138. Sobre a indecisão no meio militar
Jober Rocha*
“É uma coisa os soldados cumprirem ordens, outra seguirem os exemplos nobres. Os primeiros têm por paga o soldo, os outros a glória.” Esta frase, cujo autor não me recordo, povoou os primeiros anos da minha vida em uma escola militar. Escrita em uma das paredes de um dos alojamentos, era constantemente lida por quantos ali transitassem. Vejam os leitores que o autor já destacava a diferença de comportamento entre os militares; ou seja, entre aqueles com iniciativa própria daqueles que apenas cumpriam ordens. Outra frase, também escrita em uma das paredes do alojamento, dizia que “Cem anos não podem apagar um momento de perda da honra”.
Após ter convivido durante cinco anos na vida militar, acabei tomando outro rumo que me levou a travar conhecimento com os fenômenos econômicos, com o comportamento dos agentes produtivos, com as Teorias Econômicas, com a Sociologia, com as Ideologias, com as Correntes Filosóficas, com os alicerces do Direito, com a Psicologia das Massas, com a Ciência Cognitiva, a Crítica Social, o Ativismo Político, etc. Formei-me em Economia, fiz o mestrado no país e cursei o doutorado na Espanha e na França. Tempos depois tive a oportunidade de retornar ao convívio militar através da realização do Curso de Administração do Transporte Marítimo, promovido pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha do Brasil, com duração de um ano. Alguns anos depois fui estagiário na Escola Superior de Guerra (vinculada ao Estado Maior das Forças Armadas), ao cursar o Curso Superior de Guerra, também, com duração de um ano.
Menciono isto tudo, apenas, para evitar que alguns leitores, militares ou não, fiquem a imaginar se aquele que escreveu o presente texto está habilitado a falar sobre algo que, ao longo da História, tem sido objeto da preocupação de estrategistas, de comandantes militares, de historiadores militares, de cientistas do comportamento humano e de combatentes. Por outro lado, já aposentado, fui, durante dez anos, permissionário em um quartel de Infantaria da minha cidade. Mais uma vez, retornei ao meio militar. Naquele quartel fiz grandes amizades e cheguei a presidir a Associação de Amigos e Veteranos, ali instalada, sendo, posteriormente, presidente do Conselho Deliberativo da associação.
Volto a destacar que tudo aquilo que até aqui relatei não visa a minha autopromoção, servindo, tão somente, para enfatizar que não falo sem conhecimento de causa ou que tento discorrer sobre algo com que não tenho intimidade. Convivi muitos anos com militares das mais variadas patentes, de soldados a oficiais generais, e creio poder fazer uma análise, embora sucinta e superficial, sobre o pensamento da grande maioria dos militares com os quais convivi, tendo a ousadia ou a temeridade de generalizar minhas conclusões.
Sem a menor pretensão de querer chegar aos pés daquilo que foi deixado à posteridade por estrategistas famosos como Sun Tsu, Maquiavelli, Liddell Hart, Clauzewitz, Schilieffen, teóricos que foram da estratégia militar, estas considerações tentam evidenciar as minhas opiniões particulares sobre um tema específico, qual seja o da iniciativa ou da falta dela no meio militar. Reconheço ser este um texto polêmico, mas a polêmica é o meu objetivo maior, visando despertar a atenção dos militares e das nossas autoridades militares para a importância do problema, levando-as a aprofundarem o assunto.
A minha intenção não é a de tecer críticas a pessoas ou a instituições, mas, tão somente, através de relatos de situações que presenciei evidenciar que existe algo de falho ou de errado impedindo ou tolhendo a iniciativa pessoal, extremamente necessária aos militares em suas atividades bélicas na defesa do Brasil, das nossas leis e da nossa ordem.
Inicialmente eu gostaria de destacar as diferenças entre as iniciativas pessoais (com as evidentes exceções de praxe) que se apresentam gritantemente distintas, em média, entre os militares das polícias militares e os das forças armadas convencionais. Os primeiros vivem, em nosso país, diuturnamente em um Teatro de Guerra real, teatro este para o qual os segundos são levados a participar, episodicamente e em situações muito específicas. A participação de nossas FFAA em combates fora do Brasil, após a WWII, ocorreu apenas, em pequena escala, na República Dominicana, em Suez e no Haiti (todas em missão de paz, pela ONU). Note-se que houve mais baixas entre os heróis anônimos das polícias militares brasileiras, no período de 1994 a 2016 (cerca de 3.000 policiais mortos em confronto), do que entre os heróis combatentes da Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial (460 praças, 13 oficiais e 08 pilotos).
O número de Policiais Militares mortos, apenas no Rio de Janeiro e no período citado, representa um percentual do efetivo empregado (da ordem de 3,59%) maior do que o mesmo percentual das baixas norte-americanas em guerras mundiais. “É 765 vezes mais fácil você ser ferido servindo na polícia do Rio de Janeiro do que estando em guerras", disse o coronel Fabio Cajueiro, que era um dos oficiais presentes na discussão travada no Fórum de Policiais Mortos da Polícia Militar do Rio de Janeiro, realizado na academia da Polícia Militar, em Sulacap, na Zona Norte do Rio, fórum aquele que visava diminuir a vitimização de policiais. Só no primeiro mês de 2017, 18 policiais foram mortos no Estado do Rio de Janeiro.
O fato de atuar, diuturnamente, em um Teatro de Guerra real (ainda que tais guerreiros, de forma errônea no meu ponto de vista, continuem sendo julgados por uma legislação cível e criminal de tempos de paz; o que é algo contraditório e deixa bem claro a fraqueza do executivo, do legislativo e do Judiciário em reconhecerem o Estado de Guerra Interna existente em muitos dos Estados da Federação, que já possuem áreas liberadas e dominadas por facções criminosas, as quais trazem o pânico e a violência às comunidades no seu entorno e à população de toda a cidade), faz com que o Policial Militar, muitas vezes atuando sozinho, em duplas ou em pequenas frações, tenha de decidir, por si mesmo, a conduta que adotará.
Como a velha frase que, muitas vezes, ouvi na aviação: “A indecisão mata o piloto!”, a indecisão do policial acabará por levá-lo a óbito. A frase que vale para o piloto vale também para o policial militar em uma viela estreita e suja de uma favela na periferia, onde ele tem que decidir, na hora e sem perguntar a ninguém, qual a iniciativa que irá adotar frente à situação que se apresenta.
Por sua vez, em um quartel das forças armadas convencionais brasileiras em “tempos de paz”, a forte hierarquia e o fato de os conscritos ou mesmo dos militares engajados, serem, em sua maioria, oriundos das classes de renda mais baixas, aliado a uma natural subserviência e timidez típicas destas classes menos favorecidas do nosso povo, faz com que raramente as praças militares tenham iniciativa própria em diversas situações. Assim, é comum sempre perguntarem aos superiores o que devem fazer e como devem proceder, temendo serem repreendidos ou punidos caso façam algo errado.
Já presenciei inúmeros episódios em que o comandante do quartel decidia quase tudo, inclusive sobre o corte da grama do campo de futebol. Todos os pequenos problemas que poderiam ser resolvidos nos escalões inferiores, eram submetidos ao comandante, sobrecarregando-o. Não que inexista delegação de funções e de atribuições, mas, na prática, elas não costumam vigorar em razão da falta de iniciativa e do temor de punições, caso a decisão tomada não tenha sido a mais correta ou a necessária para o caso específico. A mesma situação verificada entre as praças ocorre, com freqüência, entre os subalternos e os superiores. Mesmo ao chegar aos altos postos de mando, alguns, ainda, continuam consultando os seus superiores para decisões que seriam da sua própria alçada.
Extrapolando um pouco a matéria e mudando de cenário, vemos que o mesmo também ocorre quando os militares que (em conformidade com o artigo 142 da Constituição da República Federativa do Brasil: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.) possuem a missão de defender a pátria, a lei e a ordem, contemplam estas três serem diariamente vilipendiadas, desrespeitadas e desdenhadas pelas próprias elites no poder.
Como naquele quartel mencionado anteriormente, todos esperam a decisão do comandante supremo das forças armadas (do presidente ou, até mesmo, do responsável por algum dos demais poderes), para poderem agir em defesa da pátria, das leis e da ordem, esquecendo-se de que o próprio comandante supremo (presidente da república), bem como os responsáveis pela Câmara e pelo Senado federal, têm sido mencionados em depoimentos de empresários beneficiados pela delação premiada como tendo recebido, ilegalmente, recursos de caixa dois e tendo sido citados em pedidos de abertura de inquéritos no âmbito da Operação Lava-Jato conduzida pela Polícia Federal. Ademais, recentemente, o Ministro Nelson Fachin, do STF, autorizou a abertura de 76 inquéritos envolvendo 8 ministros do atual governo, 24 senadores, 39 deputados, 3 governadores e 1 ministro do TCU. E notem que estamos apenas no início das denúncias e das apurações sobre corrupção, desvio de recursos públicos e crimes de lesa pátria em nosso país. Constata-se, assim, que o Brasil já não possui mais segurança jurídica e que a máquina pública - no dizer do ministro do STF Gilmar Mendes - foi tomada por uma Cleptocracia; ou seja, um Estado governado por ladrões.
Neste contexto, as leis, os decretos e as portarias, aprovados e promulgados pelo Legislativo e pelo Executivo, atuais, careceriam de credibilidade e de legitimidade; posto que, estariam sob suspeição, em razão de terem sido elaborados e aprovados por personagens, em grande parte, réus nos processos de corrupção instaurados na Justiça.
Enquanto isto ocorre, muitos militares, mais acostumados a cumprirem ordens do que a seguirem os exemplos nobres, aguardam por uma iniciativa, partindo dos poderes constituídos, para intervirem em defesa da pátria, das leis e da ordem. Mas, o que fazer, se a origem dos nossos problemas atuais está, justamente, em muitas daquelas ‘autoridades’ responsáveis conjunturalmente pelos poderes constituídos, personagens estas as quais, ao contrário dos militares, jamais lhes interessaram a defesa da pátria, das leis e da ordem? Creio que a resposta a este questionamento poderia ser encontrada escrita nas paredes do velho alojamento daquela escola militar em que estudei, mencionadas no início deste texto; já que, a nossa situação, além de inusitada, é incompreendida pela maioria das populações das democracias ocidentais.
A instalação de uma Cleptocracia no governo é um fato inédito na maioria destes países e para nos livrarmos de uma situação destas o mecanismo eleitoral não demonstra ser suficiente; já que, o Tribunal Superior Eleitoral-TSE começa, este ano, a julgar a ação em que o PSDB pede a cassação da chapa Dilma-Temer, vencedora das eleições presidenciais de 2014, por fraude eleitoral e pelo uso de recursos originários de caixa dois, oriundos do desvio de recursos públicos em obras contratadas pelo governo com diversas empreiteiras.
O julgamento é considerado o mais importante da história do tribunal. Por outro lado, a utilização de urnas eletrônicas nas eleições (sistema implantado em nosso país), tem sido muito criticada por possibilitar fraudes, na medida em que o eleitor não recebe nenhum comprovante informando sobre a natureza do seu voto; isto é, em qual candidato ele votou e a que partido político pertencia. Somos, talvez, o único país do mundo a utilizar este sistema.
Embora muitos critiquem as intervenções militares na vida civil dos países, na atualidade e em algumas situações pontuais, elas são as únicas alternativas viáveis, para libertar as populações, de alguns deles, de uma eterna servidão à déspotas e aos seus asseclas e comparsas, travestidos de democratas, que desejam apenas perpetuar-se no poder e enriquecer ilicitamente.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.