139. Será a Justiça Divina apenas mais uma falácia?
Jober Rocha*
A palavra falácia, segundo os dicionários, deriva do verbo latino fallere, que significa enganar. Trata-se a falácia, portanto, de um raciocínio errado com a aparência de verdadeiro. Segundo os critérios da lógica e, também, da retórica, uma falácia consistiria em um argumento logicamente inconsistente, sem fundamento, inválido ou falho, na tentativa de provar de forma eficaz e convincente o que alega. Argumentos que se destinam à persuasão, algumas vezes, podem parecer convincentes para grande parte do público, apesar de conterem falácias, mas não deixam de ser falsos em razão disso. Este é justamente o caso do questionamento que dá título ao presente texto e que denominamos de Justiça Divina. Reconhecer falácias não é coisa fácil; já que, os argumentos falaciosos costumam ter validade emocional, íntima e psicológica, ainda que não lógica.
As falácias podem ser cometidas intencionalmente ou não. No primeiro caso denominam-se sofismas e no segundo paralogismos. Evidentemente, a presença de uma falácia em um texto não o invalida totalmente, mas apenas o argumento no qual ela ocorreu. Algumas vezes é fácil reconhecê-la; outras, dificílima. A lista de falácias, por categoria, é enorme: da ambiguidade; do apelo a motivos; de erros de categoria e de regras gerais; causais; de explicação; erros de definição; da dispersão; indutivas; argumentum ad hominem; non sequitur; etc.
Para se discorrer sobre a Justiça Divina, por sua vez, costuma-se, previamente, fazer uma escolha sobre a Natureza Humana: seria ela Determinista (isto é, todos os acontecimentos que lhe ocorrem são causados por fatos anteriores) ou nela existiria o Livre-arbítrio (ou seja, o poder que cada indivíduo, supostamente, teria de escolher livremente suas ações ou os caminhos que deseja seguir)? Esta última característica é preconizada por diversas religiões, como, por exemplo, o cristianismo, o espiritismo, o budismo, etc., como a indicar que o ser humano dispõe do poder de escolher, para sua existência, o caminho certo ou o caminho errado, por sua livre e espontânea vontade.
Sobre estas duas possibilidades muitos filósofos, religiosos e homens de Ciência já escreveram milhares de páginas, ao longo da História Humana. Um breve resumo da matéria poderia destacar cinco grandes correntes:
1. Determinismo Mecanicista e Teleológico: Rejeita a ideia de que os homens possuem livre-arbítrio,
2. Libertarísmo: Aceita que os indivíduos possuem livre-arbítrio pleno,
3. Indeterminísmo: Aceita que os indivíduos possuem livre-arbítrio e que as ações que praticam são efeitos sem causas,
4. Compatibilísmo: Aceita que o livre-arbítrio existe mesmo em um universo sem incerteza metafísica; isto é, seria um livre-arbítrio que respeitaria as ações ou pressões internas e externas,
5. Incompatibilísmo: Entende que não há maneira de reconciliar a crença em um universo determinístico com um livre-arbítrio verdadeiro.
Ademais, alguns dos principais filósofos assim expressaram seus pontos de vista sobre o assunto, que não é matéria pacífica no ambiente filosófico e científico:
Spinoza: O filósofo Spinoza afirmou em seu livro ‘Ética’ que “Não há na mente vontade livre ou absoluta, mas a mente é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que é determinada, por sua vez, por outra causa e essa por outra, e assim sucessivamente até o infinito. Os homens se consideram livres porque estão cônscios das suas volições e desejos, mas são ignorantes das causas pelas quais são conduzidos a querer e desejar.”.
Voltaire: Voltaire em ‘O Filosofo Ignorante’ afirma: “Nada é sem causa. Um efeito sem causa é apenas uma palavra absurda. Todas as vezes que quero, isto só pode ocorrer em virtude do meu juízo bom ou mau; este juízo é necessário, portanto minha vontade também o é. Com efeito, seria muito singular que toda a Natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas, e que houvesse um animalzinho de cinco pés de altura que, menosprezando tais leis, pudesse agir sempre como lhe agradasse, ao sabor do seu capricho. Agiria ao acaso e sabe-se que o acaso nada é; pois, Inventamos esta palavra para exprimir o efeito, conhecido, de toda causa desconhecida. Não há intermediário entre a necessidade e o acaso, e sabeis que não há acaso; portanto, tudo o que ocorre é necessário.”.
Immanuel Kant: Kant em ‘Critica da Razão Prática’ afirma que a religião não pode ser baseada na ciência nem na teologia, mas sim na moral. “Temos de encontrar uma ética universal e necessária; princípios ‘a priori’ de moral, tão absolutos e certos quanto a matemática. Temos de mostrar que a razão pura pode ser prática; isto é, pode, por si só, determinar a vontade, independentemente de qualquer coisa empírica, que o senso moral é inato, e não derivado de experiência. O imperativo moral de que precisamos, como base da religião, deve ser um imperativo absoluto, categórico.”
“A mais impressionante realidade em toda a nossa experiência é, precisamente, o nosso senso moral, nosso sentimento inevitável, diante da tentação, de que isto ou aquilo está errado. Podemos ceder; mas, apesar disto, o sentimento lá está.”( grifo nosso).
“E uma boa ação é boa não porque traz bons resultados, ou porque é sabia, mas porque é feita em obediência a esse senso íntimo do dever, essa lei moral que não vem de nossa experiência pessoal, mas legisla imperiosamente e ‘a priori’ para todo o nosso comportamento, passado, presente e futuro.”(grifo nosso).
Hegel: Hegel desenvolveu uma velha ideia, prenunciada por Empédocles e corporificada por Aristóteles, que é a do movimento dialético. “O movimento de evolução é um continuo desenvolvimento de oposições, e a fusão e reconciliação destas. Não só os pensamentos se desenvolvem e evoluem segundo esse movimento dialético, mas também as coisas. Tese, antítese e síntese constituem a fórmula e o segredo de todo o desenvolvimento e de toda a realidade.”.
Schopenhauer: Para Schopenhauer “Cada um acredita de si mesmo ‘a priori’ que é perfeitamente livre, mesmo em suas ações individuais, e pensa que a cada momento pode começar outra maneira de viver. ‘A posteriori’, entretanto, descobre para seu espanto, através da experiência, que não é livre, mas sujeito a necessidade (grifo nosso), que apesar de todas as suas resoluções e reflexões ele não muda sua conduta e que, do inicio ao fim da vida, ele deve conduzir o mesmo caráter, o qual ele mesmo condenou.”.
Hobbes afirma que “O livre-arbítrio é um poder definido pela vontade e, portanto, não é livre nem não livre. Seria, assim, um erro atribuir liberdade à vontade.”.
Locke, em seu ‘Ensaio acerca do Entendimento Humano’, afirma que “A questão de se a vontade humana é livre ou não, é imprópria. A liberdade, que é apenas um poder, pertence apenas aos agentes e não pode ser um atributo ou modificação da vontade, a qual também é apenas um poder.”.
Isaiah Berlin diz que “Para uma escolha ser livre, o agente deve ter sido capaz de agir de outra maneira.” Este princípio, mais tarde denominado de principio das Possibilidades Alternativas, é considerado por seus defensores como uma condição necessária para a liberdade.
Nietzsche, em seu “Porque Sou um Destino” afirma que “A religião inventou a noção do pecado juntamente com o seu instrumento de tortura, o livre-arbítrio, para confundir os instintos, para fazer da desconfiança frente aos instintos uma segunda natureza!”
Daniel Dennet, um compatibilísta, apresenta o seu argumento para uma ‘Teoria Compatibilista do Livre-Arbítrio’ da seguinte maneira: “Se os indivíduos não considerarem a existência de Deus, através do ‘Caos’ e da pseudo-aleatoriedade ou aleatoriedade quântica, o futuro não está definido para os seres finitos. Visto que os indivíduos teriam a capacidade de agir diferentemente do que se espera, o livre-arbítrio existiria.”
A Ciência também tem efetuado inúmeras tentativas de responder a questão do livre-arbítrio através de pesquisas científicas.
O pensamento científico, de uma maneira geral, vê o universo de maneira determinística e alguns pensadores científicos creem que para predizer o futuro é preciso, simplesmente, dispor de informações sobre o passado e o presente. A crença atual, entretanto, consiste em uma mescla de teorias determinísticas e probabilísticas.
Albert Einstein, determinista, acreditava na Teoria da Variável Oculta, isto é, de que no âmago das probabilidades quânticas existiriam variáveis pré-determinadas.
Os Incompatibilistas alegam que a hereditariedade e o ambiente configurariam uma ‘coerção irresistível’, e todas as nossas ações seriam controladas, portanto, por forças exteriores a nós mesmos.
Voltando a ideia de falácia na chamada Justiça Divina, constata-se que foi através da interpretação religiosa da Bíblia, por Agostinho de Hipo (Santo Agostinho), que surgiu e se firmou, entre os pensadores cristãos, a ideia do livre-arbítrio que veio, por fim, ensejar o surgimento da noção do pecado, mediante uma transvaloração dos valores, até então, existentes.
Segundo o filósofo Friedrich Nietzsche, a existência do pecado constitui a base de todo o poder exercido pelo sacerdote, que têm a autoridade de perdoá-lo mediante a aplicação de alguma penitência, por ele mesmo estabelecida.
Vê-se que, dependendo da forma como a Natureza Humana é considerada, a chamada Justiça Divina, segundo alguns que nela acreditam, poderia ocorrer de forma pré ou de forma pós encarnação. Pré se, antecipadamente a encarnação, fosse acertado, de comum acordo, entre o espírito e a divindade, o destino daquele na existência que se iniciaria. Pós se, ainda, de comum acordo, o espírito possuísse a faculdade de escolher e de traçar o seu próprio destino, tão logo encarnado, sem a necessidade de consulta prévia, anterior ou posterior, à divindade. Algumas religiões pensam da primeira forma e outras da segunda.
Outro aspecto relevante, conhecido como Teodicéia (ramo da Teologia que trata da coexistência de um Deus todo-poderoso, de bondade infinita, com o mal; isto é, a resposta para a pergunta: por que Deus permite o mal?), serviu para atiçar mais lenha nesta já alta fogueira.
Lembremo-nos, todavia, que todas as considerações até aqui apresentadas são, exclusivamente, criações, humanas; ou seja, trata-se, tão somente, de seres humanos tentando adivinhar como pensaria o Criador de Todas as Coisas e quais seriam as Suas Razões para aquilo que, supostamente, Ele pretende ou faz com as Suas criaturas.
A Teodicéia procura, assim, mostrar que ainda é razoável acreditar em Deus, apesar das evidências do mal no mundo, e tenta oferecer uma estrutura para explicar por que o mal existe; evidentemente, fazendo uso de falácias. A Teodiceia é, portanto, baseada em uma teologia natural que tenta provar a existência de Deus e procura demonstrar que esta existência permanece provável, mesmo depois que o problema do mal é colocado; dando uma justificativa, quase sempre falaciosa, para Deus permitir o mal de acontecer; posto que, por detrás do suposto mal, encontrar-se-ia a mais pura Justiça Divina. Os autores religiosos fazem uso, para tanto, com relativa freqüência, de falácias em suas teses, visando convencer o público leitor de que existe, por detrás de todos os males, uma justiça promovida pelo Criador; em que pese toda a dor, toda a magoa, todo o sofrimento, toda a desigualdade e toda a comprovada injustiça, vivenciada, em todos os momentos, pelos seres humanos encarnados. Acresce, ainda, segundo afirmam muitos pensadores religiosos, que o Criador deixar-se-ia influenciar por pedidos de suas criaturas, interferindo nestes problemas de ordem humana, seja para corrigi-los, para modificá-los ou para eliminá-los. Por detrás disto tudo estaria pairando a imagem da Justiça Divina, que, conforme ditado popular, tarda, mas não falha. Reconheço que é consolador para os seres humanos imaginarem que alguém vela por eles e que este alguém, como um pai, está pronto a enxugar-lhes o pranto e a corrigir o que se lhes afigura como alguma injustiça humana, eventualmente, contra eles praticada. É consolador, mas não significa que isto seja verdadeiro.
Mudando um pouco de assunto, o primeiro filósofo a discorrer sobre a Arte e a Ciência de “Como Vencer um debate sem precisar ter razão”, fazendo uso de sofismas, creio que foi Arthur Schopenhauer em sua obra com o próprio título entre aspas, já citado.
Recentemente, ademais, uma lista com 24 tipos diferentes de argumentos falaciosos foi elaborada por Jesse Richardson, Andy Smith e Som Meaden, responsáveis pelo site Thou Shalt Not Commit Logical Fallacies. Os argumentos listados pelos autores, a título de exemplo, são os seguintes:
1. Apresentar o argumento da outra pessoa de forma errônea, como forma de atacá-lo mais facilmente. Ao exagerar, deturpar ou inventar o argumento da outra pessoa é mais fácil apresentar a nossa própria posição como sendo razoável ou válida. Todavia, este tipo de desonestidade não só mina o discurso racional, como prejudica a nossa própria posição, já que põe em causa a nossa credibilidade. Se estivermos dispostos a deturpar o argumento do nosso oponente, de forma negativa, também estaremos dispostos a exagerar a nossa própria posição, como positiva. Exemplo: O João diz que, no nosso país, deveríamos gastar mais dinheiro na Educação e Ciência, ao que o José responde: mas então tu odeias tanto o teu próprio país que queres deixá-lo sem Sistema Nacional de Saúde?
2. Assumir que há uma relação real ou perceptível entre duas coisas significa que uma é a causa da outra. Um erro deste tipo é a falácia cum hoc ergo propter hoc (com isto, portanto por causa disto), em que assumimos que, porque duas coisas estão acontecendo ao mesmo tempo, então uma é a causa da outra. O erro está em ignorar a possibilidade de que pode haver uma causa comum a ambos os acontecimentos ou, como no exemplo abaixo, que as duas coisas em questão não têm qualquer relação causal entre elas e a sua relação aparente é apenas uma coincidência. Outra variação comum é a falácia post hoc ergo propter hoc (depois disto, portanto por causa disto), em que assumimos uma relação causal porque um acontecimento se deu depois de outro e, portanto, o segundo deve ter sido causado pelo primeiro. Exemplo: Apontando para um gráfico, o Francisco mostra que as temperaturas têm aumentado nos últimos séculos, enquanto que, ao mesmo tempo, o número de piratas tem diminuído. Logo, a falta de piratas é que tem aquecido o mundo e o aquecimento global, da forma como dizem que ocorre, é uma fraude.
3. Tentativa de manipulação através de uma resposta emocional, em vez de um argumento verdadeiramente convincente. Os apelos à emoção incluem apelos ao medo, inveja, ódio, piedade, orgulho, entre outros. É importante assinalar que, por vezes, um argumento logicamente coerente pode inspirar emoções e ter um aspecto emocional, mas o problema e a falácia ocorrem quando a emoção é usada em vez de um argumento lógico ou como forma de ocultar o fato de que não existe nenhuma razão racional convincente para a posição que estamos a tomar. Todos, com exceção dos sociopatas, somos afetados pela emoção e, portanto, os apelos à emoção são uma táctica argumentativa comum e efetiva. Mas, em última análise, têm falhas, são desonestos e tendem a fazer com que o nosso oponente se emocione. Exemplo: O Luís não queria comer miolos com brócolis, mas o seu pai disse-lhe para pensar nas pobres crianças famintas de África que não tinham qualquer comida para comer.
4. Assumir que, porque um argumento está mal construído ou uma falácia foi cometida, então o argumento está, necessariamente, errado. É muito frustrante ver alguém a debater ou argumentar mal uma posição correta. A maior parte das vezes, um debate ganha-se, não porque o vencedor tem razão, mas porque ele é melhor a debater que o seu opositor. Se formos honestos e racionais, temos que ter em mente que, só porque alguém cometeu um erro na sua argumentação, não significa, necessariamente, que o argumento, em si, esteja errado.
Exemplo: Ao reconhecer que a Maria cometeu uma falácia ao argumentar que deveremos comer comida saudável porque está na moda, a Alice resolveu comer um duplo-hamburguer com queijo e bacon todos os dias.
5. Quando se constrói um argumento que dá a entender que caso se permita que A aconteça, então Z também vai eventualmente acontecer, pelo que A não deveria acontecer. O problema com este raciocínio é que evita enfrentar o tema e, em vez disso, desvia a atenção para uma hipótese extrema. Como não apresentamos nenhuma prova de que tal hipótese extrema vai de fato acontecer, esta falácia é semelhante à falácia do apelo à emoção, já que desencadeia o medo. Na verdade, o argumento está injustamente marcado por conjecturas não substanciadas.
Exemplo: O Joaquim afirma que caso se permita o casamento a pessoas do mesmo sexo, então depois vamos acabar por permitir o casamento entre progenitores e filhos, entre pessoas e chimpanzés ou entre pessoas e automóveis.
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6. Atacar o caráter do oponente ou alguma característica pessoal, em vez de enfrentar o seu argumento. Os ataques ad hominem podem tomar a forma de um ataque aberto a alguém ou, de um modo mais sutil, levantar dúvidas sobre o seu caráter ou atributos pessoais. O resultado desejado com um ataque ad hominem é minar o oponente, sem realmente enfrentar o seu argumento ou apresentar um argumento próprio convincente. Exemplo: Depois da Xana fazer uma apresentação convincente de porque é que os impostos deveriam ser mais justos e equitativos, o Simão pergunta à audiência se deveríamos ou não acreditar numa mulher que não é casada, que até já foi presa uma vez e que tem um cheiro esquisito.
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7. Evitar enfrentar uma crítica virando-a contra o acusador – responder a uma crítica com uma crítica. Literalmente se traduz como “tu também”. Esta falácia é frequentemente usada como uma eficaz manobra diversionista (red herring) porque retira o foco de atenção do acusado e desvia-o de novo para o acusador. A implicação é a seguinte: se o nosso oponente também faz aquilo de que nos está acusando, então, é um hipócrita. Independentemente de isto ser ou não verdade, o problema reside no fato de esta ser efetivamente uma tática de fuga ao reconhecimento e de resposta à crítica. Ao virar a crítica contra o acusador, o acusado não precisa responder à acusação. Exemplo: A Natália nota que a Ana cometeu uma falácia lógica, mas, em vez de responder ao seu argumento, Ana acusa a Natália de também ter cometido uma falácia lógica num momento anterior da sua conversa.
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8. Porque algo é difícil de entender ou não se sabe como funciona, então é provavelmente falso. Assuntos complexos, como a evolução biológica por seleção natural, precisam de certo grau de compreensão antes que os possamos abordar devidamente. Esta falácia é geralmente usada em substituição desse conhecimento. Exemplo: O Joaquim desenhou um peixe e um ser humano e, com um ar depreciativo, perguntou ao Ricardo se ele realmente achava que as pessoas eram idiotas o suficiente para achar que o peixe se tinha transformado num humano só por acaso.
9. Modificar os objetivos ou abrir uma exceção quando a afirmação feita se demonstra falsa. Os seres humanos são criaturas curiosas e têm uma aversão especial a estarem errados. Em vez de percebermos os benefícios de sermos capazes de mudar o nosso entendimento através de uma melhor compreensão, muitos de nós inventam formas de se agarrarem a crenças antigas. Uma das formas mais comuns de o fazermos é racionalizar, à posteriori, o motivo pelo qual o que pensávamos ser verdadeiro deve permanecer verdadeiro. É geralmente fácil encontrar a razão para uma crença que se adapta a nós e é necessária integridade e uma genuína honestidade para que examinemos as nossas próprias crenças e motivações sem cair na armadilha de justificar a nossa forma de nos vermos e de vermos a nós próprios e o mundo que nos rodeia.
Exemplo: Mestre Supimpa dizia-se vidente, mas quando as suas “capacidades” eram testadas em condições científicas, magicamente desapareciam. Segundo Supimpa, a explicação para este fenômeno é que era necessário ter-se fé nele, para que as suas capacidades tivessem efeito.
10. Fazer uma pergunta que tem uma assunção incluída, de forma que não pode ser respondida sem aparentar culpa. As falácias da pergunta complexa são particularmente efetivas no desvio de debates racionais devido à sua natureza “inflamatória”: o receptor da pergunta é levado a defender-se e pode parecer agitado ou “à defensiva”. Não só esta falácia é também um apelo à emoção, como traiçoeiramente enquadra o argumento de uma forma enganadora, como uma espécie de ‘falácia do espantalho’ preventiva.
Exemplo: A Graça e a Margarida estão interessadas no Bruno. Um dia, estando o Bruno a ouvir, a Graça pergunta com um tom inquisitivo: “Margarida, estás tendo problemas com drogas?”.
11. Dizer que o ônus da prova não compete à pessoa que fez a afirmação, mas qualquer outra pessoa que a queira negar. O ônus da prova recai em quem faz uma afirmação e não em quem a quer falsificar. A incapacidade, ou a falta de vontade, para falsificar uma afirmação não a torna válida, nem lhe dá qualquer credibilidade. No entanto, é importante notar que nunca podemos estar certos de algo e, portanto, temos que avaliar todas as afirmações com base na evidência existente. Descartar algo apenas porque ainda não foi provado, é também um raciocínio falacioso. Exemplo: O Bernardo declara que há um bule a orbitar o Sol, entre a Terra e Marte. Como ninguém pode provar que ele está errado, a sua afirmação é, portanto, válida.
12. Usar um duplo-sentido ou linguagem ambígua para induzir em erro ou deturpar a verdade. Os políticos são muitas vezes peritos em usar a ambiguidade para induzir em erro e mais tarde, caso sejam questionados, explicam como, tecnicamente, não estavam a mentir. A razão pela qual este tipo de estratégia é uma falácia é que se trata intrinsecamente de uma deturpação da verdade. Exemplo: A Margarida promete entregar o projeto até ao fim do mês ao diretor. Quando o mês chega ao fim, novo mês começa e o diretor pergunta pela tarefa por cumprir. A Margarida explica que não está atrasada, porque o prometido é que terminaria o projeto até ao final do mês… seguinte.
13. Achar que há alguma tendência por trás de fenômenos estatisticamente independentes. Diz-se que esta falácia, em que muitos acreditam, pode ter dado origem a um cidade no meio do deserto de Nevada, nos Estados Unidos da América. Apesar da probabilidade da “mudança na sorte” ser baixa, cada nova jogada na roleta é completamente independente da anterior. Logo, embora possa haver uma pequena probabilidade de atirar a moeda ao ar e sair “coroa” 20 vezes seguidas, a probabilidade de sair “coroa”, em cada uma dessas jogadas, continua a ser 50/50 e não é influenciada pela tentativa anterior.
Exemplo: Em seis jogadas de roleta, saiu sempre vermelho, portanto o Rui estava quase seguro que depois sairia preto. Como, ao pensar desta forma, estava a sofrer de uma espécie de “seleção natural econômica”, rapidamente ficou sem as suas poupanças.
14. Como forma de validação, apelar à popularidade de uma afirmação ou ao fato de muitas pessoas praticarem determinado ato. A falha deste argumento é que a popularidade de uma ideia não tem qualquer relevância para a sua validade. Se tivesse, então a Terra teria sido plana durante a maior parte da história, para se ajustar à crença popular. Explicamos melhor esta e a falácia do apelo à antiguidade Exemplo: Samuel, bêbado, apontou um dedo ao Fernando e pediu-lhe para explicar porque é que tanta gente acreditava em fantasmas, se eram só uma velha superstição. O Fernando, pelo seu lado, já tinha tomada umas cervejas a mais e caiu da cadeira.
15. Usar, como argumento, a posição ou a opinião de uma figura ou de uma instituição de autoridade. Em relação a esta falácia, é importante notar que as autoridades em determinados campos têm argumentos válidos e que não deveríamos desprezar a experiência e sabedoria de outras pessoas. No entanto, para formular um argumento, uma pessoa deve defender-se com o seu próprio mérito, ou seja, há que saber por que é que a pessoa com autoridade toma uma posição em particular. Mas, claro que é possível que uma pessoa ou instituição com autoridade estejam erradas. Portanto, a autoridade dessa pessoa ou instituição não tem qualquer relevância intrínseca na verdade ou falsidade das suas afirmações. Exemplo: Como não podia defender a sua posição de que a evolução “não é real”, o Roberto alega que conhece cientistas que também questionam a evolução (e que presumivelmente não é um Primata).
16. Assumir que uma parte se aplica ao todo ou a outras partes da mesma coisa.
Por vezes, quando algo é certo para uma parte, também se aplica ao todo, mas a diferença crucial é ter evidência que demonstre que esse é o caso. Como observamos consistência nas coisas, o nosso pensamento pode tornar-se enviesado, de forma a assumirmos consistência onde ela não existe. Exemplo: O Daniel foi uma criança precoce e gostava de lógica. Ele argumentava que os átomos eram invisíveis e que ele era feito de átomos, logo, que ele também era invisível. Infelizmente, e apesar das suas habilidades de raciocínio, perdia a jogar às escondidas.
17. Fazer um apelo ao purismo como modo de descartar uma crítica relevante ou uma falha no próprio argumento. Nesta forma de raciocínio errado, a crença pessoal torna-se infalsificável porque, independentemente das provas, simplesmente alteramos os nossos parâmetros de forma a que não se apliquem a um “verdadeiro” exemplo. Este tipo de racionalização, à posteriori, é uma forma de evitarmos críticas válidas ao nosso argumento.
Exemplo: O Bill afirma que nenhum escocês verdadeiro põe açúcar no chá, ao que Charles replica que ele é escocês e gosta de pôr açúcar no chá. Furioso, como um verdadeiro escocês, o Bill grita dizendo que nenhum escocês verdadeiro adoça o chá!
18. Julgar algo como bom ou mau, tendo como base apenas a sua proveniência.
Esta falácia evita a argumentação, desviando o foco de atenção para a origem da coisa ou da pessoa. É semelhante à falácia ad hominem já que usamos a percepção negativa pré-existente para dar a entender que o argumento da outra pessoa está errado, sem realmente apresentar motivos válidos para a falta de mérito do argumento.
Exemplo: Acusado no Telejornal de corrupção, o deputado diz que deveríamos ter muito cuidado com o que aparece na televisão; porque, todos nós sabemos, a imprensa pode não ser de confiança.
19. Apresentar dois estados alternativos como sendo as únicas possibilidades quando, na verdade, existem mais. Esta tática insidiosa tem a aparência de um argumento lógico mas, se analisarmos o caso com cuidado, torna-se evidente que há mais possibilidades que a dualidade que é apresentada. O pensamento binário de “preto ou branco”, não permite contemplar às muitas variáveis, condicionantes e contextos nos quais existiriam mais que as duas possibilidades apresentadas. Enquadra o argumento de uma forma enganadora e ensombra o debate honesto e racional. Exemplo: Numa campanha para reunir apoio ao seu plano, que iria diminuir os direitos fundamentais do cidadão, o Líder Supremo advertiu o seu povo que, ou estavam do seu lado, ou estariam do lado dos inimigos do país.
20. Apresentar um argumento circular, no qual a conclusão está incluída na premissa.
Este argumento sem coerência lógica surge muitas vezes em situações nas quais assumimos algo que está muito entranhado e que, portanto, é dado como um fato. Usamos como prova, aquilo que estamos a tentar provar. A argumentação circular é má, principalmente porque não é muito boa. Exemplo: As palavras de Odin são verdadeiras e infalíveis. Sabemos isso porque assim o diz no “Grande Livro de Odin, O livro das coisas boas e verdadeiras que não devem nunca ser questionadas”.
21. Argumentar que, porque algo é natural, é, portanto válido, justificado, inevitável ou ideal. Só porque algo é natural, não significa que seja bom. Por exemplo, o assassinato é muito natural, mas a maioria de nós concordará que não é algo que se deva fazer ou que a sua “naturalidade” sirva de justificação. Exemplo: Um curandeiro chegou à aldeia oferecendo, como solução para as doenças, vários remédios naturais, como uma água muito especial. Dizia que as pessoas deveriam ter cuidado com os remédios artificiais, como os antibióticos.
(Nota: muitos antibióticos são, na realidade, de origem natural)
22. Usar uma experiência pessoal ou um exemplo isolado em vez de argumento válido ou evidência sólida. É por vezes muito mais fácil acreditarmos num testemunho pessoal em vez de tentar compreender um conjunto de dados complexo e a variação ao longo de um contínuo. As medidas quantitativas científicas são quase sempre mais rigorosas que as percepções e experiências pessoais, mas temos tendência a acreditar naquilo que é concreto e/ou com as palavras de alguém em quem confiamos, em vez da realidade estatística mais “abstrata.
Exemplo: O Paulo diz que o seu avô fumava dois maços de tabaco por dia e viveu até aos 97 anos, portanto não acredita no que lê sobre os estudos científicos com meta-análises que afirmam que há uma relação entre o tabaco e o câncer do pulmão.
23. Selecionar os dados de forma a que se ajustem ao argumento ou procurar um padrão que se ajuste à hipótese. O nome desta falácia de “falsa causa” advém do exemplo de um atirador que dispara aleatoriamente a vários celeiros e depois desenha o alvo onde há mais buracos de bala, dando a entender que é muito bom atirador. A aglomeração de dados pode dar-se naturalmente, por acaso, e não indica, necessariamente, uma relação causal.
Exemplo: Os fabricantes de Sumix afirmam que uma pesquisa indica que, dos cinco países onde é mais consumido o sumo, três são dos mais saudáveis do mundo. Logo, o Sumix é bom para a saúde.
24. Argumentar que a verdade está no compromisso, ou no meio termo.
Na maior parte dos casos, a verdade está algures entre dois extremos, mas isto pode enviesar o nosso pensamento. Por vezes, algo é simplesmente falso e o compromisso que inclui essa idéia é também falso. O meio caminho entre uma verdade e uma mentira é, também, uma mentira.
Exemplo: A Helena afirma que as vacinas causam autismo, mas o seu amigo Cláudio, que está cientificamente bem informado, diz que essa afirmação é comprovadamente falsa. Alice, amiga de ambos, procura um compromisso e diz que, se calhar, as vacinas causam autismo, mas não de todos os tipos.
Os exemplos de argumentos falaciosos são tantos, que deixarei aos leitores o trabalho de procurá-los nos textos religiosos que falem sobre Justiça Divina, de qualquer seita ou religião, onde, certamente, serão profusamente encontrados.
Em que pese acreditar na existência de um Criador, não imagino que ele realmente interfira na vida e na morte de quem quer que seja, para promover Justiça quando o espírito ainda se encontra encarnado. Imaginamos o Criador agindo segundo nossas crenças e valores; entretanto, quem somos nós, simples mortais, para tentar determinar como pensa, age e julga o Criador de todas as coisas. Quão pobre de espírito seria Este, e quão imperfeita teria sido a Sua criação, caso necessitasse de louvações, de orações, de pedidos e de oferendas para estabelecer seus desígnios e para processar seus atos em busca de uma justiça cósmica e espiritual; bem como, para interferir e mudá-los circunstancialmente, em razão de eventuais motivos supervenientes não previstos, após previamente decidido o rumo dos destinos entre espíritos e a divindade, se é de fato, realmente, assim que as coisas se passam naquela dimensão. A própria Justiça Divina consistiria em não interferir, jamais, no cenário que se desenrola ou no panorama que se descortina no mundo material.
Tenho a convicção de que todas as coisas acontecem, inexoravelmente, quando e por que têm que acontecer. Se todas as mães e todos os pais, de ambos os lados de algum conflito entre países, rezassem ao Criador pedindo por seus filhos combatentes (o que, certamente, eles sempre fizeram e ainda fazem), estes, independentemente da quantidade de orações feitas pelos progenitores, continuariam a morrer em decorrência dos tiros, das bombas e dos acidentes, como sempre ocorreu em todas as guerras. Caso contrário, seria possível uma guerra sem vítimas e sem mortes e eu nunca soube de nenhuma.
Se o Criador quisesse interferir nas contendas, por razões de Justiça Divina (ou estivesse preocupado com o destino, pré ou pós, traçado para suas criaturas), tê-lo-ia feito antes que os conflitos ou as guerras se iniciassem, impedindo-os, e não apenas por ouvir os apelos de pais e mães dos combatentes ou deles próprios. Como disse Voltaire em seu Tratado de Metafísica, de 1738, podemos imaginar quatro alternativas: ou o Criador quer e não pode (é bom, mas não tem poder), ou pode e não quer (tem poder, mas não é bom), ou não quer e não pode (não é bom e não tem poder), ou quer e pode (é bom e tem poder).
Em minha modesta opinião acredito que todas estas hipóteses, em teoria, poderiam se verificar, até mesmo concomitantemente; já que, não seriam elas mutuamente excludentes para o poder do Criador que tudo pode. Entretanto, sei que todos nós temos muito a aprender, nesta e em outras existências. Por este motivo Ele, embora podendo e, até mesmo, eventualmente, desejando, não interfere durante a existência do ser humano para modificar suas leis imutáveis em benefício de quem quer que seja; fazendo com que a propalada Justiça Divina e, da mesma forma, os chamados Milagres, nada mais se tratem do que sofismas, posto que falácias intencionais daqueles que desejam fazer o marketing da religião que abraçaram; já que, a verdadeira Justiça Cósmica e Espiritual é, inexoravelmente, conhecida, percebida, desejada e buscada por cada espírito, individualmente, e por todos eles em conjunto, ao longo de suas múltiplas encarnações, conforme mencionado por Kant e citado no início do texto com grifo nosso.
Os próprios espíritos rejeitariam, por um sentimento intrínseco e universal de justiça, a interferência divina em suas evoluções particulares. Lembremo-nos que a evolução espiritual é alguma coisa que tem que ser alcançada pelos próprios espíritos, não podendo ser outorgada por ninguém, nem mesmo pelo Criador de todas as coisas.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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