quarta-feira, 27 de maio de 2020

370. Às portas do paraíso: entre o céu e  o inferno


Jober Rocha*



                                       O livro “As Portas da Percepção", do escritor Aldoux Huxley, publicado em 1954, descreve as experiências pessoais do autor ao ingerir peyote (um pequeno cacto utilizado pelos indígenas do México em eventos cerimoniais, que possui entre seus agentes ativos a mescalina, elemento considerado alucinógeno). Esta experiência proporcionou ao autor uma "visão sacramental da realidade". Pouco depois de lançado, em edições posteriores, o livro foi complementado por um ensaio de 1956 denominado "Céu e Inferno", que acabou se transformando em uma conclusão ao livro.
                                                          Em tempos de quarentena, tendo almoçado uma carne moída com polenta e tomado uma dose de cachaça de marca desconhecida, após o almoço passei por uma experiência, talvez, similar aquela do Huxley, quando consumiu peyote.
                                                       Em breve me vi em um estado alterado de percepção e de consciência em que julguei fazer parte da alta casta que compõe o estamento do Estado Brasileiro, nos três poderes da república. Vi-me, na ocasião, as portas do paraíso terrestre, vivendo uma situação, no mínimo, esdrúxula; quase sempre conflitante e contraditória: eu vivia dentro do inferno; porém, era agraciado com as benesses divinas., como se no céu estivesse.
                                                        Eu e meus companheiros éramos como agentes do capeta infiltrados no céu. Nós maquinávamos maldades e, em troca, recebíamos bênçãos, traduzidas estas nas chamadas mordomias sem fim, que acompanham e fazem parte do dia a dia de qualquer autoridade de país subdesenvolvido social e mentalmente como o nosso.  
                                                 A sensação que se apossou de mim, na ocasião, foi a de que dispunha de um poder quase ilimitado e de uma força descomunal. Eu podia fazer quase tudo aquilo que imaginava e que queria.
                                           Tinha em minhas mãos um cartão corporativo praticamente sem limites de crédito. Possuía foro privilegiado; residência funcional em uma bela casa no Lago Sul da Capital Federal, com carro blindado, motorista, cozinheira, mordomo e segurança particular. 
                                                  Ia me esquecendo de mencionar o plano de saúde, válido para os melhores médicos e hospitais no país e no exterior. Alguns outros chamados penduricalhos, que engrossavam os meus benefícios de autoridade constituída, nem valem a pena serem mencionados; como, por exemplo, os auxílios creche, auxílios moradia, auxílios combustível, diárias, passagens aéreas, auxílios faculdade, etc.

                                                     Devo confessar, a rigor, que, da mesma forma como ocorria com a maior parte deste tão falado estamento, eu também era oriundo das classes econômicas menos favorecidas. Cheguei até a alta posição onde cheguei graças às amizades que fiz durante o meu curso na faculdade ou devido ao empurrão que recebi por parte do partido político a que me filiei logo depois de formado.
                                                           Jamais poderia imaginar que eu, alguém cheio de vícios e imperfeições, vindo de uma classe social inferior, algum dia chegaria às portas do paraíso, como de fato cheguei.
O padrão de vida que desfruto atualmente, sem ter feito quase nenhum esforço para tanto, a não ser participar de algumas reuniões políticas cujos assuntos tratados me sinto impedido de mencionar por ter jurado jamais falar sobre os mesmos com pessoas estranhas, é comparável aos de grandes empresários nacionais e internacionais.
                                                     Estes, reconheço, trabalharam muitíssimo mais do que eu para poder ter o padrão de vida que possuem ou, então, herdaram de suas famílias a fortuna e os bens de que hoje dispõem. Todavia, minhas responsabilidades são infinitamente menores do que as deles.
                                           Em primeiro lugar, não possuo centenas ou milhares de empregados sob minha dependência; não necessito planejar hoje os meus ganhos de amanhã; ademais, não preciso passar pelo constrangimento de ter de subornar autoridades para obter aquilo que desejo, quando muito sou eu mesmo o subornado…
                                             Não mencionarei integralmente os jantares a que compareço nas casas dos meus pares, que também sou obrigado a retribuir, para não despertar a ira daqueles infelizes que me leem: menus elaborados por famosos mestres da culinária francesa, vinhos das melhores regiões europeias e de safras famosas, queijos e 'desserts' importados, uísques só acima de vinte e um anos, Porto e licores de afamadas marcas.
                                           Comparo a vida das autoridades na capital federal àquelas de quaisquer cortes europeias durante a ‘belle époque’. A única diferença é que por aqui quase ninguém fala o francês, coisa comum nas cortes europeias daquela época.
                                                Mas, voltando as situações conflituosas do dia a dia de uma autoridade, por vezes, minha consciência se pronunciava. Durante alguma maquinação para ganhar dinheiro de forma fácil, como tantas existentes no meio em que transitava, ao discutir com companheiros sobre nossas estratégias futuras, sentia que lá de dentro do meu ser, do fundo das minhas entranhas, uma pequena voz se levantava. No início baixinha, meio rouca. Depois mais forte, estridente. A voz dizia, quase sempre: - Não faça isso, você vai prejudicar milhares, senão milhões de pessoas!
                                                         Nessas ocasiões eu engolia em seco, abria minha caixa de charutos cubanos e acendia um deles. Dava uma boa baforada e contemplava pela janela envidraçada do gabinete as largas avenidas do Plano Piloto e, ao longe, as águas do Lago Paranoá. Chamava a secretária e pedia que confirmasse meu voo para Genebra, pois queria abrir outra conta para o novo negócio que vislumbrava. Tinha por regra não misturar um negócio com o outro, nem as suas respectivas comissões em uma única conta. Louvava-me nas palavras de alguém, que ouvira tempos atrás: cada caso é um caso!
                                                        A voz, por vezes, se calava logo; mas, em algumas situações perdurava. Nestes casos eu parava o que estava fazendo, chamava o motorista e pedia que me levasse ao clube. Lá, tomava um banho de piscina, fazia uma sauna, conversava com amigos e, quando dava por mim, a voz já havia sumido.
                                                               Dali seguia direto para casa, onde minha querida mulherzinha, que conhecera uma semana antes, me esperava toda perfumada.
                                             Alguns leitores, certamente, a esta altura já estarão pensando mal de mim. Em minha defesa, após muita meditação filosófica sobre o assunto, tenho alguns bons e fortes argumentos que muito me tranquilizaram em meus deveres e responsabilidades de autoridade: 
                                                           1. se não for eu será outro, que talvez faça pior do que eu!
                                                           2. o que os olhos dos contribuintes não veem, seus corações não sentem!
                                                      3. Em todo ato de maldade, sempre existirá alguma bondade latente ainda não percebida e vice-versa!

                                                                    Céu e inferno nada mais são, segundo penso, de acordo com a Lei da Correspondência do Caibalion, de Hermes Trimegisto, a mesma coisa. A mencionada lei diz que:  "O que está em cima é como o que está embaixo. O que está dentro é como o que está fora”. Eu, sabiamente, por extensão e por similaridade, acrescentei que aquilo que está no   céu é como aquilo que está no inferno. Com isto, minha consciência se tranquilizou, pois a contradição que havia em minha mente, com respeito a fazer maldades e ser bem remunerado por isso, desapareceu e passei a dormir bem todas as noites sem a necessidade do comprimido de Rivotril.

                                               Essa é, pois, para aqueles que desconheciam, a vida de uma autoridade federal, estadual e municipal nesta terra tão bem descrita e elogiada pelo poeta Olavo Bilac, quando disse em versos: - “Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! Não verás nenhum país como este! (...) “Boa terra, jamais negou a quem trabalha o pão que mata a fome, o teto que agasalha.”

                                                          Voltando, agora, ao início do presente texto, a pouco e pouco me vi saindo do transe em que entrara  e que aqui reproduzi, por ter tomado aquela cachacinha sem marca e comido a carne moída com polenta, durante a quarentena estabelecida pelas autoridades, notadamente as estaduais e municipais. 
                                                           Pelo esdruxulo e inusitado deste acontecimento, só posso atribui-lo a alguma interação alimentar entre as substâncias que ingeri, provocando-me este estado estupefaciente em que, certamente, imaginei coisas que não existiam na realidade.
                                                         Da minha parte, não tenho nada a reclamar contra as autoridades, sejam quais forem, pois sei que elas estão trabalhando arduamente em seus gabinetes, na capital federal e nas demais capitais e municípios de todo o país, zelando pela nossa segurança, pelo nosso conforto e pelo nosso progresso...


_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

369. Uma fábula tropical**


Jober Rocha*




                                   No tempo em que os animais falavam, em um lugar nos trópicos cujo nome não desejo mencionar, os inúmeros animais que ali viviam em uma grande floresta, muito invejada por animais de outros países, resolveram demonstrar seus descontentamentos com os desmandos de certos animais importantes, com a violência que corria solta em todos os cantos da floresta e com o roubo de frutas e sementes praticado pelos ratos, indo em conjunto reclamar com o leão, o rei dos animais.
                                               Afinal, eles o haviam escolhido rei há pouco tempo pelas suas reconhecidas qualidades de força, destemor, honestidade e justiça. Ocorre que, logo após o leão ter assumido as suas funções de rei, ele, todo o seu séquito e a maioria dos animais da floresta, perceberam que, na realidade, ele não reinava sobre nada; não passando de uma figura decorativa. 
                                                  Logo alguns animais se deram conta de que os ratos, que até então tinham comandado aquela floresta, a tinham desorganizado de tal forma e modificado as formas de pensar dos animais e de entenderem a vida comunitária em uma floresta, que poucos eram aqueles que obedeciam fielmente ao novo rei.
                                                  Os animais começaram a inteirar-se de que havia um governo paralelo e subterrâneo, encarregado de desacreditar o leão como rei dos animais e de desfazer todas as suas ordens, com o intuito de substituí-lo na função de mais alta autoridade da floresta pela hiena, para eles um animal muito mais confiável do que o leão (principalmente, em virtude dos membros deste governo paralelo temerem os urros que, eventualmente, o leão lançava aos ares e que lhes causavam arrepios de medo. A hiena, segundo pensavam, quando muito, apenas, gargalhava e eles confiavam plenamente na reconhecida desonestidade dela para assumir cargo tão importante).
                                                Os animais da floresta, principalmente as abelhas, as que mais trabalhavam, notaram que todos os ratos continuavam a roubar, para si mesmo e para os seus familiares e parentes próximos (Esquilos, Castores, Cutias e as Pacas), os alimentos que eram de propriedade coletiva dos diversos animais da floresta e que estavam depositados no tesouro real.
                                                 As abelhas, boas observadoras, eram as que mais trabalhavam e desejavam uma floresta bem cuidada, próspera, com flores exuberantes, onde fauna e flora fossem preservadas e elas pudessem desempenhar a função para a qual foram criadas, isto é, trabalhar e produzir o mel e a geleia real, fonte de alimento para diversas espécies animais, além de contribuir para a polinização e, por conseguinte, para a vida de muitas espécies vegetais.
                                                    Os papagaios, a serviço do governo paralelo, em seus voos pela mata ou do alto dos galhos das grandes árvores, reclamavam em altos brados e falavam contra os atos do leão, tentando influenciar os demais animais da floresta, sob os aplausos e  gritos estridentes das araras e maritacas que recebiam, em paga por terem comparecido àquelas manifestações organizadas, sementes de girassol e algumas frutas. 
                                                     Todos eles haviam recebido instruções do tal governo paralelo para desconstruir a imagem do leão, mostrando-o como um animal ignorante, meio amalucado, que só pensava em proteger a sua ninhada e que não estava preparado para as altas responsabilidades de ser um rei da selva.
                                                      As tartarugas, a quem cabia analisar e julgar os conflitos porventura surgidos, trabalhavam a passos de tartaruga quando se tratava das matérias do interesse do leão e a passos de lebre quando os assuntos eram do interesse dos ratos. Por vezes, as matérias extrapolavam as suas esferas de competência e eram, por elas mesmas, encaminhados para os urubus, a quem incumbia decidir, em definitivo, para qual dos lados as pendências iriam pender. Lembremo-nos que urubus e hienas gostam do mesmo tipo de iguarias e, portanto, pensam de maneira similar com relação a muitos assuntos.
                                                       Os macacos, a quem cabia estabelecer as regras de convivência a serem por todos respeitadas, eram os primeiros a violá-las argumentando que, se tinham a capacidade de viver nos altos galhos das árvores e no solo, possuíam, por isto mesmo e segundo eles, foros privilegiados pela própria Natureza; assim, podiam fazer o que bem quisessem, tanto nas alturas das árvores quanto no rés do chão.
                                                          Os macacos disputavam o poder com o leão e com os urubus que, juntamente com os Castores e os João de Barro, naturais empreiteiros encontrados em quase todas as florestas, formavam aquele governo paralelo mencionado anteriormente.
                                                    Os elefantes e os rinocerontes no solo; os hipopótamos nas águas; e as águias nos ares, constituíam, a rigor, os grandes garantidores do poder real do leão e os eventuais moderadores em questões mais sérias de desavenças entre o leão, os macacos e os urubus. Os dois primeiros por serem os mais fortes em terra; o terceiro o mais forte nas águas e o quarto a mais forte e veloz nos ares.
                                                      Os dois primeiros deveriam proteger o leão dos inimigos terrestres, o terceiro dos inimigos aquáticos e o quarto dos inimigos alados. Ocorre que cada um deles possuía, também, os seus próprios objetivos particulares.
                                                     Os elefantes e rinocerontes passavam seus dias a comerem folhas tenras e cascas de árvores, vez por outra emitindo um bramido ou grunhindo para espantar quem estivesse por perto e demonstrar poder e força. Alguns biólogos e zootécnicos, na atualidade, afirmam que eles de nada se esquecem, mas eu tenho cá as minhas dúvidas. 
                                             O mesmo faziam nas águas os hipopótamos, espantando os eventuais crocodilos que deles se aproximassem a uma distância ameaçadora. As águias, embora enxergassem longe, só pensavam em seus alimentos, que disputavam com os gaviões e falcões. 
                                                    Nenhum destes mencionados tinha o costume de buscar o conflito por livre iniciativa com animais dos quais não fossem os predadores (até por que, com exceção das águias, eles eram herbívoros), mas sempre procuravam conviver de forma pacífica com todos os demais animais da floresta, mesmo que estes pudessem se constituir em seus potenciais inimigos. O conflito, com animais externos à floresta era sempre evitado. Com animais da própria floresta só raramente ocorria e, mesmo assim, depois de vencê-los, em seguida, eram todos os derrotados perdoados por aquele que estivesse chefiando a manada na ocasião.
                                                   O leão, finalmente, vendo que ninguém o obedecia como o rei daquela floresta, pediu auxílio aos elefantes e aos rinocerontes. Estes responderam-lhe que a floresta estava em paz e que não havia motivo para que deixassem uma região de chuvas e de fértil pasto, como aquela em que eles estavam, em busca de uma nova região que poderia ser de seca e de aridez do solo. 
                                                  O leão buscou os hipopótamos, que afirmaram estar em uma região de rios profundos e com bastante plantas aquáticas e gramas, não vendo motivos para tomarem outro caminho, que poderia conduzi-los para planícies secas e áridas. 
                                                    Como as águias estivessem preocupadas em procurar pequenos roedores para conduzi-los, coercitivamente, aos seus ninhos, onde os filhotes as esperavam famintos, o leão resolveu, finalmente, recorrer aos camaleões. 
                                               Pediu, então, a estes que, usando de seus mimetismos, buscassem se infiltrar sem serem percebidos entre os macacos, as tartarugas e os urubus, de forma a ouvir destes as suas maquinações e adiantar-lhe tudo aquilo que seus inimigos tramavam contra ele.
                                                   Algumas semanas depois, o leão, foi procurado por alguns camaleões que traziam péssimas notícias. Disseram-lhe sobre a existência de um complô tramado entre seus inimigos, que objetivavam destituí-lo do mais alto cargo para o qual havia sido escolhido pela maioria dos animais e entregar aquela floresta para ser administrada pelos bichos da seda, vindos de um continente longínquo e trazendo com eles novas tecnologias de manejo de florestas (falaram em algo como usar cinco Gs, que significaria: Gerir uma Gentalha na floresta com Grotesca e Genocida Ganância), coisa que ele, um simples leão de floresta, desconhecia totalmente. 
                                                   Os bichos da seda, segundo afirmavam os camaleões, haviam prometido cargos e dinheiro para todos aqueles animais de destaque que apoiassem suas pretensões, pois no lugar distante onde eles viviam a terra era estéril, existiam pouquíssimos recursos naturais e eles careciam dos nossos recursos, já que lá, na terra deles, existiam bilhões de bichos da seda para alimentar.
                                                   O leão ficou preocupadíssimo com tudo aquilo que ouvira dos camaleões. Possuía três alternativas: ser destituído por algum dos inúmeros artifícios engendrados pelos seus inimigos; abdicar do cargo de rei dos animais ou solicitar ajuda externa.
                                                         O leão, aproveitando suas boas relações com o bisão, rei de umas extensas e ricas terras mais ao norte solicitou, por intermédio das abelhas trabalhadoras, a ajuda deste para manter afastado da sua floresta os bichos da seda e para ajudá-lo a combater seus três principais inimigos internos.
                                                     O bisão, em resposta trazida pelas abelhas, disse ao leão que seu mandato de rei das terras do norte estava expirando em breve; mas que contava ser reconduzido. Caso fosse (e tinha certeza de que o seria) o ajudaria a expulsar não só os bichos da seda, como também os ratos, os macacos, as tartarugas e os urubus, daquela rica floresta que despertava tanto interesse nos animais de todo o planeta.

                                                Moral da estória: “O que não for bom para a colmeia, como um todo, também não será bom para a abelha. O que não for bom para a abelha, não será bom para a floresta. O que não for bom para a floresta, não será bom para toda a fauna e a flora que ali vivem, existindo o risco daquela floresta vir a se tornar futuramente um deserto”.


_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ As fábulas são composições literárias curtas, escritas em prosa ou versos, em que os personagens são animais que apresentam características humanas.

segunda-feira, 11 de maio de 2020




368. Similia Similibus Curantur?


Jober Rocha*



                              Como todos nós sabemos, o princípio fundamental da Homeopatia, Similia Similibus Curantur, faz menção a uma antiga locução latina que significa "coisas semelhantes curam-se com coisas semelhantes".
                                             O nosso país vive hoje uma situação bastante similar, em muitos aspectos, àquela que ocorreu em meados da década de 1960, quando as forças armadas foram conclamadas pelo povo a intervir no cenário político nacional, onde predominava a corrupção e o desejo de implantação de um regime comunista.
                                           Em 31 de março de 1964, as forças armadas brasileiras deflagraram um movimento com o objetivo de depor o presidente João Goulart que, tendo sido eleito democraticamente em eleições livres, tentava, depois de empossado, implantar um regime comunista no país, com todas as mazelas que acompanham estes tipos de regimes (supressão das liberdades individuais, fim da livre iniciativa e da liberdade de expressão, estatização da economia, planificação centralizada, restrição às religiões, etc.).
                                              A vitória do Movimento Militar com a deposição de João Goulart acarretou profundas modificações na organização política do país, bem como na sua vida econômica e social. Todos os cinco presidentes militares que se sucederam declararam-se herdeiros e continuadores da Revolução de 1964. O país apresentou, desde então, altas taxas de crescimento econômico. O mundo passou a falar em milagre brasileiro; pois o país, estagnado no governo de João Goulart, começou a se desenvolver como nunca nos cinco governos militares que se sucederam. 
                                               O Movimento militar de 1964, todavia, não foi, em sua essência, um simples movimento político brasileiro envolvendo interesses partidários nacionais.
                                                          A causa ideológica que os motivou, extrapolava, de certa forma, o nosso contexto político interno, pois estava inserida no contexto da Guerra Fria entre o Leste e o Oeste, quando, de um lado, os Estados Unidos e demais potências ocidentais, e, do outro, a União Soviética e a China, buscavam estender suas ideologias para outras nações.
                                                 Um breve retrospecto histórico mostra que a expansão norte-americana foi definida pelo Presidente Roosevelt (1901-1909) através da política do ‘big stick’ (paulada). Como resultado da Doutrina Monroe, o ‘big stick’ destacava o papel dos Estados Unidos como nação guardiã da América (“destino manifesto”), dando-lhe o direito de intervir no continente americano.
                                              A União Soviética, após a crise dos mísseis de Cuba, em 1961, buscava também, junto com a China, expandir sua influência na América Latina, o que não seria, em hipótese alguma, permitido pelos Estados Unidos da América.
                                                Teve início, então, no ano de 1968, um movimento de guerrilhas no país em oposição ao Movimento Militar de 1964. Este movimento contava com apoio financeiro, além do treinamento de guerrilheiros, de diversos países comunistas: Cuba, China, URSS, Albânia e Argélia. 
                                              Surgiram no Brasil, a partir de então, diversos grupos guerrilheiros, como: Comando de Libertação Nacional – Colina; o Partido Comunista Brasileiro – PCB;  o Partido Comunista do Brasil – PC do B; o Movimento Revolucionário 8 de outubro – MR 8; a Ação Libertadora Nacional – ALN; as Forças Armadas de Libertação Nacional – FALN; a Vanguarda Popular Revolucionária – VPR; o Movimento de Resistência Militar Nacionalista – MRMN; a Resistência Armada Nacionalista – RAN; a Fração Bolchevique Trotkista – FBT; a Organização Combate 1º de maio; o Movimento de Ação Revolucionária – MAR; O Movimento Nacional Revolucionário – MNR; o Movimento Popular de Libertação – MPL; a Frente de Ação Revolucionária Brasileira – FARB; a Ala Vermelha do PCB; o Movimento de Libertação Popular – MOLIPO; o Movimento Revolucionário Tiradentes – MRT; a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares – VAR PALMARES; a Resistência Democrática – REDE; o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário – PCBR; o Partido Operário Comunista – POC; a Política Operária – POLOP; a Aliança Popular – AP e o Grupo Especial Nacionalista Revolucionário – GENRE.
                                               Derrotados estes movimentos nos anos 70, com a maioria de seus integrantes, presos, mortos ou evadidos para outros países, a guerrilha urbana e rural terminou no país.
                                                  Com suas organizações praticamente aniquiladas no início dos anos 70, a maioria dos guerrilheiros abandonou, portanto, a luta armada. Ao longo da década, alguns militantes aderiram ao MDB, único partido de oposição ao regime. Nos anos 80, com a anistia e a abertura política, os antigos guerrilheiros dos diversos movimentos começaram a se organizar em partidos políticos que existem até hoje. Alguns integrantes do PCB foram para o PPS; alguns do MNR e da VPR foram para o PDT; alguns do MR-8 e do PCBR foram para o PMDB; alguns do PCBR e da ALN foram para o PT; alguns do PCdoB e da AP foram para o PCdoB.
                                              Com o declínio econômico da URSS, a Glasnost e a Perestroika nos anos 80, o Ocidente, capitaneado pelos USA, acreditou que o imperialismo comunista havia sido, finalmente, destruído.
                                                 Finda, pois, a ameaça comunista no Continente Sul Americano, os militares brasileiros foram substituídos por civis nos novos governos que se instalaram após a realização de eleições livres e democráticas, promovida por aqueles. Muitos ex guerrilheiros foram eleitos para prefeitos, governadores, deputados, senadores e, até mesmo, para o cargo de presidente da república. As populações latino-americanas, como sempre, não se deram conta de que o comunismo não estava morto como pensavam; apenas mudara a sua tática de tomada do poder. Abandonara a tradicional via da violência e partira para a nova via Gramscista, isto é, a tomada pacífica das instituições públicas e das mentes dos indivíduos, antes do golpe final.
                                                 Com a eleição, para cargos políticos, de inúmeros ex guerrilheiros e militantes de esquerda, a partir de 1995, os três poderes da república foram sendo aparelhados com ativistas e simpatizantes do marxismo. O Foro de São Paulo, entidade constituída por centenas de partidos de esquerda do Continente, traçava as diretrizes visando transformar toda a América Latina em um território comunista; ou seja, na União das Repúblicas Socialistas da América Latina – URSAL. A corrupção no Brasil grassava solta, como forma de enriquecer políticos e partidos de esquerda e também como forma de desviar dinheiro público brasileiro para fortalecer movimentos comunistas em todo o continente sul americano.
                                                  Quase em vias de nos transformarmos em um país comunista, após três décadas de governos de esquerda, nas eleições de 2018 fomos salvos, momentaneamente, de um trágico destino de miséria e de privações. A eleição do presidente Jair Bolsonaro, um liberal, conservador e honesto, trouxe novo ânimo a 58 milhões de eleitores.
                                                       Ocorre, no entanto, que ele encontrou, ao assumir o cargo, os três poderes da república aparelhados com militantes e ativistas de esquerda, ali colocados pelos anteriores governantes ao longo de três décadas. Não tendo aderido à velha política de oferecer cargos na administração, aos parlamentares, em troca de apoio político e, ademais, por ter cortado as enormes verbas públicas que compravam a cooptação da grande Mídia, passou a ser por estes combatido freneticamente. 
                                                 Traído, também, por alguns aliados que ajudou a eleger ou que nomeou como ministros do seu governo, hoje o presidente se encontra cerceado em suas atividades e impedido de governar pelo parlamento e pelo Supremo Tribunal Federal (cuja maioria dos ministros foi ali colocada pelos anteriores presidentes de esquerda), estando muito próximo de um impeachment.
                                             As situações de 1964 e de 2020 são, até certo ponto, semelhantes: a Guerra Fria ainda persiste. A China e a Rússia possuem enorme interesse nos recursos naturais do continente sul americano, notadamente aqueles do Brasil. Os USA, certamente, não vêm com bons olhos a penetração destas duas potências nucleares no nosso continente, principalmente por constituirmos uma área de refúgio e de abastecimento dos USA em caso de um conflito com a China e/ou Rússia. 
                                           Possuímos um governante de direita, ameaçado de um golpe pela esquerda venal ainda encastelada nos três poderes, a economia apresenta déficit orçamentário imenso, o desemprego deve dobrar e as empresas comerciais, industriais e de serviços encerrarem suas atividades aos milhares, em todo o país ou serem adquiridas pela China na bacia das almas.


                                         As grandes questões que se colocam são as seguintes: Caso Jair Bolsonaro, eleito por 58 milhões de eleitores brasileiros, político reconhecidamente honesto, cristão, que deseja transformar o nosso país em uma potência econômica, seja destituído do governo pelos corruptos e pelos esquerdistas, em um golpe de estado visando transformar o país em um regime comunista cleptocrata, surgirão, tal como em 1968, movimentos guerrilheiros de libertação, de tendência conservadora de direita? Nossos vizinhos do Norte entrarão neste embate para evitar que sejamos uma colônia comunista da China e/ou da Rússia? As nossas forças armadas estarão unidas e coesas ou divididas? Farão direita volver ou esquerda volver, antes de seguirem em frente? Similia similibus curantur?

                                           
_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro Fundador da Academia Brasileira de Defesa – ABD e Membro Titular do Centro Brasileiro de estudos estratégicos – CEBRES. 





segunda-feira, 4 de maio de 2020

367. Um dia eles vieram...


Jober Rocha*




                                      Alguns escritores com acentuada veia poética conseguem colocar no papel, de forma precisa e realista, sentimentos e percepções que lhes chamaram a atenção sobre determinadas situações vivenciadas por toda a coletividade na qual se inserem.
                                                     Isto ocorreu nos casos de Martin Niemöler e de Eduardo Alves da Costa. 
                                                         Martin Niemöller (1892-1984) foi um pastor luterano alemão, considerado em sua época como um símbolo da resistência aos nazistas. Tornou-se mundialmente conhecido em razão do seu discurso-poema conhecido em nosso país como ‘E não sobrou ninguém’.
                                                     Este discurso-poema, de 1933, que possui diversas versões, pois foi dito por ele em várias ocasiões de forma distinta, dizia o seguinte: 

E Não Sobrou Ninguém

“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar...”

Outra versão do seu discurso é a seguinte:

"Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista. 
Quando eles prenderam os socialdemocratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um socialdemocrata. 
Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista. 
Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu. 
Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar."

                                                  Outro conhecido poema, denominado “No caminho com Maiakóvski”, do escritor e poeta brasileiro Eduardo Alves da Costa, datado de 1968, foi muito citado pelos integrantes da resistência à Revolução de 1964, como crítica aos militares, e erroneamente atribuído ao próprio poeta russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930).

                                                     O poema de Eduardo Alves da Costa, em um trecho, diz o seguinte:


No caminho com Maiakóvski

“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão.
E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada”.

                                                 Inspirando-me, pois, nos dois poemas precedentes, resolvi fazer um texto que, da mesma forma como os anteriores retratavam situações vividas por cidadãos em determinadas épocas e em determinados países, buscasse também evidenciar a situação vivida pelos cidadãos brasileiros, eleitores do atual presidente Jair Bolsonaro. O meu texto, que denominei de ‘Um dia eles vieram...”, é apresentado a continuação:

Um dia eles vieram... 

                                              Um dia, contrariando determinações do presidente da república, eles vieram e ordenaram o fechamento das escolas, das industrias e do comércio. Como não sou estudante, nem industrial e nem comerciante, eu não disse nada.
                                                   O presidente reclamou, mas eles responderam que ele não tinha autoridade para impedir estas medidas que estavam sendo impostas às populações de todo o país.
                                                    Depois eles proibiram as pessoas de saírem às ruas. Como as lojas estavam fechadas e não havia transporte público disponível, eu não disse nada.
                                              Mais tarde eles soltaram todos os criminosos presos, inclusive aqueles presos por corrupção. Como eu não sou policial, nem promotor de justiça e nem juiz, eu não disse nada.
                                              Pouco depois eles proibiram o presidente e os ministros de nomearem os seus subordinados. Como não sou ministro, nem presidente, eu não disse nada.
                                               Até que um dia eles aprovaram o impedimento do presidente, à revelia do povo, e colocaram um substituto em seu lugar, que passou a governar segundo as ordens deles. Achei estranho, mas como não entendo nada de política, eu não disse nada.
                                               Mesmo quando me dei conta de que a vida estava muito pior; que uma multidão de desempregados vagava a esmo pelas ruas procurando aquilo que já não existia mais; que a mesma fome que há pouco atingia as casas mais humildes, agora já atingia as ricas mansões, eu continuei calado.
                                             Por fim, quando me vi disputando com parentes e amigos restos de lixo amontoados pelas ruas do bairro, em busca de comida, conforme já vira antes pela TV muitas pessoas fazerem na cidade de Caracas, na Venezuela, me dei conta de que o grande culpado daquela trágica situação éramos nós mesmos, os brasileiros acovardados e acomodados. 
                                                  Lembrei-me, então, de um texto que havia lido há muitos anos, ainda em minha juventude, e que, embora houvesse despertado a minha atenção na ocasião, não dei a ele muita importância. 
                                                  O texto havia sido escrito por Étienne de la Boétie, advogado francês que ocupou o cargo de conselheiro do Parlamento de Bordéus. Bem antes de Rousseau apresentar o seu “Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens”, Étienne já havia escrito sobre os tiranos e a servidão. 
                                                        Em seu ‘Discurso da Servidão Voluntária’, escrito entre 1546 e 1548, ele afirmava:

 “É incrível ver como o povo, quando é submetido, cai de repente em um esquecimento tão profundo de sua liberdade, que não consegue despertar para reconquistá-la. Serve tão bem e de tão bom grado que se diria, ao vê-lo, que não só perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão”. 
“É verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força. Mas os que vêm depois servem sem relutância e fazem voluntariamente o que seus antepassados fizeram por imposição. Os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e educados na servidão, sem olhar mais à frente, contentam-se em viver como nasceram e não pensam que têm outros bens e outros direitos, a não ser os que encontraram. Chegam, finalmente, a persuadir-se de que a condição de seu nascimento é natural”. 
“Os homens submissos, desprovidos de coragem guerreira, perdem também a vivacidade em todas as outras coisas, têm o coração tão fraco e mole que não são capazes de qualquer grande ação. Os tiranos sabem muito bem disso. Por isso, fazem o possível para torná-los ainda mais fracos e covardes”. 
“A inclinação natural do povo ignorante, cujo número é cada vez maior nas cidades, é desconfiar daquele que o ama e acreditar naquele que o engana. Não penseis que um pássaro caia mais facilmente no laço ou um peixe, por gulodice, morda mais cedo o anzol, que todos esses povos que se deixam atrair prontamente pela servidão, pela menor doçura que os façam provar. É, realmente, assombroso ver como se deixam ir tão rapidamente ao menor afago que lhes seja dispensado”. 
“O teatro, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, os animais ferozes, as medalhas, os quadros e outras drogas semelhantes eram para os povos antigos a isca da servidão, o preço da sua liberdade, os instrumentos da tirania. Os tiranos antigos empregavam esses meios, essas práticas e esses atrativos para entorpecer seus súditos sob o jugo. Assim os povos, embrutecidos, achando belos esses passatempos, entretidos por um prazer vão, que passava rapidamente diante de seus olhos, se acostumavam a servir tão ingenuamente (e até pior) como as criancinhas que aprendem a ler vendo as imagens brilhantes dos livros coloridos”. 
“Os tiranos de Roma recorreram também a outro meio: dar com frequência festas às decúrias públicas, iludindo como podiam essa canalha que se entrega ao prazer da boca, mais que a qualquer outra coisa. O romano mais sensato e esperto não deixaria sua tigela de sopa para recuperar a liberdade da República de Platão. Os tiranos distribuíam em profusão um quarto de trigo, um sesteiro de vinho e um sestércio, e então dava dó ouvir gritar: ‘Viva o Rei!’ 
“Os imbecis não percebiam que recuperavam apenas uma parte do que era seu, e que mesmo a parte que recuperavam o tirano não pudera dar-lhes se, antes, não a tivesse tirado deles mesmos. O que hoje apanhava o sestércio e se empanturrava no banquete público bendizendo a generosidade de Tibério ou de Nero no dia seguinte, obrigado a abandonar seus bens à cobiça, seus filhos à luxúria, seu próprio sangue à crueldade desses imperadores magníficos, não dizia palavra, mudo como uma pedra e imóvel como um tronco”. 
“O povo ignorante sempre foi assim: entrega-se com paixão ao prazer que não pode receber, honestamente, e é insensível ao erro e à dor que não pode suportar sem se aviltar”.
 “Os primeiros reis do Egito nunca se mostravam em público sem levar ora um gato, ora um ramo, ora um fogo sobre a cabeça, e desse modo se mascaravam e se fingiam de mágicos. Com essas formas estranhas, inspiravam certa reverência e admiração a seus súditos, que só deveriam rir e zombar deles, se não fossem tão estúpidos ou submissos. É realmente lamentável ouvir falar de quantas coisas os tiranos do passado se valeram para consolidar sua tirania, e de quantos meios mesquinhos se serviam, encontrando sempre o populacho tão bem disposto em relação a eles, que caia em sua rede mesmo quando mal soubessem armá-la”.
 “Eles sempre tiveram facilidade em enganá-lo e nunca o sujeitaram melhor do que quando mais zombavam dele”. 
“Os próprios tiranos achavam estranho que os homens pudessem suportar um homem que os maltratasse. Por isso se cobriam de bom grado com o manto da religião e, se possível, queriam tomar emprestada alguma amostra da divindade para manter sua vida malvada”. 
                                                  Embora escrito há 474 anos, o texto de Étienne de la Boétie continua atual, pois foi escrito sobre alguns caracteres psicossociais intrínsecos aos seres humanos. Estes, infelizmente, parece que sempre serão os mesmos e que jamais mudarão. Já eram assim na Antiguidade Clássica, continuaram assim na Idade Média e, na Modernidade, ainda permanecem assim na grande maioria dos habitantes dos 193 países existentes no planeta. 
                                            E pensar que ver-se livre desta servidão voluntária não é impossível, caso os seres humanos se dessem conta da proposta formulada por Étienne em seu Discurso da Servidão Voluntária:

 “Não é preciso combater nem derrubar esse tirano. Ele se destrói sozinho, se os habitantes do país não consentirem com suas servidões. Nem é preciso tirar algo ao tirano, mas só não lhe dar nada. O país inteiro não precisa esforçar-se para fazer algo em seu próprio benefício, basta que não faça nada contra si mesmo”. 
“São, por conseguinte, os próprios povos que se deixam, ou melhor, que se fazem maltratar; pois eles poderiam ser livres, caso parassem de servir. É o próprio povo que se escraviza e se suicida, quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, até mesmo, o procura”.
                                                 Esta solução de Boéthie foi aplicada com sucesso, pela primeira vez, em 1906, por Mahatma Gandi, ao conclamar o povo indiano a operação Satyagraha, uma forma não violenta de protesto e de desobediência civil contra o domínio do Império Britânico na Índia. Pouco tempo depois, foi concedida independência à Índia e os ingleses se retiraram do seu território.


_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro fundador da Academia Brasileira de Defesa – ABD e Membro Titular do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos – CEBRES.



sábado, 2 de maio de 2020



366. A Roda Gigante da História


Jober Rocha*



                                Na presente oportunidade, estamos tendo a felicidade (ou a infelicidade) de atingirmos a posição correspondente ao grau zero na roda gigante (que possui a forma de um círculo trigonométrico, dividido em 360 graus) da História; isto é, o seu ponto mais baixo.
                                    Por diversas vezes, ao longo de sua existência, a raça humana (ou parte dela) se viu frente a uma nova situação ameaçadora e desconhecida, como a que agora vivenciamos.
                                       Estou certo de que o mesmo sentimento de insegurança, de medo de temor e de aflição, com relação ao futuro desconhecido, já deve ter ocorrido a milhares de indivíduos, senão milhões, em várias partes do planeta e em várias épocas distintas da nossa história.
                                          Na antiguidade e na idade média quando hordas inimigas invadiam determinados territórios; quando uma peste desconhecida dizimava populações inteiras; quando terremotos ou cataclismos vulcânicos atingiam regiões habitadas, matando seus habitantes; quando secas dizimavam as colheitas, trazendo a fome para grandes populações; quando nevascas devastavam a fauna e flora, matando de fome e frio os habitantes de vastas regiões; as populações afetadas por estes episódios passavam por crises semelhantes aquela que ora passamos, embora de menores proporções globais, gerando sentimentos de medo e de apreensão iguais aqueles que hoje nos acometem.
                                            Na idade contemporânea, as grandes guerras com seus efeitos catastróficos, destruindo bens e vidas humanas, trouxeram o temor, o desânimo e a descrença à milhões de seres humanos; porém, da mesma forma que estas guerras vieram, elas também se foram.
                                           Por diversas vezes, ao longo da história humana, povos, raças, civilizações já tiveram seus ápices e seus ocasos. Muitos chefes, patriarcas, monarcas, imperadores, generais, figuras extremamente poderosas em suas épocas, foram sepultados para sempre no lixo da história e seus famosos nomes se viram totalmente esquecidos pelas gerações futuras. Por outro lado, figuras humildes e sábias, com algo de especial que os destacavam dos demais, são ainda hoje lembrados e reverenciados pelas atuais gerações. A história possui seus próprios critérios de preservação de biografias...
                                                Desde a última grande guerra, a espécie humana passou por um período de relativa calmaria, ponteada de episódios ocasionais de guerras localizadas e de pequenas proporções; de revoluções; de novas enfermidades; bem como de novos cataclismos da Natureza. 
                                                    Nada, no entanto, da magnitude mundial como a atual pandemia de um vírus denominado Sars-Cov-2 que alguns analistas afirmam fazer parte de uma guerra biológica em andamento e que teve o poder de parar, mundialmente, a vida de muitos países, que adotaram a quarentena em casa como forma de tentar diminuir os seus efeitos imediatos, para não colapsar seus sistemas de saúde, incapazes de atender em um mesmo momento a todos os eventuais infectados.
                                              Pode-se dizer que o mundo parou: pararam os voos internacionais de passageiros, o turismo, as cidades ficaram vazias, as lojas foram fechadas; bem como as indústrias de bens de consumo e, mesmo, as de bens de produção em muitos países. Foi instituída uma quarentena obrigatória em muitas cidades e países do mundo.
                                                  Ninguém sabe quando isto tudo terminará, nem como será o novo mundo com que nos defrontaremos após a passagem deste terrível vendaval pandêmico. O saldo que podemos imaginar será o de milhares ou milhões de mortos e indivíduos com sequelas permanentes; milhões de desempregados; milhares ou milhões de empresas com atividades cerradas. 
                                                 Talvez, em breve, faltem produtos de alimentação, bens de consumo duráveis, bens de produção. A violência em todo o mundo deverá se elevar. Talvez a possibilidade de guerras entre as potências nucleares esteja mais próxima do que jamais esteve. Impérios poderão trocar suas posições de liderança no novo cenário mundial. O comércio internacional será reduzido e muitos países sofrerão recessão econômica.
                                                       E pensar que uma grande parcela disto tudo que hoje ocorre no mundo é devida à ambição pelo poder e riqueza, à avareza, ao egoísmo, à ignorância, à soberba e à vanglória dos donos do mundo e de seus prepostos, notadamente em decorrência da competição pelos recursos naturais, pela supremacia tecnológica e bélica, pelo domínio de posições geoestratégicas. 
                                                      Desde o início da pandemia as ações baixaram nas bolsas de valores, fortunas trocaram de mãos de um dia para o outro, a corrupção grassou solta pelo mundo à fora, notadamente em nosso país onde, na dispensa de licitações e de concorrências públicas por serem compras emergenciais, produtos, obras e serviços foram superfaturados. Aqui, ademais, temos outras variáveis a influírem em nossos destinos: a ideologia marxista que alguns desejam ver implantada no país e a cleptocracia, que nas últimas décadas se instalou em cargos chaves dos três poderes da república e que luta com todas as forças que possui para permanecer onde está, não hesitando em rasgar a constituição quando lhe convém e em desafiar o representante do poder executivo para demonstrar que tem poder.
                                              Talvez, a partir desta pandemia, as Economias, mundial e domésticas, se estruturem sobre outras formas; a vida nas cidades e nos campos sejam modificadas; sejam proibidas as manipulações genéticas com vírus; sejam aumentados e aperfeiçoados os mecanismos de detecção e controle sobre endemias, epidemias e pandemias; os hábitos de consumo de modifiquem; se valorizem mais determinadas profissões que outras; os heróis passem a ser aqueles que expõem as vidas para salvar seus semelhantes e não aqueles que, explorando as fraquezas destes pelos esportes e pelos espetáculos circenses midiáticos, enriquecem às custas de torcedores e espectadores.
                                                         Neste momento em que me encontro em casa, já há muitos dias, sob total quarentena, me vem à mente as palavras do filósofo hispano-árabe Ibn Hazn (994-1064), também conhecido como Abzeme, em sua obra ‘A Filosofia’, quando dizia:

                                         “Há os que desejam a riqueza só para afastar do espírito o medo da pobreza; outros procuram a glória para se libertarem do medo de serem rejeitados; outros procuram prazeres sensuais para fugirem ao sofrimento das privações; outros, ainda, procuram o conhecimento para não terem a incerteza da ignorância. Há também os que gostam de saber dos acontecimentos e de conversar, para assim afastarem a tristeza da solidão e do isolamento. Em resumo: o homem come, bebe, se casa, observa o mundo, se diverte, tem uma casa, anda ou fica quieto com o único objetivo de expulsar as contrariedades e, de um modo geral, todas as outras ansiedades. Mas, por sua vez, cada uma dessas ações dá origem a novas ansiedades”.

                                              Essas ansiedades, típicas dos seres humanos desde os primórdios, conduzem muitos deles para o caminho das drogas, licitas ou não, e outros tantos, sabendo aproveitar a oportunidade, para a busca dos próprios desenvolvimentos mental e espiritual. Como alguém já disse, toda crise é uma época de oportunidades raras para o aprendizado e a evolução.
                                                           Pelo fato de nos encontrarmos no ponto mais baixo da roda gigante da História, no momento parada para o desembarque de um grande contingente humano, é de supor que em algum momento ela irá se colocar novamente em movimento. Temos de nos preparar para esse momento, modificando conceitos, adaptando formas de ação, criando novas maneiras de encarar a realidade. O importante é aprender a sobreviver em um meio inóspito como aquele que, de uma hora para outra, por força da conjuntura e das consequências, poderemos ter de nos defrontar novamente. 
                                                         O mundo da tecnologia é fantástico, quando existe energia elétrica, quando tudo está funcionando corretamente, quando a vida segue normal. De nada vale quando temos que sobreviver por nossos próprios meios, quando dependemos, apenas, de nós mesmos e não podemos contar com o Estado, suas instituições e seus agentes para a nossa proteção e manutenção. Além disto, quando inexiste segurança jurídica, as leis, decretos e portarias perdem seus valores.
                                                              Acredito que nem mesmo Nostradamus, caso ainda fosse vivo, poderia predizer como será o mundo daqui por diante. Creio que a ideia de globalismo (que veio substituir a de pátria, em uma Economia mundial cada vez mais interdependente) será substituída, novamente, pela de pátria. O sentimento de nacionalidade deverá se acentuar. Talvez o turismo mundial diminua, em detrimento do turismo nacional interno; o comércio mundial de itens supérfluos talvez caia; é possível que os países se fechem em suas fronteiras. O sentimento religioso, o misticismo e a espiritualidade deverão se estender por um número maior de seres humanos; os laços familiares deverão se fortalecer, enquanto os países buscarão todos se rearmar.
                                                    Penso que as técnicas de sobrevivencialísmo serão buscadas por um número cada vez maior de pessoas; bem como, todos aqueles que puderem, procurarão retornar ao campo para viver ou, mesmo, para manter neste uma pequena casa ou refúgio de final de semana ou de férias, onde armazenarão água e comida e poderão sobreviver em caso de necessidade.
                                               A situação atual é crítica, mas devemos recordar que nossos antepassados já viveram situações parecidas e o mundo seguiu em frente.
                                                   Em breve, quando a roda gigante da história estiver subindo de novo, até a posição de 180 graus, todos os passageiros, em seus países, sorrirão felizes e se esquecerão do ano de 2020, quando eles estavam no grau zero. Imaginarão que a nova subida jamais terá um fim e que a sua ascensão será exponencial. Só se darão conta da triste realidade da vida terrestre quando, tendo atingido a posição de 180 graus, perceberem que a roda começa a girar na direção descendente, rumo, novamente, a posição do grau zero.
                                                    Segundo alguns cientistas reconhecem em, ao menos, 5 ocasiões distintas mais da metade das espécies da Terra desapareceram. São as chamadas ‘Big Five’, as maiores extinções de todos os tempos. Elas aconteceram nos últimos 500 milhões de anos, em intervalos que variaram de 50 milhões a 150 milhões de anos.
                                                           Sobreviveremos a uma sexta extinção? Essa discussão já foi alvo de um estudo de Elizabeth Kolbert, denominado ‘A Sexta Extinção: Uma História Não Natural’, publicado em 2014 e ganhador do Prêmio Pulitzer. Todavia, por fugir ao escopo do presente texto, ficaremos por aqui. Para aqueles leitores que desejarem se aprofundar no assunto, existe uma edição em português, de 2019, da Editora Elsinore.


_*/ Economista, doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro Fundador da Academia Brasileira de Defesa – ABD e Membro Titular do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos – CEBRES.