128. O Critério de Desempate
Jober Rocha*
A votação para a função de presidente da Comissão de Ética naquele Sindicato do Crime havia sido acirrada. Candidatos de várias posições ideológicas haviam concorrido ao pleito; já que, a presidência da comissão dava ao seu detentor um poder imenso, isto é, o de influenciar a decisão dos demais integrantes, seja para absolver seja para condenar aqueles que tivessem a infelicidade de ter os seus nomes submetidos ao julgamento da dita comissão.
Não que os integrantes do colegiado fossem pessoas de moral e de comportamento ilibados; pois, naquele ambiente, a maioria possuía um passado negro de malfeitos e de violações das leis, passado este que buscavam a todo custo esconder dos amigos, dos conhecidos, de eventuais admiradores ou de críticos. Finalmente, apurados todos os votos, dois candidatos de posições ideológicas totalmente divergentes haviam obtido uma quantidade igual de sufrágios e estavam empatados. Ambos, instados pelos outros companheiros a que abrissem mão da candidatura própria, em detrimento da do seu adversário, negaram-se, peremptoriamente, àquela demonstração de benevolência, de boa fé e de espírito cívico.
Pelo regimento interno, o critério para o desempate deveria ser o da idade; ou seja, o mais idoso tinha prioridade sobre o mais novo. Ocorre que os dois haviam nascido no mesmo dia e na mesma hora, inviabilizando, assim, a aplicação do critério existente. Um segundo artifício para o desempate, também previsto no regimento, era o grau de instrução; porém, da mesma forma como ocorrera anteriormente, ambos possuíam apenas o Primeiro Grau completo, tendo concluído o curso no mesmo ano e no mesmo dia. Este critério de desempate, portanto, também não poderia ser aplicado.
A votação, como ocorria sempre naquela casa em dia de sufrágio, transformou-se, assim, em um contencioso onde todos falavam ao mesmo tempo. Alguns deles se ofendiam com injúrias proferidas à distância. Outros faziam ameaças de morte, velada ou explicitamente, aos demais componentes da comissão ou, até mesmo, partiam para agressões físicas que eram contidas por alguns seguranças atentos.
Finalmente, alguém de bom senso propôs que a disputa se fizesse através da análise e da comparação do Currículo de cada um daqueles dois candidatos mais votados. Aprovada por unanimidade a referida proposta, esta entrou logo em vigor e um relator nomeado passou, então, a discorrer em voz alta sobre a vida pregressa de ambos os concorrente, através da leitura de seus currículos. A seção objetivando a escolha do presidente da comissão, obviamente, a partir daquele momento, passou a ser secreta e aqueles que nada tinham a ver, diretamente, com a referida eleição foram obrigados a deixar o recinto, cujas portas foram em seguida trancadas.
A formação educacional, como já vista, era a mesma: Primeiro Grau completo, de ambos os competidores. A experiência profissional também era equivalente; pois os dois haviam sido ajudantes de caminhoneiro, vendedores ambulantes e frentistas de postos de gasolina.
Em determinado momento, pareceu que um deles havia passado a frente do outro: foi quando o relator mencionou que ele estivera preso, durante seis meses, por consumir drogas ilícitas. Logo em seguida, como o outro também havia estado preso, durante o mesmo período, por vender drogas ilícitas, a diferença entre eles voltou a ser anulada.
A disputa seguia acirrada, sob os apupos, as palmas e a torcida dos presentes. Os palavrões, as ofensas às progenitoras, os gritos e as ameaças reverberavam pelo amplo salão, ricocheteando nas paredes e saindo por debaixo da porta, para alegria daqueles que haviam sido colocados para fora da sala e procuravam inteirar-se do desfecho colando o ouvido na parede. Alguns dos presentes abriam saquinhos contendo um pó branco, que aspiravam como se fosse o antigo rapé consumido pelos cavalheiros chiques durante o Segundo Reinado e o início da República. Um visitante de outro país, que ali chegasse naquele momento, pensaria haver errado de endereço e penetrado na cela destinada aos loucos furiosos em algum manicômio judiciário.
A competição prosseguia, sob a monótona voz do relator: -“Processos em que o candidato é réu na Justiça de Primeira Instância: 40; processos que responde na Justiça de Segunda Instância: 20; processos em Juizados Especiais: 30; processos na Vara de Execuções Penais...; processos no Tribunal de Alçada Civil...; processos no Tribunal de Alçada Criminal...”
Finda esta parte e com os candidatos ainda empatados, foi dado início a leitura da relação de contas correntes em paraísos fiscais, pertencentes a cada um dos contendores (e apresentados os respectivos extratos bancários, com os montantes depositados nestas contas).
A partir daquele momento, todos notaram que passou a sobressair-se o currículo de um dos candidatos. A relação de suas contas era tão grande que, aos poucos, o burburinho na sala foi cessando e todos os presentes passaram a prestar grande atenção ao que era lido pelo relator: - “Número de contas em Grand Cayman, 30, e valor total depositado cem milhões de dólares; número de contas nas Ilhas Seychelles, 45, e valor total depositado duzentos milhões de euros; número de contas em Hong Kong, 10, e valor total depositado vinte milhões de dólares; contas em Samoa, 20, e valor total depositado cinco milhões de euros; contas nas Bahamas...”
Em pouco tempo a vitória daquele candidato estava mais do que evidente, pois o seu oponente possuía menos da metade dos recursos que ele dispunha em suas contas correntes, secretamente abertas naqueles diversos paraísos fiscais espalhados pelo mundo. Os vultosos depósitos existentes, em bancos no exterior, tinha sido finalmente o critério desempatador de tão renhida disputa. Proclamado vencedor sob os aplausos dos presentes, ele foi efusivamente cumprimentado até pelo rival perdedor. Certamente, aquele derrotado candidato à vaga de presidente da comissão estava contente e satisfeito por haver sido vencido por um colega tão competente e tão profissional naquilo que todos ali faziam.
O vencedor, demonstrando ar de tranqüilidade superior, convidou os presentes para um almoço, às suas expensas, em churrascaria próxima. Lá, enquanto bebia uma dose de uísque 50 anos, ele já maquinava novos artifícios de engenharia financeira para extorquir recursos daqueles que, eventualmente, viessem a cair nas malhas da comissão que ele agora presidia e, assim, reabastecer as suas contas bancárias no exterior. Convidou, logo de início, o colega perdedor para ser o seu adjunto e auxiliar direto naquele colegiado, visando mantê-lo sob constante vigilância e, além disto, cooptá-lo para as futuras operações ilícitas de absolver os acusados que concordassem em pagar pelas suas absolvições e de condenar os que não pagassem.
Alguém propôs um brinde à sua vitória e ele mandou o garçom servir champanhe Veuve Clicqot aos presentes. Pouco depois, saboreando um pedaço da picanha redonda ao ponto, que o garçom servira naquele momento, ele declamou para os colegas presentes um velho poema que aprendera na juventude e que era considerado como um verdadeiro hino pelos membros daquele Sindicato do Crime: - “Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! Não verás nenhum país como este! (...) “Boa terra, jamais negou a quem trabalha o pão que mata a fome, o teto que agasalha.”
_*/ Economista, Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.