sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

133. Um dia e uma noite na velha Escola de Aeronáutica do Campo dos Afonsos, RJ.


Jober Rocha*



                      Poucas pessoas terão tido a oportunidade, única, de passar pela experiência de desfrutar, durante um dia e uma noite, a rotina da antiga Escola de Aeronáutica, (Organização Militar que ministrava o Curso de Formação dos Oficiais Aviadores da Força Aérea Brasileira), situada no Campo dos Afonsos, no subúrbio de Marechal Hermes desde o ano de 1941 até o ano de 1971. 
                      Eu passei por aquela escola no ano de 1964; ou seja, quarenta e três anos após a criação, naquele local, do Aeroclube do Brasil em 1911, primeira atividade ligada à aviação ali exercida. Pouco depois, em 1914 foi criada no local a Escola Brasileira de Aviação. Em 1919 passou a ser Escola de Aviação Militar; em 1939 transformou-se no Primeiro Regimento de Aviação; em 1941, com a criação naquele mesmo ano da Força Aérea Brasileira, transformou-se na Base Aérea dos Afonsos. Na ocasião, foi ali extinta a Escola de Aviação Militar e, em seu lugar, criada a Escola de Aeronáutica, cujos alunos passaram a ser designados Cadetes da Aeronáutica.
                    Assim, a minha turma, em 1964, terá sido a vigésima terceira a passar por aquela organização com o objetivo de alcançar o oficialato da Aeronáutica. A partir de 1971 o CFOAv passou a ser integralmente ministrado na Academia da Força Aérea, na cidade de Pirassununga, no Estado de São Paulo. Estou certo de que a vivência que tive, na velha escola de Aeronáutica do Campo dos Afonsos, terá sido a mesma, ou muito semelhante, daquelas de quantos cadetes por ali estiveram, antes e depois da minha passagem por aquela escola.
                          Em 28 de fevereiro de 1964, junto com os demais integrantes da ‘Turma Sai da Reta’, vindos da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, de Barbacena, além de novos candidatos que haviam feito concurso diretamente para a Escola de Aeronáutica; bem como, de militares bolivianos e paraguaios (participantes de um acordo entre o Brasil e aqueles dois países, para o treinamento de pilotos militares), fui matriculado no primeiro ano do Curso de Formação de Oficiais Aviadores e incluído no efetivo da Escola de Aeronáutica e do Corpo de Cadetes da Aeronáutica.
                            Na Escola de Aeronáutica do Campo dos Afonsos, cujo comandante na ocasião era o Brigadeiro do Ar Antônio Raymundo Pires, pela primeira vez tomei contato, realmente, com a aviação militar. 
                         O Campo dos Afonsos possuía uma mística que a todos contagiava. Parte da Intentona Comunista, de 1935, havia se desenrolado ali; como também no quartel do Terceiro Regimento de Infantaria, da Praia Vermelha, com muitas vitimas fatais, vários militares feridos e inúmeros prisioneiros. 
                           Os integrantes do Primeiro grupo de Caça, que combateram nos céus da Itália durante a Segunda Guerra Mundial, dali haviam partido, alguns deles para nunca mais voltarem.
                          Inúmeros aviadores famosos, no Brasil e no Mundo, haviam transitado por suas edificações e hangares e em suas pistas pousado e decolado. Charles Astor, um dos primeiros pára-quedistas do país, que, ademais disto, efetuava malabarismos nas asas de aviões em vôo, vivia no Campo dos Afonsos. 
                            Foi, portanto, com muito respeito pelo quanto de história aquela Organização Militar encerrava, que passei pelos portões da Escola de Aeronáutica para iniciar mais uma etapa da vida militar rumo ao meu destino.
                                 Ali, como cadetes aviadores do primeiro ano do CFOAv, passamos a ter instruções na aeronave ‘Fokker’ T-21.
                             As instruções do primeiro ano (Estágio Primário) consistiam em decolagem, subidas e descidas, curvas de pequena, média e grande inclinação, estol com e sem motor, parafuso, pane simulada, pouso e arremetida. 
                                 Após havermos solado (voado sozinho sem instrutor), treinávamos ‘glissada’, oito sobre marcos, oito preguiçoso e algumas outras manobras.
                            Nosso Comandante de Esquadrilha chamava-se capitão Ozolins e o Sub-Comandante Tenente Mello. Em determinada ocasião o capitão Ozolins foi substituído pelo tenente Walmik Conde Filho. Alguns dos instrutores do Estágio Primário eram os tenentes: Mayron, Gouveia, Fabio, Nogueira, Barroso, Reginaldo, Gilson, Belchior e Rego. Alguns dos capitães ‘checadores’ eram: Perlingeiro, Neves, Luiz Rosa, Lobo, Mario Martins, Aquino e Azevedo. 
                              Possuíamos excelente quadro de professores, dentre eles, destacando-se: Vilaboim, Paulino Jaques, General Armando, Miss Carney, Miss Farney e Baratta.
                            A comida na Escola de Aeronáutica era considerada, pelos cadetes, como de boa qualidade. O café da manhã era iniciado com um mingau de aveia ou de sagu, seguido de bife e ovos, uma fruta (maçã ou banana) e café com leite e pão com manteiga.
                             Pela manhã, após o café, nos dirigíamos marchando para o hangar do Estágio Primário, o último dos hangares, ao final do pátio de estacionamento das aeronaves, onde hoje está instalado o Museu Aeroespacial. Marchávamos por cerca de trezentos metros, passando pelos outros estágios (Secundário e Avançado).  O pátio e os hangares fervilhavam de mecânicos, oficiais, sargentos, cadetes e, sobretudo, de aeronaves. O ronco de tantos motores, ao mesmo tempo, era algo ensurdecedor. O vento produzido por tantas hélices, girando, fazia voar longe nossos bonés, enquanto marchávamos sob um sol forte e um céu azul.
                                Chegando, finalmente, ao hangar do Estagio Primário, tomávamos conhecimento dos nomes dos primeiros cadetes a voarem. Os demais aguardariam o retorno dos primeiros. Os instrutores (todos eles tenentes) indicavam as missões do dia e, até o dia do vôo solo, eram nossos companheiros constantes na cabine dos aviões. No hangar havia um quadro com várias placas de metal contendo os números das aeronaves. Ao sair com uma aeronave tínhamos que virar a placa do lado contrário, para que os demais soubessem que aquela aeronave não estava mais disponível no pátio de estacionamento. Em seguida, apanhávamos o pára-quedas e as almofadas de assento e nos dirigíamos para o avião estacionado no pátio.
                              Ao chegarmos junto do avião, subíamos na asa esquerda, abríamos à capota e colocávamos as almofadas e o pára-quedas, no assento do piloto. Descíamos da asa e procedíamos ao cheque externo do avião, que consistia em vistoriar toda a estrutura externa da aeronave, drenar os tanques de combustível das asas e retirar a capa do ‘Tubo de Pitot’, tubo este que permite a indicação da velocidade do avião. Subíamos novamente na asa, vestíamos o pára-quedas, arrumávamos as almofadas, sentávamos e amarrávamos o cinto de segurança. 
                                 Às vezes a aeronave necessitava de um apoio externo para dar a partida, o que era feito por um sargento com um gerador de energia portátil. Dada a partida, taxiávamos em direção a cabeceira da pista em que iríamos decolar. A pista de decolagem era determinada pelo movimento da ‘Biruta’; pois decolávamos e pousávamos, sempre, contra o sentido do vento. Às vezes, ainda no meio do caminho, tínhamos de nos dirigir para outra pista, em razão da mudança do vento. Em lá chegando, parávamos a quarenta e cinco graus com a pista e procedíamos ao cheque interno, que consistia, dentre outros procedimentos, em verificar o comportamento dos diferentes relógios indicadores no painel de instrumentos. 
                                Se estivesse tudo certo, deveríamos olhar para a Torre de Controle, a fim de esperar o sinal verde da lanterna para a decolagem ou, então, caso algum dos instrumentos apresentasse defeito ou recebêssemos sinal vermelho, retornar para o estacionamento no Estágio Primário.  Esta etapa, entretanto, apenas poucos de nós fazíamos; pois, além de estarmos sobrecarregados com o cheque interno e nos esquecermos de olhar para a torre de controle, achávamos que aquela pista era inteiramente nossa, já que havíamos chegado ali primeiro.
                                O número de horas de voo com que o cadete, normalmente, solava (voava sozinho) variava de onze a quatorze horas. Durante a manhã e a tarde, dezenas de pequenos aviões T-21 eram vistos subindo, descendo e tirando rasantes nas áreas de treinamento e sobre o Campo dos Afonsos.
                                  Nosso uniforme de voo consistia em um macacão azul escuro e botas pretas. Quando não estávamos voando eles ficavam pendurados em cabides, do lado de fora dos alojamentos, talvez pelo odor que desprendiam; já que só eram lavados uma vez por mês, no máximo.
                                Tive dois instrutores até o dia do voo solo, o primeiro deles foi o Tenente Belchior e o segundo o Tenente Rego. Ao ser levado a cheque, para o voo solo, eu possuía doze horas de voo e havia realizado quarenta pousos e decolagens.
                            O local de treinamento era a região da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes que, naquela ocasião, eram áreas praticamente desertas. Decolávamos de Marechal Hermes e nos dirigíamos para aquela região, voando visual. O Campo dos Afonsos possuía uma pista de concreto e, ao lado, em paralelo, uma pista de grama que utilizávamos para os nossos pousos e decolagens. Denominava-se 08 em um sentido, e 26 no sentido oposto. Era cortada por outra pista de grama, perpendicular, denominada 17 em um sentido e 35 no outro. Havia também uma biruta, marcando a direção do vento, que avistávamos do céu ao fazer o procedimento para o pouso.
                                  Quando eu voava solo, gostava de passar baixo por sobre as areias da praia, quase sempre desertas, e por sobre o mar, embora soubesse que se algum oficial, voando por ali, me avistasse, eu seria infalivelmente punido ou, até mesmo, desligado. 
                               Nas ocasiões em que treinávamos pane simulada, deveríamos, após cortar o motor, escolher um local para pousar, fixarmo-nos nele e fazer, planando, a aproximação para o pouso. Se víssemos que iríamos cair antes ou depois, do local escolhido, arremetíamos a aeronave com a certeza de que, se aquela fosse uma pane verdadeira, teríamos certamente nos ‘estrepado’.
                        No dia do primeiro voo solo o oficial ‘checador’, sempre um capitão aviador, informado pelo instrutor de que o cadete estava apto para voar sozinho, efetuava, com este, um voo até a área de instrução para confirmar suas condições de pilotagem e o seu nível de treinamento. Ao regressarem, após o pouso, caso o cadete estivesse aprovado, o ‘checador’ desejava-lhe boa sorte e o autorizava a decolar sozinho para o circuito do campo e o pouso.
                               A sensação experimentada, então, por cada um de nós, era um mistura de satisfação e de receio. Pela primeira vez estávamos voando inteiramente por nossa conta. Qualquer erro, porém, teria que ser remediado, exclusivamente, por nós mesmos.
                           Após regressar deste voo o cadete, já solo, era atirado pelos demais companheiros em um pequeno lago, denominado ‘Lago do Lachê’, como batismo pelo fato de ter voado sozinho.
                              Em meados do ano era dado início aos preparativos para o salto de pára-quedas, que todos os cadetes do primeiro ano eram obrigados a fazer. Os treinamentos eram ministrados na Brigada Paraquedísta, na Vila Militar, próxima do Campo dos Afonsos, e o salto era dado de uma aeronave C-82 (conhecida como Vagão Voador).
                          Quem nunca saltou, não pode avaliar o que representava para aquele que o pratica, um salto de pára-quedas. Antes do salto todos temiam a não abertura do pára-quedas; tanto é assim, que, obrigatoriamente carrega-se outro, de reserva, preso ao peito. 
                          Nos instantes que antecedem ao pulo, pensamentos negativos ocorrem a todos aqueles que saltam pela primeira vez. Todavia, vencido o temor inicial de colocar a vida em risco, a euforia desfrutada com a abertura do pára-quedas, a visão da terra, do horizonte e do firmamento, descortinada durante a queda, é algo indescritível.  Tão logo se chega ao solo, se quer de novo saltar.
                            No segundo ano (Estágio Básico) o cadete aprendia acrobacias (tounneaux, looping, over head, curva de himmelman, etc.) e voo em grupo ou formatura, ainda voando o ‘Fokker’ T-21.
                       No terceiro ano (Estágio Avançado) o treinamento que o cadete recebia, na nova aeronave North-American T-6 Texan, era a de repetir o treinamento aprendido com o T-21 e, ademais, iniciar o voo avançado (voo por instrumentos, voo noturno, navegação aérea e treinamento de voo simulado - Link Trainer). 
                             Terminando o curso e tendo sido declarado Aspirante a Oficial Aviador, o militar era enviado para realizar o Estágio de Seleção de Pilotos de Caça, na cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará, ou de pilotos de bombardeio, em Natal, no Rio Grande do Norte.
                 Mas, voltando ao dia a dia do cadete aviador, o ambiente em que vivíamos era integralmente preenchido por inúmeras atividades que, sucedendo-se umas as outras, deixavam-nos completamente cansados ao final ao cair da noite.
                          Durante o dia, um forte odor de gasolina misturava-se ao cheiro das essências nativas, oriundas das espécies vegetais que existiam naquele campo. Inúmeros pássaros disputavam com as aeronaves militares a primazia do espaço; seus pios sendo sobrepujados pelos roncos dos motores dos aviões que saiam ou que chegavam.
                            Em cada canto, em cada alameda, em cada edifício, qualquer médium ou sensitivo poderia perceber espíritos de antigos aviadores que por ali haviam passado, contemplando, com seus velhos macacões de voo e suas toucas de couro, os novos cadetes que chegavam a cada ano, e que ali aprendiam os ‘macetes’ para sobreviver em uma profissão tão perigosa quanto a de aviador militar. 
                             A escola possuía um monumento ao Cadete Imortal, isto é, um monumento àqueles jovens que haviam perdido as suas vidas em acidentes aeronáuticos. Nele, constavam os nomes de dezenas de cadetes que haviam oferecido as suas breves existências em prol do ideal da aviação.
                          Finda as atividades diárias, e antes de mergulhar em um sono reparador, eu costumava caminhar até os hangares, onde estavam estacionadas as aeronaves, para um derradeiro voto de boa noite àquelas velhas amigas que nos mantinham nos ares, dia e noite, e que sempre nos traziam de volta, incólumes, até a nossa querida Escola de Aeronáutica. Algumas delas ainda despendiam calor de seus motores. Alguns cadetes e instrutores preparavam-se para os vôos noturnos que se iniciariam.
                        No céu de Marechal Hermes, uma lua prateada derramava seus raios sobre as aeronaves e sobre as pistas de pouso e decolagem. Um vento frio soprava de quando em vez, fazendo com que eu levantasse a gola da japona. Em uma destas ocasiões pareceu-me divisar, no circuito de tráfego da pista, uma aeronave que se aproximava para o pouso.
                               Firmando os olhos pude perceber um antigo P-47, daqueles que combateram nos céus da Itália, já na reta final, aproximando-se da pista de cimento. Aquela aeronave já não era mais usada na Força Aérea Brasileira e só existiam algumas poucas, inoperantes e tratadas como relíquias em algumas Bases Aéreas.
                            A aeronave tocou o solo e, logo em seguida, arremeteu em direção ao espaço de onde tinha vindo sumindo de vista em poucos segundos.
- Quem seria o seu piloto? – pensei com os meus botões.
- De onde viera e para onde iria? – continuei pensando.
                              Um calafrio percorreu-me o corpo todo e resolvi retornar para o alojamento, onde uma cama amiga me esperava. O meu dia havia terminado e, como sempre, esperava por uma noite agradável e sem mosquitos. Felizmente eu não tinha voo noturno e nem estava de serviço, o que me assegurava uma noite de sono ininterrupta até a manhã seguinte.

-*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

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