142. Uma viagem na barca Niterói - Rio de Janeiro**
Jober Rocha*
Naquela manhã de sol eu havia saído cedo de casa, para tratar de um assunto no Departamento de Trânsito da Cidade do Rio de Janeiro, assunto este referente a um antigo veículo de minha propriedade que, já tendo sido vendido há mais de um ano, ainda constava naquele órgão como me pertencendo. Em decorrência, todas as multas de trânsito que o novo proprietário ganhava, vinham em meu nome e retiravam pontos da minha permissão para dirigir veículos automotores.
Como sou residente em Niterói, do outro lado da Baia da Guanabara, me dirigi à Estação das Barcas, no centro da cidade, localizada bem defronte da enorme estátua do Cacique Arariboia (figura histórica do chefe indígena da tribo dos índios Temiminós, que ajudou os portugueses na expulsão dos franceses do Rio de Janeiro), na praça que leva o seu nome.
Paguei o bilhete e passei na roleta, penetrando em um vasto salão onde os passageiros se acumulavam; cada um consultando o seu I-phone com os dedos ou falando ao celular, aguardando à hora do embarque. Na minha frente um homem de meia idade com o celular ao ouvido perguntava alto: - Você tem cabo coaxial? Sim, eu queria uns duzentos metros de cabo, para entrega imediata. Você tem? Fale mais alto!
Ao meu lado ouvi um jovem perguntar baixinho em seu aparelho: - Vamos sair hoje à noite? O que é que você disse? O que é que tem o seu marido? Fale mais alto que não estou ouvindo!
Atrás uma jovem questionava: - O que é que você vai fazer para o almoço? Salada com o que? Fale de novo que aqui está muito barulho!
Um senhor próximo perguntava: - E aí, doutor advogado, como foi de audiência? O juiz deu sentença? Fui condenado? Não estou ouvindo nada, fale mais alto!
Fui surpreendido por um berro dado por uma jovem ao telefone: - Grávida, eu? Mas eu sou virgem! Leia esse resultado outra vez, doutora, devagarzinho. Fale mais alto e devagar, que não estou entendendo nada com este ruído todo!
Uma jovem com uniforme colegial dizia: - Zero? Mas zero vírgula zero ou vírgula alguma coisa? Poxa, aquela professora não considerou nada na minha redação? E no resto da prova, qual foi a minha nota? Fale mais alto, não entendi!
Percebi que algumas outras pessoas, por perto, da mesma forma como eu fazia, também prestavam atenção aos diálogos que estavam sendo travados através dos telefones celulares daqueles passageiros. Vi que muitos companheiros de viagem se interessavam por aqueles assuntos alheios, comentados em voz alta e despudoradamente pelos participantes. Eu, felizmente, não era um caso isolado que demandasse ajuda psiquiátrica.
Repentinamente, as pessoas a minha frente começaram a caminhar, como um rebanho em direção ao matadouro. A Barca, vinda do Rio de Janeiro, já havia atracado, e os seus passageiros todos desembarcado. Aqueles que estavam parados dentro da estação iniciaram, então, a caminhada em direção a entrada, pela proa, da embarcação que partiria de volta para o Rio de Janeiro.
Com apenas dois ouvidos atentos, eu tentava captar todas as respostas das ligações telefônicas, participando, sem ser diretamente convidado, daqueles problemas alheios. Infelizmente, perdi de vista todos os passageiros meus vizinhos, sem saber as respostas que teriam recebido de seus interlocutores. A loja teria os duzentos metros de fio? A mulher casada sairia com o jovem naquela noite? O que a jovem comeria no almoço? A outra jovem estava mesmo grávida? A estudante, embora com nota zero na redação, teria se dado bem no restante da prova?
Certamente, tudo aquilo eu jamais ficaria sabendo para infelicidade minha, viciado que eu sou em bisbilhotar a vida alheia. Com exceção do jovem que marcava um encontro com a mulher casada (o único que falava baixo, quase sussurrando), os demais pareciam não se importar em partilhar todas as suas conversas com os demais passageiros.
Alguns daqueles ao telefone (para usar um jargão científico), despiam-se do Superego e deixavam o ID vir à tona, permitindo que o público contemplasse os seus inconscientes totalmente nus. Constatei que, ademais das pessoas que também sentiam prazer de mostrar seus corpos publicamente, existiam outros, novos personagens frutos da modernidade, que sentiam orgasmos ao ter as suas conversas telefônicas partilhadas com os vizinhos de transportes coletivos. Talvez, alguns daqueles que falavam ao celular, contando vantagem publicamente, estivessem com o aparelho totalmente desligado e falando, apenas, consigo mesmo, em ímpetos incontroláveis de vaidade e de exibicionismo, para um público ávido por inteirar-se da vida alheia.
Pude perceber, naquela ocasião, que além dos antigos ‘voyeurs’ que gostavam de espionar casais fazendo sexo e pessoas nuas, existia, atualmente, uma nova classe de extravagantes, a dos ‘écouteurs’, que sentia prazer em ouvir conversas telefônicas alheias, conversas estas em que muitos dos protagonistas também se desnudavam, só que, neste caso, psicologicamente.
Durante a caminhada em direção à barca, procurei apertar o passo, para tentar informar-me de alguns daqueles desfechos, mas eram tantas as pessoas embarcando que perdi de vista os meus vizinhos de sala de espera. Não cheguei a me preocupar tanto, naquela ocasião, com a perda do contato visual e auditivo com os meus alvos; afinal, pensei com os meus botões: - Em qualquer lugar da embarcação em que eu me posicione, sem dúvida alguma, haverá novas conversas ao telefone, para matar a minha ânsia por desfechos lacrimejantes, trágicos e inusitados.
Escolhi o melhor lugar, bem no meio de uma fila de poltronas. Ali eu teria vizinhos em ambos os lados, na frente e atrás. Com certeza, me inteiraria de inúmeros episódios ocorridos com gente de raças, sexos, religiões, classes sociais e cores diferentes, em uma amostragem que faria inveja aos institutos de pesquisa de opinião e de marketing.
Ao meu lado direito sentou-se um casal de turistas alemães. Ao lado esquerdo uma menina, de aproximadamente seis anos, acompanhada da mãe. Tanto na frente quanto atrás, por infelicidade, os passageiros pareciam ser de nível sócio-cultural mais elevado que a maioria, pois não portavam telefones celulares...
A menina pediu o telefone da mãe emprestado e, quando eu imaginei que ligaria para algum colega do colégio, para falar mal dos amiguinhos e da professora, começou a jogar um joguinho eletrônico. O casal de alemães utilizou o celular por diversas vezes, mas, infelizmente, eu nada consegui entender daquilo que falavam. O assunto deveria ser muito interessante, pois o homem esbravejou, por diversas vezes, proferindo palavras em alemão que me soavam como ofensas ou palavrões.
Sem nada para ouvir ali sentado, resolvi levantar-me e caminhar para a proa da embarcação, onde já se amontoavam pessoas afoitas preparando-se para um rápido desembarque, tão logo a barca atracasse no cais da Praça XV. Fiz questão de situar-me bem no meio daquelas pessoas. Muitos deles com seus telefones colados ao ouvido. Algumas mensagens começaram a chegar até mim, para meu deleite:
- E aí, a sua mãe deixou você ir ao motel comigo? – perguntou um jovem cheio de espinhas.
- Conseguiu a munição de revolver que te pedi? – indagava um tipo mal encarado.
- O fiscal disse que por menos de trinta por cento do valor, ele não libera a mercadoria apreendida na alfândega. Vai querer ou não? – questionou um tipo de terno e gravata com uma maleta de couro preta nas mãos.
- Só se for com camisinha! – dizia uma jovem, cheia de tatuagens nos braços.
Eu estava em êxtase, com tantos assuntos interessantes e todos à minha disposição. Repentinamente, o ruído das turbinas de um avião a jato dominou o ambiente. A barca estava passando em frente da pista de pouso do Aeroporto Santos-Dumont, onde aeronaves pousavam e decolavam a todo instante. Mais uma vez fiquei sem saber se a mãe deixara a filha ir ao motel, se as munições chegaram, se o indivíduo tinha concordado em pagar os trinta por cento pedidos pelo fiscal da alfândega e se o interlocutor da jovem aceitara o uso da camisinha.
Quase chegando ao cais da Praça XV, a embarcação começou a apitar, avisando a algumas traineiras de pesca, que por ali pescavam, para que saíssem da frente, pois a prioridade era do veículo maior. Não sei por que razão, mas os telefones por perto de mim foram todos desligados.
Sem mais nada para fazer, fiquei olhando para algumas outras embarcações de transporte, cheias de passageiros, que passavam no rumo de Niterói e da Ilha do Governador, imaginando quantas conversas de celulares, mantidas por passageiros e tripulantes daquelas embarcações, eu não estaria perdendo.
Quando dei por mim, a barca estava atracando e os passageiros desembarcando. Ainda procurei captar algum sinal de alegria ou de tristeza em uns poucos caminhantes com os seus telefones nas mãos, mas nada pude perceber que denotasse alguma conversa boa ou má que pudessem ter mantido, em seus telefones, durante a travessia da baia. Ao caminhar rumo à sede do DETRAN, eu meditava:
_ Quem sabe na lancha em que retornaria para Niterói eu não seria mais feliz? Quem sabe não conseguiria desfrutar de alguma conversa que tivesse início, meio e fim?
_ Talvez, tendo um pouco de sorte, eu conseguisse inteirar-me de algum crime passional, de um roubo ou desfalque em uma grande empresa, de uma traição conjugal, de uma concorrência pública fraudada ou de um grave segredo de confessionário...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Texto publicado na Revista APA, ano II, Edição 04, set/out/nov/dez 2016. APA/BNDES. Rio de Janeiro, RJ.
Texto também publicado na Revista do Clube Militar nº461, ago/set/out 2016, texto 36. Rio de Janeiro, RJ
Texto também publicado na Revista do Clube Militar nº461, ago/set/out 2016, texto 36. Rio de Janeiro, RJ