362. Um breve ensaio sobre a Saciedade
Jober Rocha*
Saciedade é o vocábulo que tenta descrever a sensação ocorrida nos seres humanos no intervalo de tempo compreendido entre o fato de eles acabarem de se satisfazer de alguma necessidade física e voltarem a sentir, novamente, a sua necessidade.
A Saciação, por sua vez, refere-se ao tempo decorrido entre o ser humano começar a usufruir do que quer que seja e o fato de sentir-se saciado com aquilo que está usufruindo.
Um estudo aprofundado sobre a Saciedade, teria, evidentemente, implicações de ordem biológica, psicológica, sociológica, antropológica e econômica, para ficarmos apenas nessas poucas ciências.
A saciedade, como imagino, vigora para as necessidades de natureza física, mas não vigora para os desejos de natureza emocional, psicológica e intelectiva, que dependem de fatores subjetivos, culturais e da própria idiossincrasia comportamental de cada um. Como os desejos não físicos se passam no plano mental, emocional e psicológico, aparentemente não podem ser saciados.
Como possíveis exemplos de alguns destes últimos, menciono as vontades de amar e de odiar; de poder e de riqueza; de adquirir conhecimentos; de ensinar e de fazer o bem.
Ninguém, que esteja dominado pela emoção, se julga saciado a ponto de achar que já amou ou odiou o suficiente algo ou alguém; ninguém psicologicamente ambicioso e egoísta, considera que já possui níveis de poder e de riqueza que lhe bastam; ninguém, intelectualmente curioso e amante do conhecimento, julga que já adquiriu o conhecimento que precisava e que pode parar de aprender a partir de então; ninguém que possua um caráter filantrópico e caridoso, além de vocação para o magistério se considera farto de fazer o bem ou de ensinar aquilo que sabe.
Os mecanismos fisiológicos que existem regulando à saciedade biológica, que extingue uma necessidade vital, não existem para comandar as saciedades emocionais, psicológicas e intelectivas dos desejos. Talvez os únicos mecanismos que possam conduzir à saciedade destes desejos mentais, emocionais e psicológicos sejam a maturidade e a evolução espiritual que os tornem desnecessários; porém, se tratam de fatores de difícil consecução, entendimento e mensuração.
Vê-se, pois, que alguns desejos não podem ser saciados, mesmo que realizados frequentemente e tais desejos, insaciáveis, possuem a característica de acompanhar seus portadores até as próprias sepulturas; desde, é claro, que estes não evoluam espiritualmente e amadureçam mentalmente, passando a considerar como algo sem importância a vontade continua e intensa que tinham de realiza-los.
Inicialmente, com respeito à saciedade de necessidades físicas, os compêndios de Medicina nos ensinam que, biologicamente, quando a quantidade de glicose no sangue cai abaixo de determinado nível, começa a sensação de fome e quando a glicose sanguínea está acima deste nível, tem início da sensação de saciedade biológica ou física.
Esse processo biológico chamado de saciedade, também, é causado por vários estímulos. Um deles é a distensão da parede gástrica motivada pelo armazenamento, no estomago, do alimento ingerido. O tempo de permanência do alimento ali depende, principalmente, da sua composição e não apenas da quantidade. Quanto mais gordura estiver contida no alimento, maior o tempo necessário para o esvaziamento gástrico.
Por outro lado, quando o alimento passa do estômago para o intestino, um sinal químico de saciedade é produzido, pois o intestino libera um hormônio para o sangue, a colecistocinina, em resposta à presença das proteínas e das gorduras contidas no alimento que chega.
Estes sinais de fome e de saciedade vão todos para o hipotálamo, estrutura cerebral que analisa as condições corporais e gera as respostas apropriadas. O hipotálamo é um centro de processamento de informações que recebe os vários tipos de sinalizações como, por exemplo, a concentração de nutrientes (entre estes os níveis de glicose no sangue) ou o grau de distensão do estômago.
Em síntese esta é a forma pela qual o corpo humano trata biologicamente as situações representadas pela fome e pela sua saciedade.
Algo semelhante passaria, ainda biologicamente, com a sensação de sede. Quando a concentração osmótica do sangue sobe e este se torna mais concentrado, é disparado um alerta de que o corpo precisa de mais água, provocando a sensação de sede.
Quando o indivíduo começa a beber água, esta leva um certo tempo para ser absorvida pelo sistema digestivo e levada até os tecidos carentes. Só depois que isto ocorre é que o organismo se sente verdadeiramente hidratado e pode comunicar o fato ao cérebro. Todavia, o corpo necessita frear a sede antes que ele todo se reidrate, para evitar excesso de ingestão de líquidos.
Segundo a ciência entende, o circuito da sede no cérebro funcionaria como uma rodovia de duas mãos. Essa estrada passa pela região cerebral chamada ‘lamina terminalis’ e por outra região chamada ‘núcleo pré-óptico medial’. Quando o corpo detecta falta d’água, os neurônios vão se excitando um a um (como luzes de freio de carros, no trânsito, que vão se iluminando uma atrás da outra) e essa excitação se ramifica pelo cérebro espalhando esses sinais e criando a sensação generalizada de sede.
Na pista da rodovia em sentido contrário, localiza-se um tipo diferente de neurônio, que também trabalha em sequência, só que inibindo os seus vizinhos ao invés de excitá-los. Essa sequência é ativada pelo simples ato de o indivíduo beber um único gole d’água. A simples sensação física de beber algo líquido já ativa os neurônios anti-sede, reduzindo-a.
Saciedades quanto a eliminação de dejetos líquidos e sólidos individuais, também são regidas por mecanismos biológicos; todavia, não entraremos em detalhes sobre tais processos para não nos alongarmos desnecessariamente.
Biologicamente a capacidade de se sentir saciado fisicamente varia entre os indivíduos. Alguns se saciam com pouco e outros necessitam de muito para se sentirem saciados, seja lá do que for.
As saciedades emotiva e psicológica, conforme dito anteriormente, não ocorrem entre nós seres humanos, principalmente, por dependerem da maturidade e da evolução espiritual e em razão de estarem ligadas, na minha opinião, a questão da busca da felicidade, cuja definição pode ser a de um estado durável de plenitude, satisfação e equilíbrio físico e psíquico, em que o sofrimento e a inquietude são transformados em emoções ou sentimentos, que vão desde o contentamento até a alegria intensa ou o júbilo.
Tais estados, se na definição teórica de felicidade são duráveis, na prática quotidiana são efêmeros ou momentâneos e se passam no plano mental e das emoções, razão pela qual não permitem que deles atinjamos qualquer forma de saciedade.
Devido a inconstância dos seres humanos, atingido um desejo que proporcione felicidade, logo em seguida ele será substituído por outro, tornando o ser humano infeliz novamente por não o ter, ainda realizado. Portanto, momentos de felicidade alternam-se a momentos de infelicidade, fazendo com que aquela não seja durável no tempo e, portanto, não atinja um nível de saciedade nos seres humanos comuns que a procuram.
Devido a inconstância dos seres humanos, atingido um desejo que proporcione felicidade, logo em seguida ele será substituído por outro, tornando o ser humano infeliz novamente por não o ter, ainda realizado. Portanto, momentos de felicidade alternam-se a momentos de infelicidade, fazendo com que aquela não seja durável no tempo e, portanto, não atinja um nível de saciedade nos seres humanos comuns que a procuram.
A felicidade teria, ainda, o significado de bem-estar espiritual ou paz interior e poderia ser abordada pela ótica da filosofia, das religiões e da psicologia. Discorreremos um pouco sobre cada uma delas, antes de tentar chegar onde desejamos.
É fato pacificamente aceito que, desde os primórdios dos tempos, a almejada felicidade tem sido buscada pelo homem. Filósofos, pensadores e religiosos sempre se dedicaram a definir sua natureza e que tipo de comportamento ou estilo de vida levaria à felicidade plena.
O primeiro filósofo a tratar da felicidade foi Zoroastro (VII A.C.) na Pérsia, atual Irã, ao afirmar que no final dos tempos o bem venceria sobre o mal. O bem incluía a beleza, a justiça, a saúde e a felicidade. Quase na mesma época, na China, Lao Tse afirmava que a felicidade poderia ser obtida tendo como modelo a Natureza. Outro filósofo chinês, Confúcio (também da mesma época) afirmava que a felicidade poderia ser atingida mediante o disciplinamento das relações sociais.
Três séculos depois, o filósofo grego Aristóteles (IV A.C.) associou a felicidade à virtude, pois a vida virtuosa seria uma vida feliz. A felicidade consistia, pois, em uma atividade da alma. Assim, um homem feliz seria um homem virtuoso.
Outros filósofos gregos também discorreram sobre o tema, como Epicuro (Epicurismo) e Pirro de Elis (Ceticismo). A escola grega conhecida como Estoicismo, criada por Zenão, afirmava que a felicidade seria alcançada através da tranquilidade e que esta poderia ser atingida pelo autocontrole e pela aceitação do destino.
Mais recentemente Jean Jacques Rousseau, filósofo francês, afirmava que o ser humano foi originalmente feliz, mas que a civilização havia destruído este estado de felicidade. Para retomá-lo, a educação humana deveria conduzir o homem à sua simplicidade original.
Auguste Comte, com sua Escola Positivista, nomeou a Ciência e a Razão como os elementos fundamentais para se atingir a felicidade.
Relativamente à abordagem Religiosa da felicidade, para o Budismo, doutrina surgida na Índia e criada por Sidarta Gautama (VI A.CC.), a felicidade suprema seria atingida, apenas, pela superação dos desejos do EGO. A felicidade consistiria, assim, na ausência ou libertação do sofrimento. Esse apelo humano ao atendimento dos desejos do ego é que conduziria ao sofrimento e impediria os seres humanos de encontrarem a felicidade plena.
Para o Cristianismo, religião sobre Jesus Cristo surgida a partir do Concilio de Nicéia em 325 D.C., o amor seria o elemento fundamental da harmonia, necessária para o estado de felicidade. Alguns pensadores cristãos afirmavam que a felicidade era a visão da essência de Deus.
No Islamismo, religião fundada por Maomé, a caridade e a esperança em uma vida após a morte seriam os elementos fundamentais da felicidade.
No que se refere a abordagem religiosa, que prega uma vida virtuosa e livre de desejos, constata-se ser extremamente difícil, se não quase impossível, viver em um mundo concorrencial regido pelo consumo de bens materiais (consumo este que move a economia e que gera empregos e renda às populações) e pela economia capitalista de mercado (onde as ‘regras do jogo’ em muitos países do mundo são, quase sempre, desumanas e imorais, quando não ilícitas) não desejando consumir ou não sendo obrigado, com frequência, a comportamentos viciosos ou ilegais.
O dilema enfrentado pelos seres humanos nestas condições (teoria versus prática) leva-os, muitas vezes, a estados angustiantes de conflito, que conduzem à depressão e ao stress. Muitos recorrem ao uso de drogas e de medicamentos, para poderem continuar convivendo em sociedade. Tais indivíduos, com certeza, não são felizes.
Com respeito à abordagem psicológica, o psiquiatra Sigmund Freud (1856-1939), considerado como o criador da psicanálise, defendia que todo ser humano é movido pela busca da felicidade, através daquilo que ele denominou de Princípio do Prazer. Esta busca, entretanto, seria fadada ao fracasso, devido à impossibilidade de o mundo real satisfazer a todos os nossos desejos. A isto, Freud deu o nome de "Princípio da Realidade". Segundo Freud, o máximo a que poderíamos aspirar seria uma felicidade parcial. A psicologia positiva - que dá maior ênfase ao estudo da sanidade mental e não às patologias - relaciona a felicidade com emoções e atividades positivas. A conclusão de Freud, por si só, evidencia a impossibilidade de atingirmos a saciedade dos desejos e, quando muito, atingiríamos uma saciedade parcial.
Com relação à abordagem psicológica, ainda, constata-se que a Mídia moderna enfatiza (em sua ânsia para expandir o consumo, o Capitalismo e a Economia de Mercado) o uso de conhecimentos sobre a psicologia humana, vinculados ao desejo de ter poder, de possuir beleza física e saúde, de alcançar status social, etc., oferecendo produtos e serviços que, supostamente, permitiriam alcançar aqueles objetivos. Evidentemente, estabelecida esta ‘cultura’ quem não participa dela por razões econômicas sente-se infeliz.
A abordagem social vincula a felicidade do indivíduo à posse de emprego, de moradia, de alimentação suficiente, de segurança, de saúde, de laser, de diversão, etc.
Relativamente à abordagem social, ainda, é patente que aqueles moradores da periferia, em áreas carentes, sem infraestrutura de saúde, saneamento, transporte, segurança, habitação, etc. não possuem motivos para considerarem-se felizes.
Ideologicamente, alguns pensadores vinculam a felicidade a aspectos tais como pertencer ou não a determinadas classes sociais, viver ou não em determinados sistemas econômicos, etc. O filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) defendeu o estabelecimento de uma sociedade igualitária, sem classes, como elemento fundamental para se atingir a felicidade humana. Adam Smith (1723-1790) achava que a iniciativa privada e a livre concorrência, eram a base para a riqueza das nações e a felicidade de seus habitantes. J. M. Keynes (1883-1946) propunha uma política intervencionista do Estado, através de medidas fiscais e monetárias, para reduzir os efeitos dos Ciclos Econômicos que, em épocas de depressão, deixavam as populações empobrecidas e infelizes.
Constatamos, assim, que a felicidade depende de fatores internos e externos ao indivíduo. Muitos são felizes na total carência e na adversidade, dependendo apenas de como encarem a Metafísica da vida e da morte. Outros tantos são infelizes na total abundância e na ventura, em razão de suas convicções Metafísicas relativas, também, a vida e a morte. Vê-se, portanto, que a saciedade relativa aos desejos depende, apenas, do fato de o indivíduo não os desejar. Para tanto, seriam necessárias uma elevada maturidade e uma acentuada evolução espiritual.
Aqueles seres mais preocupados com o fato de ter (materialistas), normalmente, são mais infelizes que os preocupados com o fato de ser (espiritualistas), já que os primeiros sentem mais as perdas materiais que os segundos. Contraditoriamente, aqueles indivíduos mais ignorantes (mais pobres de espírito, menos esclarecidos ou mais inocentes), que tendem a contentar-se com o pouco que sabem por desconhecerem quase tudo, são incapazes de uma avaliação do contexto geral da vida e, neste particular, se consideram relativamente felizes em suas existências de pouco saber.
Concluindo, a condição de Saciedade é algo que pode ser alcançada apenas biologicamente; posto que está vinculada a necessidades orgânicas dos seres humanos e a biologia da Natureza, desde o surgimento do homem na superfície do planeta, já providenciou mecanismos que permitam atingi-la.
Já com os desejos, que não representam necessidades humanas, por se tratarem de condições não fundamentais para a manutenção da vida, estando afetos a fatores psicológicos, emocionais e intelectivos, a saciedade não ocorre normalmente, pois para que tal se desse seria necessário a abolição destes próprios desejos pelo indivíduo.
A saciedade, neste caso, poderia ocorrer, porém, apenas, em algumas pessoas mais evoluídas e poderia ser entendida como a condição em que, reconhecida pelo indivíduo a não necessidade do desejo em virtude do seu amadurecimento intelectual ou da sua evolução espiritual, este não voltaria a sentir novamente a necessidade daquele desejo.
Como já mencionado anteriormente, a saciedade dos desejos ocorre com frequência entre pessoas religiosas, pouco ligadas nas coisas materiais e profundamente espiritualizadas.
_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro fundador da Academia Brasileira de Defesa – ABD e membro Titular do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos – CEBRES.
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