304. A Concorrência Pública
Jober Rocha*
Durante o início da minha carreira profissional, tive a oportunidade de estagiar em uma repartição pública na Capital. Naquele local, tendo entrado como aprendiz, passei logo a categoria de mestre, tantas foram as oportunidades que tive de conhecer a natureza humana e suas idiossincrasias.
Aquele simples estágio acabou revelando-se, para mim, mais do que um mestrado ou um doutorado, tantas foram as coisas que aprendi trabalhando junto com empregados comuns, muitos deles subalternos e alguns poucos chefes. Cheguei à conclusão, ao final do estágio de alguns meses, de que na vida pública nada é o que parece. Sob a capa da honestidade e da moralidade, em muitas repartições, praticam-se, sorrindo, as maiores venalidades e dilapidações do patrimônio público.
Quem participa dos esquemas montados, de tudo sabe e recebe sempre a sua parte ou quinhão, conforme previamente combinado. Quem não participa dos referidos esquemas, evidentemente, nada percebe daquilo que se desenrola a sua volta. A minha repartição funcionava como um verdadeiro templo religioso, onde, em meio a exaltação da fé, da esperança, da caridade e das demais virtudes, de um modo geral; também operava, secretamente, uma organização esotérica maligna dedicada aos vícios e às maldades humanas.
Digo maldades por que, embora ninguém praticasse um ato considerado como tal, diretamente contra algum semelhante, indiretamente os efeitos daquelas ações que ali eram maquinadas, gestadas e concluídas prejudicavam milhares, senão milhões, de seres humanos, em virtude dos valores superfaturados e da baixa qualidade dos produtos, serviços e obras, adquiridos através de concorrências dirigidas, cujos vencedores já eram conhecidos antecipadamente.
O custo daquelas obras, mercadorias e serviços licitados, como mais tarde vim a saber, dariam para adquirir, no mínimo o dobro do que estava sendo comprado. A péssima qualidade dos materiais empregados, fazia com que tudo se deteriorasse rapidamente, tendo que ser realizada, em seguida, uma nova concorrência. Muitas vezes, adquiriam-se itens em quantidades inimagináveis, que durariam mais de cem anos para serem totalmente consumidos naquela repartição.
Inicialmente, por sorte minha que sempre fui muito curioso e gostava de aprender de tudo, fui lotado logo no setor de concorrências. Eu, que era um jovem totalmente inocente, despolitizado, de família humilde e religiosa, que sempre acreditara nos valores espirituais, nos bons sentimentos e princípios, na nobreza de caracteres, me vi, repentinamente, jogado em um covil de feras onde todas possuíam dentes afiados e olhar feroz. Conviviam bem entre elas próprias; a menos que alguma, com mais fome do que as demais, avançasse no pedaço da carcaça do animal abatido pertencente a alguma outra. Aí, então, o ‘pau quebrava’, sendo preciso a intervenção dos outros envolvidos para conter os ânimos. Os territórios e as porções eram sagrados entre aqueles abutres.
Foi naquele setor que pude conhecer com maior intimidade os nossos fornecedores. Faziam todos eles parte de uma família numerosa, cujo sobrenome era Mutreta, composta por pai e oito filhos, cada qual com sua firma individual e todas localizadas no mesmo endereço, um velho galpão em um subúrbio distante.
Durante meses, eu, como simples aprendiz, apenas, observava os procedimentos internos, tomando notas mentais e sem interferir em nada. Procurava captar as conversas em voz baixa, quase sussurradas, entre vários colegas. Na hora do almoço, por vezes, algum deles deixava escapar alguma frase comprometedora que, juntando-a com outra frase dita mais tarde por outro colega, permitia que eu me inteirasse de algo que já suspeitava, mas de que não tinha plena certeza.
Resolvi, finalmente, como um agente infiltrado em um ambiente hostil, oferecer-me a um amigo mais chegado para, eventualmente, participar de qualquer atividade extra ali desenvolvida, mesmo que fosse à margem da lei, pois, argumentei, estava noivo e precisava de dinheiro para adquirir o enxoval.
Através deste amigo, fui apresentado a um outro que me apresentou a outro. Este último disse que iria me colocar no grupo de análise das concorrências em andamento, de modo a ser mais um empregado a referendar os resultados. Não falou em dinheiro, mas ressaltou que, se eu trabalhasse bem, só teria a ganhar fazendo parte daquele seleto grupo.
A partir de então, cada vez que o meu chefe anunciava uma concorrência para aquisição de determinada mercadoria ou material, os irmãos Mutreta concorriam com o preço mais baixo e com o preço mais alto. Se algum concorrente, estranho à família, oferecesse um preço intermediário, o irmão com o preço mais baixo ganhava. Se nenhum concorrente estranho aparecesse, o irmão com preço mais baixo desistia e o ganhador era o irmão com o preço mais alto. Já forneciam para aquela repartição há muitos anos. O edital anunciando as concorrências eram afixados atrás da porta da sala do chefe, três dias antes da data da mesma, de modo a que apenas a família Mutreta, que vivia naquele gabinete do chefe, sabia da realização da mesma.
Meu chefe, que frequentava assiduamente a casa deles, recebia inúmeras cestas com alimentos e bebidas, em ocasiões festivas tais como seu aniversário, natal, carnaval, finados, etc.
Notando eu a baixa qualidade das mercadorias e dos materiais que forneciam para a repartição; bem como, o alto preço unitário daqueles itens, face aos preços de mercado, iniciei por criar um banco de dados com os preços de todos aqueles bens, informações estas que eu coletava mensalmente junto aos fabricantes.
Por outro lado, consultando a legislação sobre concorrências, descobri a existência de normas que impediam a participação de empresas localizadas no mesmo domicilio e pertencentes a uma mesma família.
Na primeira concorrência realizada após a minha chegada, na hora da abertura das propostas, afirmei, com base nas normas por mim coligidas, que as empresas da família Mutreta não poderiam participar por serem da mesma família e estarem localizados no mesmo endereço.
Após a enorme confusão que se seguiu, fui voto vencido, pois, naquele dia, meu chefe e vários dos seus assessores fizeram parte da comissão de licitação e a única voz discordante foi a minha. Para todos os demais as normas em vigor estavam sendo respeitadas.
Ao ser posto para fora da sala aos empurrões, ainda consegui argumentar que o preço apresentado pelo irmão vencedor, estava quinhentos por cento acima do preço de mercado; porém, meu chefe, que, imagino, não entendia daqueles aspectos legais e econômicos, deixou-se, mais uma vez, enganar, ordenando que a sala das licitações fosse trancada a chave e ficando sozinho, junto com os irmãos concorrentes, incomunicável pelo resto do expediente do dia.
Como era uma sexta-feira fui direto para casa estudar toda a legislação referente a concorrências e processos licitatórios, buscando uma brecha para anular aquela concorrência, que me parecia totalmente fraudulenta.
Tendo, finalmente, descoberto um caminho legal bastante promissor, ao chegar cedo na segunda-feira para comunicar o fato ao chefe, não encontrei mais a minha mesa na sala da repartição. Fui informado, por um continuo, que a mesma havia descido, na própria sexta-feira anterior, para o oitavo subsolo onde funcionava a gráfica.
No lugar onde antes ficava a minha mesa encontrei caído ao chão um bilhete, escrito a mão em uma pequena folha de caderno. Tratava-se de um soneto (ou trova) com apenas uma estrofe de quatro versos ou linhas, que guardei, até hoje, de memória. O soneto (ou trova) dizia:
Todo aquele curioso intrometido
Que se envolve onde não é chamado,
Terá seu corpo para sempre desaparecido
Ou em alguma cova será encontrado...
Sempre fui um grande admirador de poesias, tendo, até mesmo, me arriscado a enveredar em alguns concursos literários com alguns poemas de minha autoria. Aquele soneto (ou trova), entretanto, falou-me logo ao coração. Ademais de apreciar a rima e a métrica do mesmo, percebi que havia sido escrito exclusivamente para mim, por algum poeta anônimo da seção, tentando me alertar sobre algo lúgubre e tenebroso com respeito ao meu futuro naquela repartição pública.
Resolvi, pois, por precaução, ir trabalhar na gráfica, no oitavo subsolo do edifício.
O tanto que aprendi naquele novo local, para os leitores que se interessarem pelo assunto, ficará para ser narrado em próximos textos, como capítulos de uma apostila a serem distribuídos em um curso de pós-graduação em malandragem...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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