede municipal de Goiânia. Uma parte valiosa da história de Goiás está de volta ao Arquivo Histórico Estadual, unidade da Secretaria de Educação, Cultura e Esporte de Goiás. A devolução foi feita na manhã desta segunda-feira, 15/5, pela Polícia Civil (PC) de Goiás durante cerimônia realizada no auditório da Secretaria de Segurança Pública e Justiça de Goiás, no Setor Rodoviário”.
                                                        “Alvo de furto, o acervo composto por cerca de 2 mil documentos, com mais de 10 mil páginas, foi encontrado na residência do professor Tayrone Zuliane de Macedo, no Centro de Goiânia. Tayrone é formado em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), tem 42 anos, é casado e professor concursado na rede municipal de Goiânia. A polícia chegou até o suspeito após uma denúncia anônima feita ao 1º Distrito Policial. À polícia, o professor disse que utilizava os documentos para elaborar sua tese de doutorado na UFG. O material foi sendo furtado paulatinamente, entre os anos de 2005 e 2012”, explicou o delegado Luciano Carvalho, responsável pela investigação do caso. Segundo ele, o indiciado já tem outras passagens pela polícia, por lesão corporal e pela Lei Maria da Penha”.
                                                       “A superintendente de Patrimônio Histórico e Artístico de Goiás, Tânia Mendonça, que representou a secretária de Educação, Cultura e Esporte de Goiás, Raquel Teixeira, na cerimônia, destacou a importância da recuperação do acervo. 
                                                          “Esses documentos são uma parte viva da história de Goiás, de nossa memória, e seria uma perda irrecuperável de um grande tesouro, pois representam um importante instrumento de pesquisa e de divulgação da nossa história”.
                                                     “Tânia destacou o trabalho competente da Polícia Civil na elucidação do crime e ressaltou que medidas imediatas já estão sendo tomadas pela Seduce para reforçar a segurança no local. A Seduce vai digitalizar todo o acervo histórico como medida de garantia da segurança dos documentos. Já o delegado geral da Polícia Civil de Goiás, Álvaro Cássio, fez questão de destacar que, em conversa com a secretária Raquel Teixeira, ficou definida a instalação de equipamentos de segurança dentro e fora do Arquivo Histórico. O Secretário de Segurança Pública e Justiça de Goiás, Ricardo Balestreri comentou que os documentos são únicos e exclusivos e por isso têm valor inestimável, inclusive para a própria Polícia Civil, que tem parte de sua história ali registrada”.
                                                  “A Polícia Civil chegou até os documentos furtados após uma denúncia anônima. Após checar a veracidade dos fatos foi expedido um mandado de busca e apreensão. Os documentos em poder de Tayrone Zuliane de Macedo foram encontrados espalhados pelo quarto de estudos do rapaz e dentro do guarda-roupa. Segundo o delegado Luciano Carvalho, o material foi sendo furtado paulatinamente durante o período em que o professor frequentava o Arquivo Histórico, entre os anos de 2005 e 2012".
                                                       “Em depoimento à polícia, o professor disse que levava os documentos para casa para serem utilizados como pesquisa para sua tese de doutorado, com o tema “Crime e Criminalidade no Planalto Central e Violência nos Sertões. As investigações começaram em janeiro deste ano e o inquérito está próximo de ser concluído e encaminhado ao Poder Judiciário. Como não houve flagrante, o indiciado aguardará a sentença em liberdade. Para o crime de furto desta natureza, o Código Penal Brasileiro prevê de 1 a 4 anos de prisão”.
                                                 A pesquisadora Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, declarou em artigo de 2009 que “o ano de 2003 não é apenas um ápice no roubo de obras raras no Brasil. Houve ali uma alteração de perfil". Referia-se a pesquisadora à descoberta, pela Polícia Federal, do furto de 2.000 itens da antiga sede do Palácio do Itamaraty, no Rio, em 2003. Segundo ela afirmou, “o caso aponta para um novo alvo: papéis históricos, mais fáceis de transportar”.
                                                     Beatriz declarou, na ocasião, que fez pós-doutorado no tema depois que, em 2006, descobriu um furto de mais de 3.000 itens do Arquivo Geral. Parte do acervo levado, como 87 gravuras de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), reapareceu, em 2007, ao prenderem um dos maiores receptadores e comerciante de obras roubadas.
                                                Com respeito ao roubo e furto de imagens e peças sacras de igrejas localizadas nas capitais e no interior do país, encontramos no endereço da WEB https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2017/07/24/interna_gerais,886044/em-minas-730-pecas-sacras-foram-levadas-de-igrejas-capelas-e-museus.shtml a seguinte matéria:

                                                    “Enquanto muitos mineiros aguardam apenas a decisão judicial para ter de volta imagens dos padroeiros e santos de devoção, cientes de que as peças se encontram sob guarda de instituições culturais ou ainda com os detentores, outros mantêm somente a esperança, pois as peças foram furtadas ou vendidas e ninguém sabe do paradeiro. Estatísticas do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) mostram que 60% dos bens culturais sacros foram deslocados de suas origens de forma indevida, indo parar nas mãos de colecionadores e antiquários mineiros, fluminenses e paulistas. Atualmente, 730 peças sacras são procuradas pelas autoridades estaduais de defesa do patrimônio cultural”. 
                                                      “Entre os objetos de fé procurados há décadas estão o Cativo (século 18), furtado em 1994 do Museu Regional do Sul de Minas, em Campanha, no Sul de Minas; Nossa Senhora do Bom Sucesso (séc. 18), em 1994 da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Serranos, no Sul; Santana Mestra (séc. 18), em 1997 da Igreja Matriz de Santana, em Inhaí, Diamantina, no Vale do Jequitinhonha; São Miguel Arcanjo (séc. 18/19), em 2003 da Igreja Matriz de São Caetano, em Mariana, na Região Central; e Nossa Senhora da Conceição (séc. 19), em 2003 do Museu de Arte Sacra Dom José Medeiros Leite, de Oliveira, no Centro-Oeste”.
                                                        “O furto de peças sacras e outras obras de arte movimenta um comércio clandestino só superado no mundo pelo de drogas e armas, segundo a Interpol Brasil. ‘Muitas pessoas visitam igrejas históricas em povoados distantes dos grandes centros e depois encomendam as peças, ou seja, mandam um ladrão ao local para carregá-las. Daí a necessidade de fortalecer a segurança’, diz um padre ouvido pelo Estado de Minas. ‘No passado, no interior de Minas, alguns vendiam peças valiosas por preços irrisórios para colecionadores do Rio de Janeiro e São Paulo. Geralmente, quem vendia não tinha noção do tesouro que estava em suas mãos, mas o comprador sabia muito bem o valor’, acrescenta”.

                                                        No dia 02 de setembro de 2018 o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista pegava fogo. O museu contava com 20 milhões de itens no acervo. Com 13 mil metros quadrados, abrigava preciosidades nas coleções da geologia, paleontologia, botânica, zoologia, antropologia, arqueologia e etnologia. Destaque para a coleção egípcia mais antiga das Américas, a maior da América Latina, com 700 itens. Foram dados como perdidos todos os acervos localizados no prédio principal do museu, todo o acervo mobiliário do Primeiro Reinado e todas as peças herdadas da família imperial.
                                                            O museu também abrigava o mais antigo fóssil das Américas e o primeiro dinossauro de grande porte montado no Brasil.  O MPF (Ministério Público Federal) em nota publicada no dia seguinte ao incêndio, informava que havia requisitado instauração de inquérito policial em relação ao incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. O objetivo era o de investigar as causas e responsabilidades pelo dano causado ao imóvel e ao acervo, que tinha mais de 20 milhões de itens. Até o presente não foram divulgados resultados sobre eventual perícia, bem como estabelecidas as causas e responsabilidades.
                                                      Em uma rápida pesquisa, encontramos os seguintes museus e instituições que guardavam acervos valiosos e que pegaram fogo nos últimos anos em nosso país: 

- 1978: Quase todo o acervo do Museu de Arte Moderna teria sido destruído, inclusive peças de Salvador Dali e de Pablo Picasso;
- 2010: Um incêndio atingiu o Instituto Butantan, em São Paulo, e teria destruído parte de uma grande coleção zoológica rara;
- 2013: Um incêndio atingiu o Memorial da América Latina, em São Paulo, e teria consumido diversas peças valiosas;
- 2014: O Liceu de Artes e Ofícios, que possuía 145 anos, foi tomado pelas chamas de grandes proporções que teria destruído grande parte dos seus arquivos, documentos e obras de arte;
- 2015: Um incêndio atingiu o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e teria destruído documentos e livros antigos, raros e valiosos; 
- 2017: Um incêndio, dominado pelos bombeiros, atingiu o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado em 1909 e que possuía diversas e valiosas obras de arte de artistas famosos.

                                                              Sabemos bem as causas comuns destes incêndios em nossos museus, teatros e Instituições históricas que têm exaustivamente sido apontadas pela imprensa: descaso das autoridades com os bens públicos, falta de recursos para manutenção e melhoria nas instalações, despreparo profissional de funcionários e de responsáveis, falta de vigilância física e através de câmeras, sistema precário de detecção e de combate ao fogo, etc. 
                                                       Sabemos, também, que uma das possíveis maneiras de esconder o desvio de documentos, de livros e de obras de arte valiosos (alguns deles únicos em todo o mundo e de valor incalculável), por alguém que deseja esconder seu crime (como já ocorrido em vários locais e épocas, ao redor do mundo inteiro), é colocando fogo no prédio onde eles ainda estariam, supostamente, guardados. Depois que as chamas destruíssem tudo, seria impossível acusar alguém pelo sumiço de peças dos referidos acervos.  Ademais, em muitos casos, parte dos acervos não estão nem catalogados, dando margem a que sejam surripiados por pessoas de dentro, de fora ou de ambos os lados.
                                                          O mercado mundial de antiguidades e de raridades está sempre ávido por estas relíquias, principalmente como uma forma de entesourar dinheiro de procedência ilícita. Nossas fronteiras, vulneráveis que são em ambos os sentidos, ao mesmo tempo em que possibilitam a entrada de armas e de drogas, deixam sair obras de arte, documentos e livros raros, muitos deles extremamente valiosos, em um comércio ininterrupto que, ao destruir o nosso passado e prejudicar o nosso presente, acaba comprometendo também o nosso futuro.


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.




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