quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

131. A perfeição não existe, logo...


Jober Rocha*


                       A perfeição, conforme esclarecem os dicionários, designa uma circunstância que não pode ser melhorada ou um ser que reúne todas as qualidades e não tenha nenhum defeito.
                        Filosoficamente Aristóteles já considerava, em sua época, três critérios para que algo ou alguém pudesse ser considerado perfeito:
1. Aquilo a que não falta nenhuma de suas partes ou além do qual não se pode achar nenhuma das partes que lhe pertença;
2. O que possui, em sua própria espécie, uma excelência que não possa ser sobrepujada; e
3. O que atingiu seu objetivo; desde que se trate de um bom objetivo. 
                     No primeiro sentido, o perfeito seria o completo; no segundo, o excelente; e no terceiro o real ou atual, por que cumpriu seu objetivo. O primeiro e o terceiro são conceitos absolutos e, portanto, pertencem à Metafísica. O segundo é um conceito que exprime apenas a excelência relativa de algo, não fazendo parte da Metafísica. Assim, os filósofos quando estudam a perfeição tratam somente do primeiro e do terceiro significados distinguidos por Aristóteles.
                    O desenvolvimento da Ética, por sua vez, trouxe a noção da perfeição como uma idéia; isto é, uma condição que não é alcançada, mas deve, necessariamente, ser almejada.
                     A Escolástica (pensamento cristão da Idade Média que tentava conciliar a racionalidade com a verdade revelada, concebida pela fé cristã), afirmava que uma coisa era tanto mais perfeita quanto maior a sua posse do ser; e como Deus possuía todo o ser, era totalmente perfeito. Esse era o pensamento de Tomás de Aquino ao descrever a perfeição de Deus, e da sua criatura, como consistindo na posse, por ambos, do ser. 
                      Ocorre, todavia, devido à perfeição de Deus formulada pelo Cristianismo, que um ser perfeito não poderia criar coisas e seres imperfeitos; daí serem as criaturas, sob a ótica da Escolástica, forçosamente, perfeitas.
                    A contradição entre a formulação escolástica e a práxis é evidente. Todos passaram a percebê-la, de forma mais clara, após a divulgação, em 1858, da obra de Charles Darwin sobre a evolução das espécies animais. A Teoria da Evolução explica e apresenta abundantes evidências de que a diversidade biológica é o resultado de um processo de descendência com modificações, onde os organismos vivos se adaptam, gradualmente, através da seleção natural, e as espécies se ramificam, sucessivamente, a partir de formas ancestrais, como galhos em uma árvore. 
                        As igrejas cristãs logo se posicionaram contra esta teoria, pois contradizia e solapava as bases do criacionismo divino (formulado pela Bíblia, em Gênesis); no qual, a perfeição do Criador e das criaturas era a tônica.
                     Inúmeras outras contradições, surgidas com a noção de perfeição do Criador e das criaturas, se apresentaram ao longo da história do Cristianismo (e também do Judaísmo e do Islamismo). A própria vinda de messias e de profetas, enviados posteriormente, pelo Criador, deixaria evidente uma falha no Projeto Divino da Criação; já que, teria sido necessária a vinda destes messias e destes profetas para corrigir os rumos errados tomados pela humanidade.
                    O próprio dogma do Pecado Original, formulado por Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), em uma controvérsia com o monge Pelágio, da Bretanha, que se apoiou em passagens da Epístola de Paulo aos Romanos e aos Coríntios, além de uma passagem do Salmo 51, contradiz a ideia da perfeição das criaturas. Este dogma, segundo Jaques Le Goff, em sua obra “Uma História do Corpo na Idade Média”, teria contribuído muito para aumentar o poder de controle da Igreja de Roma sobre a vida sexual dos povos da Idade Média. 
                         Por outro lado, a morte de Jesus Cristo, na cruz, se justificaria como tendo ocorrido para salvar os seres humanos deste pecado ou vício de origem, que seria congênito e hereditário, contradizendo a perfeição da criação proporcionada por um ser divino perfeito.
                    Vejam, ademais, que, embora um mecanismo maravilhoso e quase perfeito, o corpo humano apresenta moléstias e enfermidades, de origem interna e externa, que o debilitam e destroem. Da mesma forma a alma (o espírito quando encarnado), que comanda o corpo e a mente humana, embora maravilhosa por suas virtudes, também apresenta vícios que a corrompem.
                        No que respeita ao Reino Vegetal, a linhagem que deu origem às plantas terrestres evoluiu do ambiente aquático. A conquista das terras secas, pelos vegetais, modificou profundamente aspectos geomorfológicos e geoquímicos do planeta, afetando, também, a evolução de todas as demais formas de vida, em uma contínua interação entre os três reinos da Natureza. A competição entre as próprias plantas, ao se intensificar, favoreceu àquelas de maior crescimento, possibilitando o surgimento de formas cada vez mais arborescentes e que originaram as primeiras florestas há cerca de trezentos e setenta milhões de anos. Assim, as espécies vegetais estão sempre em constante mutação e adaptação as condições ambientais, não sendo, evidentemente, perfeitas.
                     Relativamente ao Reino Mineral, percebe-se que este está sempre em constante movimentação e transformação, seja através dos ventos, da ação geotérmica, das marés, da luz e do calor solar, dos movimentos sísmicos, da ação da gravidade, da variação de temperatura, da precipitação pluvial, etc. Mesmo quanto às substancias químicas e ao nível atômico e subatômico, a transformação e a evolução tornam-se evidentes: substâncias sofrem transformações em que processos químicos fazem com que elas desapareçam ou ocorram reações em que aparecem novas substâncias; átomos se transformam em outros átomos diferentes, ao perderem elétrons, como, por exemplo, o caso do hidrogênio que se transforma em hélio; a corrosão do ferro que transforma seus átomos em íons, etc.
                              Através da Radioatividade (decaimento radioativo de núcleos instáveis), uma parte do núcleo de um átomo se desprende na forma de partícula alfa e novo elemento é formado, com massa atômica menor. É o caso, por exemplo, do urânio que se transforma em chumbo. 
                          Com respeito ao próprio Universo, constata-se que, embora os incontáveis corpos celestes girem todos em suas órbitas, muitas vezes, estrelas explodem e desaparecem; meteoros caem na superfície de planetas; explosões ocorrem na superfície do nosso sol; corpos celestes entram em rota de colisão e se destroem mutuamente, etc. Tudo isto comprova que a tão desejada perfeição não existe em nenhum lugar do Cosmos. 
                            Verifica-se, portanto, que nada no Universo é perfeito, no sentido do terceiro critério de Aristóteles, e que tudo se encontra em constante transformação, mutação e evolução (não tendo, ainda, atingido seu objetivo) independente dos dogmas religiosos em contrário. Como disse o físico e astrônomo italiano Galileu Galilei, no século XVII, após haver sido condenado à prisão em um tribunal eclesiástico da Inquisição e obrigado a se retratar, por divulgar e ensinar a Teoria Heliocêntrica e o movimento da Terra em torno do sol: - Eppur si muove (contudo, ela se move).
                           Assim, vê-se que nada na Natureza atende ao requisito três, mencionado no início e formulado por Aristóteles. A perfeição, mais em conformidade com a definição oferecida pela Ética, seria uma característica buscada pela própria Natureza, mas nunca encontrada. Talvez esta própria perfeição que pretendemos para o Criador não ocorra na realidade; principalmente, tendo em vista as imperfeições e o caráter evolutivo imprimido a todas as suas criações e criaturas. Um ser perfeito, evidentemente, não produziria coisas imperfeitas, tese que sempre defendeu o próprio cristianismo. Podemos imaginar e aceitar a imperfeição no Reino Animal; já que, os espíritos necessitariam evoluir, dialeticamente, para patamares mais elevados. Entretanto a imperfeição não tem sentido de existir no Reino Vegetal e no Mineral, que, conforme rezam as próprias religiões, são ausentes de espíritos.
                              O espírito em sua imaterialidade, afirmam as religiões monoteístas, sempre existiu e estaria em continua evolução. Mesmo tendo alcançado os graus mais elevados de iluminação, eu creio que os espíritos de luz (como eles são chamados), por serem imperfeitos, sempre terão algo a aprender e estágios novos de evolução para alcançar; já que, sendo o Criador único, na concepção destas religiões, nenhum espírito, por mais evoluído que fosse, poderia se igualar a eventual perfeição do seu Criador. 
                            Até para as religiões politeístas, onde existem vários Deuses, existe um status de maior ou menor grau de importância, isto é, uma ordem de precedência; tendo os Deuses habilidades individuais, necessidades, vontades e histórias distintas. Se existem esta precedência e estas distinções, que caracterizam cada um dos Deuses, os fatos indicam que nem mesmo estes seriam integralmente perfeitos, pois um deles seria mais importante que os demais ou teria criado os outros Deuses de menores status, como ocorria na Mitologia Grega e Romana. O próprio cristianismo, ao falar em pai e filho estabeleceu esta distinção hierárquica e, para não contradizer-se, Tertuliano (160-250 d.C) criou o denominado Espírito Santo, defendido por Atanásio (296-373 d.C), bispo de Alexandria e decretado por Constantino (272-337 d.C), Imperador Romano. O Espírito Santo uniria estes dois Deuses em um só; posto que, se tratava de uma religião monoteísta.
                             As religiões panteístas (aquelas para as quais Deus está presente em toda a Natureza) evidenciam, ainda mais, essa imperfeição divina. Como um Criador perfeito poderia estar presente em reinos imperfeitos que se transformam e evoluem a todos os momentos?
                                   Após tudo o que foi dito o leitor, mais comprometido com a racionalidade do que com o dogmatismo poderá exclamar, de si para consigo: 
- Se a perfeição não existe, logo, o Criador também não existe ou, caso exista, evidentemente, não parece ser uma Entidade perfeita ou tão poderosa como imaginamos!
- Por que uma Entidade que, filosoficamente, pode tudo, não poderia ter feito tudo de modo perfeito? Será que a Filosofia e a Metafísica, até agora, têm percorrido caminhos equivocados ao idealizarem um Criador perfeito?
- Será que o filósofo Voltaire deveria ter formulado apenas três das suas quatro hipóteses sobre a Natureza de Deus (O Criador quer e não pode, ou seja, é bom e não tem poder; ou pode e não quer, ou seja, tem poder e não é bom; ou não quer e não pode, ou seja, não é bom e não tem poder), descartado a quarta e última hipótese (Deus quer e pode, ou seja, é bom e tem poder) por não ser verdadeira e compatível com o Universo imperfeito da criação em que vivemos?
                                  Algumas outras possibilidades poderiam ainda ser exploradas, mas estou certo de que para alguns leitores elas poderão passar por delírios ou teorias conspiratórias. Todavia, sinto-me na obrigação de mencionar duas delas.
                                   A primeira é a de que poderíamos estar vivendo uma vida virtual ou estarmos em uma Matrix. Esta seria, assim, uma falsa realidade, na qual aquilo que vemos pode não ser, exatamente, da forma como vemos; já que, por vivermos em três dimensões, apenas, captamos aquilo que nossos sentidos percebem, deixando de perceber o que se encontra em outras dimensões e que poderia, eventualmente, apresentar-nos diferentes realidades para os fenômenos que observamos.
                                   Como não podemos sair desta Matrix, alguns autores afirmam que não devemos tentar nos afastar desta realidade em que estamos; mas aprender a viver nela, esquivando-nos das suas ilusões e olhando além da falsa realidade, para não sermos controlados e manipulados por seus idealizadores, quaisquer que sejam eles.
                            A segunda possibilidade é a de que sejamos frutos da criação (ou oriundos de modificação genética no DNA de seres inferiores, já existentes no planeta) processada por raças alienígenas, que aqui aportaram há milhares ou milhões de anos e que seriam considerados como aqueles Deuses vindos do céu, mencionados nas antigas religiões ainda hoje professadas.
                                   Esta possibilidade, hoje em dia, já é factível pela Ciência praticada na Terra. A técnica denominada Ectogênesis busca desenvolver seres humanos fora do ventre feminino. Trata-se de um útero artificial que reproduz o ambiente natural, onde o bebe é gestado em uma incubadeira em que está rodeado de líquido aminiótico sintético e controlado por uma placenta artificial que proporciona os nutrientes para que o novo ser cresça, além de eliminar os seus resíduos.
                                  Com o método da Ectogênesis o DNA poderia ser modificado antecipadamente, de forma a escolher-se as características desejadas para aquele novo ser, como a cor dos olhos, o tipo de cabelo, etc. No ano de 2074, segundo o cientista J.B.S. Haldane, cerca de setenta por cento dos nascimentos mundiais já seria feito desta forma. Assim, o milagre da criação deixará de ser divino e passará a ser humano. Se hoje a nossa Ciência já dispõe desta técnica, o que dizer de civilizações alienígenas bem mais adiantadas do que a nossa, que conseguem (e já conseguiam no passado) chegar até nós com as suas naves?

                                   Estas duas hipóteses não poderiam ser descartadas, na medida em que as nossas origens ainda não foram satisfatoriamente explicadas pela Ciência oficial, que deveria ser religiosa, política e ideologicamente isenta, mas que, na realidade, não o tem sido até os dias atuais.


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016


130. A Arte e a Ciência de passar despercebido


Jober Rocha*


                 É uma característica natural, da maior parte dos seres humanos, gostar de se destacar em alguma coisa, de ser notado e admirado pelos demais. Desde os tempos mais remotos, inúmeros personagens famosos, ao longo da História Humana (reis, imperadores, filósofos, inventores, escritores, médicos, guerreiros, sacerdotes, etc.), têm buscado sobressair-se sobre seus contemporâneos, deixando seus nomes indelevelmente escritos no Livro da Vida. 
                 Muitos tiveram os seus nomes imortalizados em razão de suas virtudes, outros em razão de seus vícios; mas o fato é que, tanto uns quanto os outros, destacaram-se em suas épocas, chamando a atenção daqueles que viviam neste mundo e despertando sobre eles a atenção dos que habitavam no mundo dos Deuses e das Divindades, fazendo com que alguns destes (com poder decisório sobre o trânsito das almas humanas), focassem seus espíritos e olhares divinos naquelas simples criaturas feitas de matéria.
             Conta-se que um centurião romano que, por covardia, fugia de uma batalha, ao ser repreendido pelo próprio imperador, César, sacou da espada e tentou matá-lo, para poder continuar fugindo; sendo morto pela guarda pessoal do imperador. Ao despertar a atenção para a sua pessoa, o centurião encontrou a morte. Talvez, se houvesse se entregado ao inimigo como prisioneiro ou se escondido em uma gruta, atrás de alguma pedra, teria sobrevivido alguns anos a mais.
                     Por outro lado, inúmeros são os episódios em que a longa vida desfrutada por milhares, se não por milhões, de indivíduos deveu-se, unicamente, ao fato de terem passado totalmente despercebidos no período de suas existências, sem nunca e em nada se destacarem (a não ser na Ciência e na Arte de camuflarem os seus corpos e as suas qualidades). Para isto, contribuiu muito a sabedoria que tais indivíduos foram capazes de desenvolver e acumular ao longo de suas vidas; mas, como nada deixaram por escrito sobre tema tão importante, tomo eu a iniciativa de fazê-lo para satisfação daqueles que se interessam em poder desfrutar de uma vida longa. 
                     Inicialmente, todo aquele que se destaca, chama a atenção dos semelhantes e provoca, de início, ciúmes e inveja daqueles que não possuem aquelas qualidades que fizeram com que ele se destacasse. 
                     Em segundo lugar, aqueles que se distinguem dos demais, por saberem que são melhores do que eles, em alguma coisa, se transformam em pessoas orgulhosas e passam a atrair, mais ainda, os ciúmes e a inveja dos seus contemporâneos; porém, agora, dois possíveis novos sentimentos entrariam em cena, quais sejam: os da raiva e da vingança. Sejamos sinceros e objetivos: reconheçamos que os seres humanos sentem raiva dos indivíduos orgulhosos e buscam deles se vingar, quer os leitores acreditem ou não nesta afirmação. Observem os seus ambientes de trabalho e contemplem os vizinhos que possuem no entorno da suas residências, para verem se tenho ou não razão?
                  Aqueles que, em sentido oposto, se distinguem por suas maldades e péssimas qualidades são, também, objeto de raiva e de vingança por parte de seus contemporâneos, evidentemente.
                    Isto tudo que foi dito já fora percebido, desde a mais remota antiguidade, pelos eremitas. Tanto é assim, que sempre procuraram o ermo das florestas e os cumes das altas montanhas geladas para edificarem suas covas, onde passariam o resto de suas vidas (que seria, certamente, bem longa), meditando, alternadamente, sobre assuntos supérfluos e importantes. Digo supérfluos e importantes, porque quem já tentou meditar sabe do que estou falando. Noventa e nove por cento dos pensamentos que nos assediam, durante uma seção de meditação, são sobre coisas supérfluas. Só a muito custo conseguimos expulsá-los e deixar fluir o um por cento das coisas importantes.
                  Mas, voltando ao assunto principal: ao despertarmos a atenção dos nossos contemporâneos sobre as qualidades ou defeitos que temos, nós atraímos, como mencionado, todos aqueles sentimentos já referidos; porém, ao chamarmos a atenção dos Deuses sobre as nossas pessoas, seja pelo excesso de virtudes ou de vícios, corremos o grande risco de sermos por eles chamados, logo em seguida, para elogios, no primeiro caso, ou para reprimendas, no segundo.
                        Assim, depois de muito meditar, cheguei a algumas conclusões sobre a Arte e a Ciência de desfrutar de uma vida longa; as quais, eu passo a relatar aos leitores que tiveram a cortesia e a amabilidade de chegarem até esta parte:

            1. Viaje com freqüência, pois quando o Criador se lembrar de você, terá dificuldades ou mesmo não conseguirá encontrá-lo em trânsito; tantas são as escadarias dos aeroportos e dos metrôs, os conveses dos navios, os pubs londrinos, os museus franceses, etc. etc. etc.
              2. Faça longas caminhadas pelas matas fechadas (usando roupas camufladas para dificultar sua localização); fique fora do seu domicilio a maior parte do tempo (já que este é um ponto de referência para pessoas mal intencionadas que queiram abreviar sua passagem pelo planeta, e para espíritos etéreos, estes a lhe buscarem por ordem do Criador pelas razões já expostas); use roupas que não despertem a atenção dos olhares humanos ou do Olho de Horus (aquele olho do Deus egípcio que tudo vê). Seja comedido em tudo o que fizer. Fale baixo. Não emita a sua opinião para estranhos; não busque discussões pelo simples prazer de vencê-las. Não se vanglorie de nada. Não queira amealhar riqueza, pois esta é uma das coisas que mais desperta a atenção, neste plano físico e no plano etéreo, sobre você.
           3. Não busque a glória efêmera de um destaque humilhante sobre os seus contemporâneos; glória esta que poderá abreviar-lhe os dias. Ao contrário, seja conhecido como aquele indivíduo irresponsável e que nada leva a sério. Os humanos escarnecerão de você, chamando-o de um ‘pobre coitado’, e os Deuses o deixarão em paz; pensando: - Este pobre de espírito ainda tem muito que aprender para evoluir. Deixemo-lo ficar mais um pouco, neste planeta de expiação e de aprendizado... 
           4. Passe a maior parte do tempo em alguma biblioteca pública, lendo ou escrevendo. Aproveite o longo tempo que irá desfrutar com este seu anonimato, para instruir-se e, quem sabe, não necessitar mais voltar a um planeta como este onde nada parece dar certo, onde todos são inimigos de todos, onde os viciosos parecem mais felizes e mais bem aquinhoados do que os virtuosos, onde as injustiças parecem ser a tônica e o mérito causa inveja e é malvisto.

                    Evidentemente, estas regras não valem para aqueles que acham ‘valer mais um gosto do que seis vinténs’ e que estão em busca de qualidade de vida e não de quantidade de dias vividos. A estes, recomendo-lhes que rasguem este texto ao terminar a sua leitura ou que o guardem no armário do banheiro; pois, nunca se sabe do dia de amanhã... 


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


129. Uma Noite Inesquecível**

Jober Rocha*


         Ninguém saberia dizer como aquela notícia, da vinda e do pouso de uma nave com extraterrestres, chegou à pequena cidade de São João Marcos em uma tarde ensolarada do mês de maio de 1935; mas, o fato é que ela se propagou como um rastilho de pólvora, entre os seus pacatos moradores urbanos e a gente humilde e trabalhadora do campo.
            A notícia surgiu, inicialmente, em uma conversa informal no Bar do Landi (imigrante de origem italiana, residente no local desde há muitos anos). Dali caminhou para a igreja, onde, naquele exato momento, se realizava uma missa pela alma do fazendeiro Juvêncio, falecido em queda do cavalo enquanto cavalgava bêbado, de volta para a sua fazenda. Da missa a notícia seguiu para o bordel local, conhecido como Casa da Dolores, onde o assunto foi motivo de especulações entre os frequentadores; bem como, de dúvidas por parte das moças que ali trabalhavam. Dentre estas dúvidas, a primeira e principal era saber se os extraterrestres frequentariam ou não aquele local mal afamado. A segunda, caso a primeira se confirmasse, era saber quais as suas preferências femininas. A terceira era imaginar em qual moeda pagariam as despesas e a cotação dela com relação a nossa própria moeda.
        Da Dolores a notícia seguiu célere para a Loja Maçônica da cidade, onde foi objeto de comentários, por parte do Mestre de Cerimônias, durante o Tempo de Estudos e, em razão de haver se tornado motivo de inúmeras discussões acirradas entre os aprendizes, companheiros e mestres, o Venerável viu-se obrigado a encerrar a sessão daquela noite de segunda-feira com um único e rápido golpe do malhete (os leitores maçons, evidentemente, entenderão melhor todo este processo).
          Como a maioria das pessoas mais influentes da cidade fazia parte da Maçonaria, a notícia logo estava em todas as casas; dali, se espalhando rapidamente para os cortiços e para os casebres da periferia.
           No dia seguinte apareceu uma nota no pequeno jornal local ‘ São João Marcos News’, que dizia: “Cabograma recebido dos Estados Unidos da América do Norte confirmou a iminente descida em São João Marcos, de uma nave tripulada por extraterrestres, originária de distante constelação. Segundo a agência de notícias americana, os interesses dos alienígenas são totalmente pacíficos e visam, unicamente, ao estreitamento dos laços de amizade com os habitantes de São João Marcos, povo ordeiro e trabalhador, cuja fama de boa gente já ultrapassou o nosso Sistema Solar e atingiu os mais distantes rincões do Universo”.
           O Conselho Municipal, imediatamente, se reuniu para traçar uma estratégia de como fazer para recepcionar tão distintas personalidades, viajantes estelares cheios de saber, conhecimento e experiência.
          A primeira medida foi selecionar a Comissão de Recepção, que seria constituída pelas famílias do prefeito, do juiz, do promotor, do delegado e pelo padre da igreja matriz. Alguns abastados fazendeiros se ofereceram para adquirir, por alto valor, alguma vaga ou desistência de última hora.
            A segunda medida foi elaborar um programa de atividades e de visitas ao município e seus arredores. A inauguração da nova creche, a visita à lagoa dos jacarés e uma ida ao mirante, faziam parte da programação.
                    A terceira foi de definir um local para o pouso e de mandar construir uma pequena pista e uma sede (onde as altas autoridades e os viajantes pudessem se confraternizar, beber da aguardente local, trocar presentes e saborear alguns quitutes preparados por Dona Cotinha, baiana e viúva do antigo médico da cidade). Os habitantes locais, no entanto, não contavam com o fato de aquela nota do jornal haver extrapolado as fronteiras do município e ter atingido outras cidades vizinhas.
              Pouco tempo depois, inúmeros veículos a motor, carroças puxadas por bois e burros, viajantes a pé e a cavalo, começaram a chegar à sede do município, lotando os dois pequenos hotéis e o galpão nos fundos da igreja matriz.
                 O prefeito já havia mandado fazer uma placa de bronze a ser colocada em local de destaque, com os seguintes dizeres: “Os extraterrestres, em reconhecimento a excelente administração do prefeito Zequinha na Prefeitura de São João Marcos, decidiram visitar o município no ano de 1935, durante o seu mandato, para colher subsídios sobre como bem administrar uma cidade, de modo a poderem levar novos conhecimentos de Administração Pública para a Galáxia e para o Sistema Solar de onde vieram”.
                 O padre, baseando-se na iniciativa do prefeito, também havia mandado fazer placa para colocar nas proximidades do altar-mor, nos seguintes termos: “No ano da graça de 1935, viajantes extraterrestres oriundos do espaço sideral, tendo tomado ciência das palavras proferidas pelo padre Josias no púlpito da Igreja Matriz de São João Marcos (quando este falava sobre a existência de um messias, na antiga cidade de Jerusalém, que pregava a existência de um Reino dos Céus), vieram diretamente daquele referido Reino dos Céus para confirmar ao ilustre povo deste nosso município, como a mais absoluta das verdades, tudo aquilo que, até então, havia sido dito pelo venerado padre Josias”.
                  A Associação dos Estudantes de São João Marcos, capitaneada por Dona Dorinha, diretora do grupo escolar local, iniciou a confecção de diversas faixas e cartazes de boas vindas a tão distintos visitantes. As faixas, dentre outras coisas, diziam: “Estudantes de São João Marcos saúdam ilustres visitantes extraterrestres e pedem o fim da discriminação planetária!”. “Queremos fazer intercâmbio cultural e estagiar no planeta de vocês!” “Pela gratuidade no transporte intergaláctico!” “Pelo fim do lixo espacial!”
                      Alguns dos bares da cidade lançaram novos pratos e diferentes drinques, apelando para a inusitada notícia, que atraía turistas até aquele distante município. Assim, anunciavam: “Filé à Extraterrestre (filé com arroz, fritas e um tempero secreto de origem extraterrestre)”; “Sopa de Poeira Espacial (grãos de poeira espacial, ervilhas e torradas produzidas pelo atrito na atmosfera terrestre); “Batida Estelar (cachaça, suco de meteoro e gotas de orvalho, batidos no vácuo).
                 Pelas ruas da cidade foram sendo instaladas diversas barraquinhas, cujos proprietários pareciam orientais e os produtos que vendiam assemelhavam-se àqueles originários da China. Havia naves espaciais que apitavam e acendiam luzes coloridas, foguetes que soltavam fumaça e disparavam raios luminosos, máscaras de seres extraterrestres, etc.
                    O Governador do Estado, cuja sede do governo ficava na Cidade de Niterói, adiantando-se ao prefeito do Município de São João Marcos, enviou uma equipe, daquela capital, para montar o sistema de som, o palanque e as arquibancadas, pois pretendia fazer um discurso de saudação aos visitantes e tentar obter recursos financeiros à fundo perdido, para algumas obras que marcariam com ‘chave de ouro’ o final do seu governo.
                 Na Cidade do Rio de Janeiro, Capital Federal, a pequena notícia do jornal ‘São João Marcos News’ também havia chegado, por intermédio de um assessor parlamentar que retornava das férias em casa de parentes naquele longínquo município. Logo, formou-se uma comitiva de deputados e senadores que, desejosos de comparecer ao evento, solicitaram passagens e diárias para uma semana, além de prepararem uma ‘Moção de Boas Vindas’ e de concederem, a todos os extraterrestres, a ‘Comenda do Mérito Parlamentar Interestelar Brasileiro’, criada especificamente para agraciar tão nobres visitantes. 
                  O Presidente da República, também alertado, só não iria ao histórico acontecimento em razão de compromissos internacionais inadiáveis, ademais de pane no Rolls Royce presidencial.
               Em poucos dias o município regurgitava de gente. Os alojamentos e acomodações eram insuficientes para tantas pessoas. Muitos dormiam nas calçadas, sob marquises. Alguns trouxeram barracas e as montavam próximo ao local onde seria efetuado o pouso da nave.
                  O discurso que o prefeito faria acabou vazando para a imprensa e, pelo que foi divulgado no jornal local, começava assim: “Caríssimos, idolatrados e magnânimos seres de outras galáxias. Nesta benfazeja ocasião em que pautado pelos mais nobres sentimentos de fidalguia, de fraternidade, de cordialidade e de admiração me dirijo a vossas excelências espaciais...”
                    Em um mutirão incessante, as ruas eram varridas, as paredes caiadas, as árvores podadas, o lixo recolhido. O delegado e alguns agentes faziam incursões na periferia, para deter os poucos e conhecidos ‘ladrões de galinha’ que viviam pelas aforas da cidade.
             Finalmente, chegou o grande dia, previsto não se sabe por quem, para a descida dos alienígenas. O pouso se daria por volta das vinte horas, no local demarcado. Enorme multidão aguardava, na hora aprazada, a chegada da nave. As principais agências espaciais, do mundo inteiro, embora desconfiadas de charlatanice, haviam enviado seus observadores e as moças da Casa da Dolores jamais tinham tido tantos clientes pagando em moedas fortes (dólares, euros, rublos, ienes e yuans).
                    Minutos antes das vinte horas, uma agitação percorreu a multidão. Alguém afirmara haver visto uma luz se movendo no negro céu. Alguns apontavam para o norte, outros para o sul. Fotógrafos e cinegrafistas preparavam suas câmeras e flashes. Infelizmente, tinha sido apenas um boato falso.
                Chegaram as vinte e uma, vinte e duas, vinte e três, vinte e quatro horas, e nada dos extraterrestres aparecerem. Começou a ventar e a esfriar e, por volta das duas da madrugada, caiu um forte aguaceiro, obrigando a maioria dos presentes a se dispersar. Muitos voltaram para suas casas ou para seus quartos nos hotéis. Os que estavam nas barracas, após consumirem diversas garrafas de cachaça, dormiam a sono solto. Alguns, mais religiosos, ajoelhados e molhados pela chuva, oravam, tremendo de frio.
                   Em pouco tempo, já não restava mais ninguém naquele local. Garrafas e latas vazias, sacos plásticos, jornais e revistas, caixotes e restos de comida atirados ao solo, atestavam que a raça humana ainda não estava preparada, culturalmente, para o contato com deuses oriundos do espaço e pertencentes à outra raça, talvez milhares de anos, mais evoluída que a nossa.
Ao longe eram ouvidas risadas e musica sendo tocada na Casa da Dolores, onde as moças eram insuficientes para atender a tantos clientes.
                    Os únicos que viram a grande nave iluminada, sobrevoando baixo o lugar do pouso, foram um cavalo que pastava e um gato, caminhando por sobre as telhas de um telhado em busca de uma gata. Tendo a nave, com quatro visitantes extraterrestres, feito duas passagens baixas, quase tocando o solo, e não encontrando ninguém no local, velozmente retornou para a imensidão do espaço sideral de onde viera...


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Conto premiado no Concurso Literário de Contos de São João Marcos - 2016