423. Um breve ensaio sobre a Profissão de Carrasco
Jober Rocha*
Ao longo da História, muito já se escreveu sobre os condenados à morte e sobre os encarcerados. O escritor Victor Hugo, no ano de 1829, publicou a obra ‘Le dernier jour d'un condamné’. Vários outros escritores publicaram obras sobre o dia a dia de um prisioneiro, como Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere), Dostoievski (Recordações da casa dos mortos), etc. Todavia, são raras ou inexistentes obras tratando da profissão de carrasco, o indivíduo responsável por executar uma sentença de morte.
O meu objetivo, neste breve ensaio, é discorrer sobre esta estranha profissão ao longo da história, sobre os principais carrascos que se tornaram conhecidos mundialmente e sobre as eventuais motivações ideológicas, religiosas e psicológicas que conduzem alguns indivíduos a buscar esta profissão.
O carrasco, também conhecido como algoz ou verdugo, é aquele indivíduo incumbido pelo Estado de executar, oficialmente, as sentenças capitais e recebem um salário, às vezes, bem elevado pelo trabalho que executam. Existem, ainda, os carrascos que trabalham por conta própria; isto é, como profissionais autônomos, executando, de forma mercenária, pessoas em troca de dinheiro e servindo a diversos senhores na execução de sentenças de morte oriundas das justiças particulares destes e os carrascos que o são sem o saberem, como os soldados na guerra, os policiais quando em confronto com criminosos e os assassinos, todos estes executando sentenças de morte ditadas por eles mesmos. Todos aqueles que matam alguém são os verdugos de suas vítimas. Uns o fazem por profissão, outros por ideologia, outros por religião, outros ainda por distúrbios psicológicos, outros por prazer e outros como uma simples profissão, como qualquer outra.
Dentre os carrascos que deixaram seu nome e sua fama gravados na História, os principais foram:
. Hajj Abd Al-Nabi, que realizou mais de 800 execuções;
. Lady Betty, uma irlandesa que trabalhou mais de 30 anos nesta profissão;
. Albert Pierrepoint, inglês que matou pelo menos 400 pessoas em uma carreira que começou em 1932 e durou mais de duas décadas;
. Charles-Henri Sanson, francês que chegou a executar três mil vítimas durante o reinado do rei Luís XVI.
. Antonina Makarova, russa que chegou a executar cerca de 1.500 alemães nazistas usando uma metralhadora, durante a Segunda Guerra Mundial;
. Franz Schmidt, alemão que foi o executor oficial de Nuremberg de 1578 a 1618. Chegou a executar quase 400 pessoas;
. Souflikar, otomano que no século 17 realizou mais de cinco mil execuções.
Nesta relação não estão incluídos os carrascos que executaram pessoas por motivos religiosos, os serial killers e os assassinos por dinheiro (mercenários).
Relativamente às motivações que conduzem alguém a adotar tal profissão, destaco em primeiro lugar a de ordem religiosa, em seguida a ideológica, em terceiro a psicológica e em quarto a mercenária, com certeza a única que pode causar futuramente arrependimento e sentimento de culpa pelos atos praticados, já que nas motivações anteriores os carrascos ou estão convencidos de que operam do lado do bem ou sofrem de distúrbios psicológicos que os impedem de avaliar os atos que cometeram.
É de todos os leitores conhecido o episódio da Inquisição. A Inquisição, ou Santa Inquisição foi um grupo de instituições dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana cujo objetivo era combater a heresia, a blasfémia, a bruxaria e os costumes considerados desviantes. No Concílio de Verona, em 1184, foi criado o Tribunal da Inquisição, sendo que a instituição da Inquisição persistiu até o início do século XIX.
A chamada inquisição medieval durou do século XIII ao final do XIV e a feroz Inquisição moderna, concentrada em Portugal e Espanha, durou do século XV ao XIX.
A pena de morte foi empregada não somente na Inquisição, mas praticamente em todos os outros sistemas judiciários da Europa.
Os historiadores divergem quanto às estatísticas de morte durante a inquisição, mas alguns consideram que os inquisidores portugueses fizeram 40 mil vítimas, das quais 2 mil foram mortas na fogueira. Na Espanha, até a extinção do Santo Ofício, em 1834, estima-se que quase 300 mil pessoas tenham sido condenadas e trinta mil executadas. Na Alemanha, durante a inquisição, aproximadamente 25 mil pessoas foram mortas.
Isto, sem falar nas execuções por motivos religiosos, perpetradas entre católicos e protestantes ou pelos islâmicos, ao longo da História.
Estou convencido que os verdugos que operaram durante a inquisição estavam certos de que suas vítimas eram bruxos e feiticeiras que mantinham contato com demônios, visando destruir as obras da igreja. Por esta razão faziam o seu trabalho com convicção de que trabalhavam do lado certo; isto é, estavam do lado do bem. Em razão disto não tinham piedade pelas vítimas, nem remorsos sobre os atos cruéis que praticavam, ficando em paz com suas consciências não importa a quantidade de vitimas que tenham sacrificado. O mesmo ocorre com os muçulmanos quando sacrificam os hereges; isto é, aqueles que não adotam a religião islâmica.
Relativamente à motivação ideológica, podemos constatar as ações praticadas pelos comunistas para a implantação do comunismo na Rússia em 1917.
Para conseguirem implantar o Comunismo na Rússia (primeiro país onde esta experiência foi tentada), apenas no período de 1937-38, três milhões de pessoas foram fuziladas. Oito milhões estiveram presos em campos de trabalhos forçados. Cerca de vinte milhões de pessoas tiveram suas existências devastadas em nome dos “mais belos ideais da humanidade”. Na Revolução Cubana, de ideologia comunista, calcula-se em cerca de 85.675, o número de vítimas entre assassinados, desaparecidos, feridos e fugitivos para o exterior. Adicionalmente, cerca de dezesseis mil mortes, ocorreram em combates durante a revolução. Ao final, a ideologia marxista e a forma de governo comunista acabaram ruindo na URSS, após a Glasnost e a Perestroika, ficando restrita à Rússia, Cuba e alguns países africanos.
No referente à implantação do Nazismo, na Alemanha, informações disponíveis indicam a morte, por assassinato, desnutrição, trabalhos forçados e doenças, de cerca de seis milhões de judeus, dois milhões de poloneses, um milhão de ciganos, quatro milhões de prisioneiros soviéticos, duzentos mil deficientes físicos e mentais, cem mil maçons e cinco mil testemunha de Jeová. Note-se que estes dados são estimativas, pois os valores reais podem chegar ao dobro. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Nazismo deixou de existir como forma de governo no mundo.
Com relação ao Capitalismo, Gilles Perrault, em seu “O Livro Negro do Capitalismo”, estima em 58 milhões, o número de mortos na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais; além de mortes nas várias guerras coloniais, repressões, conflitos étnicos e vitimas da fome e da desnutrição, chegando a uma cifra estimada da ordem de cem milhões de mortes atribuídas ao Capitalismo e a sua implantação no mundo, durante o século XX. O Capitalismo tem sobrevivido em meio a crises cíclicas, tem consumido o meio ambiente de uma forma sem precedentes na história da humanidade, tem proporcionado inúmeras guerras motivadas por disputa de matérias primas e de mercados consumidores, tem acumulado déficits fiscais na maior parte dos países e gerado uma legião de pobres e miseráveis nos países periféricos do Terceiro Mundo.
Relativamente ao Fascismo, após 1922 diversos países foram influenciados pela sua ideologia: Itália, Hungria, Suíça, Bulgária, Áustria, Albânia, Brasil, África do Sul, Espanha, Portugal, Romênia, Finlândia, Bélgica, Grã Bretanha, Japão, China, Iraque e Argentina. Embora não disponhamos do número total de mortes causadas pelo Fascismo em todo o mundo, apenas na Campanha da Abissínia (atual Eritréia), meio milhão de africanos morreram, além de cinco mil italianos. Formalmente, o Fascismo como forma de governo não mais existe; existindo alguns governos Neo-Fascistas, que se escondem por detrás de uma capa democrática.
No relativo ao Anarquismo, movimento inspirado pelo russo Mikhail Bakunin, em meados do século XIX, o mesmo influenciou diversos acontecimentos políticos, como as Comunas de Lyon e de Paris, a Insurreição Anarquista de 1918, no Rio de Janeiro, e a Revolução Espanhola de 1936. Não saberíamos dizer quantos morreram ou foram sacrificados na tentativa vã de sua implantação, que não chegou a concretizar-se.
Movimentos de cunho Nacionalista têm se verificado, ao longo da história, em diversos países do mundo. Na Europa, destacam-se o Pan-Eslavismo, o Pan-Germanismo e o Revanchismo Francês. Na Irlanda, o Movimento Nacionalista Irlandês, colocou em lados opostos católicos e protestantes (dominados e dominadores). Desde 1846, milhares de vítimas têm sido contabilizadas, nesta disputa pelo poder naquele país. Os movimentos nacionalistas antiocidentais, surgidos no oriente Médio, na África, na Ásia Meridional (incluindo Índia, Paquistão e Sudeste Asiático), têm suas origens nos grupos fundamentalistas existentes no século XIX. No século XX, os Estados Unidos da América e o Reino Unido, no âmbito da Guerra Fria, apoiaram a ascensão destes grupos no Oriente Médio e na Ásia Meridional, como forma de oposição à expansão soviética na região. Após a ascensão destes movimentos, voltaram-se eles contra os países ocidentais. Ainda durante o período da Guerra Fria, na América Latina, surgiram diversos Movimentos de Libertação Nacional que, embora de cunho nacionalista, tinham por base a ideologia comunista.
O Socialismo existe em alguns poucos países desenvolvidos da Europa que, no entanto, ainda fazem uso do sistema capitalista de produção. Nestes países, a renda é bem distribuída, os serviços sociais e de infraestrutura funcionam bem; principalmente, por serem países ricos, com poucas populações e com elevados níveis educacionais, características estas encontradas em apenas poucos países ao redor do mundo.
Se levarmos em consideração os holocaustos indígenas (durante a colonização do Continente Americano); a Revolta Circasiana, de 1860 (Cáucaso e Chechênia); o Massacre dos Hererós e dos Namaquas (1904/1907), na África; o holocausto Ucraniano (1932/1933), pelos soviéticos; o holocausto dos Curdos (1937/1938), pela Turquia; o massacre dos Armênios (1915/1917), pela Turquia; o massacre dos Sérvios, pelos Alemães, durante a Segunda Guerra Mundial; o genocídio dos Bengalis (1971), pelo Paquistão; o massacre do Timor - Leste (1975/1999), pela Indonésia; o genocídio da Bósnia (1992/1995), pelas forças da Sérvia; o massacre dos Tutsis (1994), em Ruanda; o massacre dos Tibetanos (a partir de 1950), pela China; o genocídio Cambojano (1975/1979), pelo Khmer Vermelho; a Guerra do Vietnam; a Guerra do Afeganistão; a Guerra do Golfo Pérsico e a Guerra da Palestina; além de inúmeras outras não consideradas, veremos que milhões de seres humanos têm perdido a vida em nome de ideologias e de suas implantações em todo o mundo. Os carrascos que matam por ideologia, igual àqueles que matam por religião, não sentem remorsos nem imaginam ter praticado um crime; mas, apenas, um justiçamento necessário de um inimigo ideológico que faria o mesmo com eles.
No que respeita ao lado psicológico da questão, todos nós conhecemos a existência dos chamados ‘serial killers’, os assassinos em série psicóticos, sádicos e bárbaros.
No artigo ‘O perfil psicológico dos assassinos em série e a investigação criminal’ encontramos: “A maioria das pessoas tende a imaginar o serial killer como uma pessoa louca ou doente mental, o que se verifica não ser verdade na maioria dos casos. Há, no entanto, consenso de que os assassinos seriais possuem ligações íntimas com a psicopatia e a psicose, que são desvios mentais distintos. A psicose é uma doença mental que provoca uma alteração na noção da realidade, onde um mundo próprio se forma na mente do psicótico, ou seja, ele vive num delírio e sofre alucinações, ouvindo vozes e tendo visões bizarras. As formas mais conhecidas de psicose são a esquizofrenia e a paranoia. Apenas uma reduzida parcela dos assassinos em série se enquadra no lado dos psicóticos, o que derruba a crença popular de que todo serial killer é louco. Por outro lado, a psicopatia afeta a mente do assassino de forma diversa. Não cria nenhum tipo de ilusão na mente, ou seja, o indivíduo vê claramente a realidade e sabe que é proibido matar, porém suas perturbações mentais os fazem ser frios e sem empatia. Basicamente o serial killer psicopata vive uma vida dupla, mantendo uma aparência voltada para a sociedade, muitas vezes sendo uma pessoa gentil, racional e que interage com o meio social, porém, sua verdadeira identidade é mostrada somente para suas vítimas: um ser dissimulado e incapaz de sentir pena e de obter satisfação com tortura, estupro e assassinato”.
Vigora, pois, um instinto assassino nestas pessoas, que matam sem sentir prazer em matar, mas, somente, por uma compulsão interna incontrolável.
Existem, ainda, aqueles indivíduos que sentem prazer em matar; talvez em razão da descarga de adrenalina que se produz antes e durante o ato e do sentimento de poder que experimentam na ocasião. É o caso de muitos policiais em seus enfrentamentos com criminosos, de muitos soldados em operações de guerra, de criminosos durante suas ações, etc.
Ademais, pessoas também são levadas a cometer abusos por não saberem dizer não a uma ordem recebida ou por não terem coragem de contrariar um superior hierárquico que temem.
Uma experiência científica desenvolvida pelo psicólogo Stanley Milgram, relativamente à execução de tortura e a morte do torturado, tinha como objetivo responder à questão de como é que os participantes observados tendem a obedecer às autoridades, mesmo que as suas ordens contradigam o bom-senso individual. A experiência pretendia inicialmente explicar os crimes bárbaros do tempo do Nazismo. Em 1964, Milgram recebeu por este trabalho o prémio anual em psicologia social, atribuído pela American Association for the Advancement of Science. Os resultados da experiência foram apresentados no artigo Behavioral Study of Obedience no Journal of Abnormal and Social Psychology (Vol. 67, 1963 Pág. 371-378) e, posteriormente, no seu livro Obedience to Authority: An Experimental View 1974.
Milgram resume o seu experimento da seguinte maneira:
“Os aspectos jurídicos e filosóficos da obediência têm enorme significado, mas dizem muito pouco sobre como as pessoas realmente se comportam numa situação concreta e particular. Eu projetei um experimento simples em Yale, para testar quanta dor um cidadão comum estaria disposto a infligir a outra pessoa somente por um simples cientista ter dado a ordem. Foi imposta autoridade total à cobaia [ao participante] para testar as suas crenças morais de que não deveria prejudicar os outros, e, com os gritos de dor da vítima ainda zumbindo nas orelhas das cobaias [dos participantes], a autoridade falou mais alto na maior parte das vezes. A extrema disposição para seguir cegamente o comando de uma autoridade mostrada por adultos foi o resultado principal do experimento, e que ainda necessita de explicação”.
O último aspecto da questão, o do verdugo mercenário, trata daqueles que matam por dinheiro, como se a sua fosse uma profissão como qualquer outra. A principal característica deste carrasco é que não se interessa em saber o crime que o condenado cometeu, ficando alheio aos pedidos de clemência da vítima. Apenas exerce o seu trabalho como forma de se manter e a sua família, conseguindo dormir tranquilamente à noite. Sua própria esposa (se a tem), quase sempre não sabe a profissão do marido, que viaja com frequência executando a pena capital em várias localidades.
Exerce sua profissão sem qualquer problema, até que o envelhecimento e a maturidade façam despertar sua consciência para os atos que praticou. A partir de então passa a se constituir em uma pessoa amargurada e corroída pelo remorso.
Eu, certa feita, presenciei uma entrevista com um ‘Sniper’ norte americano responsável pela morte de centenas de Vietcongs durante a guerra do Vietnam. A entrevista foi realizada nos USA, anos depois de seu retorno do teatro de guerra.
O ‘Mariner’ declarou que não conseguia conciliar o sono à noite. Em sua mente via sempre as centenas de cabeças que explodiu com seu fuzil de franco atirador. Tinha plena convicção de que, após a sua morte, responderia, junto ao Criador, por aqueles atos que havia cometido. Tinha, naquela ocasião, que tomar tranquilizantes e remédios para poder dormir, somente, algumas horas por dia.
Embora se tratasse de um soldado voluntário, imagino que não estivesse plenamente convencido de que lutava do lado do bem, razão do seu tardio remorso.
_*/ Economista, MS e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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